O
dia amanhecia quando Maria de Lourdes, 43, encostou a bicicleta na calçada em
frente ao depósito de lixo de um supermercado Pão de Açúcar de Cocó, bairro
nobre de Fortaleza. Atordoada, seguiu em direção ao portão de coleta. Deu uma
olhada entre as brechas, colocou os braços na cintura, como sinal de
desaprovação, e me perguntou: "o carro do lixo já veio?". Nem
precisei responder. Logo na sequência, viu a resposta pelos sinais no chão. "Quando
ele passa, deixa essa lama aqui", apontando para o chorume que tomava uma
pequena parte da Rua Bento Albuquerque.
Segundos
depois, Lourdes percebe a aproximação do companheiro Francisco Antônio, 38, e
vai logo avisando: "A gente não tem nada hoje". O homem, que trazia
uma garrafa de refrigerante e salgados para dividir com outras nove pessoas em
20/10/21, desceu da bicicleta e foi ao portão para ter certeza.
Francisco
e Lourdes estão no vídeo que viralizou. Nas imagens, enquanto o homem sobe na
traseira de um caminhão de lixo, em busca de carne, a mulher cata verduras e
frutas nos sacos que enchem um dos tambores retirados do supermercado. O grupo
aguardava o descarte do lixo desde o início da manhã de 28/09/21, mas o
caminhão passou apenas por volta das 14hs.
O
casal ficou sabendo do vídeo porque um dos sobrinhos de Francisco havia
mostrado a ele pelo celular. Impressionados com a repercussão, não imaginavam
que iriam "ficar famosos", como disseram, assim, em meio à miséria.
"O que o rico come, a gente encontra aqui (no lixo) também", diz o
homem.
Francisco
afirma que, depois do vídeo, mais pessoas começaram a buscar alimento no local.
Diz que chegam constrangidos e só se aproximam quando o caminhão estaciona.
"Ninguém aqui tem prioridade, porque todos têm fome. A gente só pede para
que não empurre ou puxe o tambor do outro".
Francisco
e Lourdes são moradores do Vicente Pinzón, a 3 km do supermercado. Na
comunidade, o alcance nacional do vídeo nas redes sociais acarretou em ações
das facções criminosas para conter a presença de equipes de reportagem no
local. O episódio poderia dar mais visibilidade ao bairro, que registrou
assassinatos no último fim de semana.
TAB
conversou com o grupo e registrou a movimentação em fotos, mas depois alguns
moradores pediram para não aparecer. Eles temem a reação dos criminosos em seus
bairros e uma possível retaliação do supermercado.
A
tática do casal para garantir comida é chegar entre 5h e 6h. A correria por
alimento nesta quarta foi em vão. Esperavam encontrar frutas e verduras
descartadas do dia anterior, mas, sem nenhuma justificativa, o caminhão de lixo
passou mais cedo.
A falta daqueles alimentos atinge fortemente a renda do casal. Os R$ 40 conseguidos com a venda de material reciclável em 19/10/21 terão de ser dividido entre a compra de comida e remédio para a filha mais nova de Lourdes, de 18 anos, que faz tratamento para curar uma doença nos rins. Francisco e Lourdes estão desempregados há quatro anos, período em que trabalhavam como zelador e cuidadora de idosos, respectivamente.
Sandra Maria, 57, moradora da Comunidade dos Trilhos: casa sem água nem luz elétrica por falta de pagamento.
Única
chance de comer.
Sandra
Maria, 57, percebeu que o carro do lixo já havia passado pelo olhar triste de
Lourdes. Atravessou a rua e encostou o carrinho de supermercado — com uma bolsa
seca, uma caixinha de música e uma camisa azul que encontrou pelo caminho — na
parede amarela pichada com a frase, em preto, "19 milhões com fome".
Viúva
muito cedo, Sandra criou os dois filhos fazendo faxinas quinzenais nos
apartamentos dos ricos da região desde os 14 anos. Nos dias sem trabalho,
complementava as refeições com os alimentos descartados pelos supermercados.
Sandra
não consegue separar a figura de avó daquela de mãe provedora, na obrigação de
alimentar também os quatro netos, cujos pais ficaram desempregados na pandemia.
Sem renda, diz que, atualmente, "a única chance que a família tem de comer
é retirando da lixeira".
Em
setembro, com o retorno das aulas presenciais na rede pública municipal, a
preocupação diminuiu um pouco. Os dois mais novos fazem as refeições na creche
de tempo integral e retornam no fim da tarde. O ensino acontece com metade da
turma presencial e a outra de forma remota, intercalando as semanas.
Sandra
não sabe o que vai levar para o almoço. As últimas semanas estão sendo as mais
difíceis, com o impedimento de retirada de alimentos nas lixeiras de outros
três supermercados da região. À véspera, só conseguiu se alimentar após receber
uma quentinha com feijoada e arroz, doada por uma moradora de um prédio de luxo
localizado no entorno do local. Sandra havia esperado o caminhão de lixo chegar
até o anoitecer. Depois das 19h, seguiu para casa.
A mulher mora numa casa de apenas um cômodo na Comunidade dos Trilhos, espremida entre muros, que divide os bairros nobres Cocó e Aldeota. O "quartinho", herdado após um dos irmãos falecer, está sem água e energia elétrica por falta de pagamento há mais de um ano. Para cozinhar e armazenar os alimentos que pega, reparte com a vizinha.
'Quando uma não tem, a outra ajuda'
A
vinte metros, em uma das portas laterais que dão acesso ao supermercado,
funcionários observam a movimentação do grupo. Enquanto isso, um homem trajando
roupa social, com crachá da empresa, fotografa a pichação no muro feita durante
a madrugada.
Uma
Land Rover Discovery para enquanto Antônia Anice, 64, e Maria Luzanira, 62,
atravessam a rua em passos lentos, uma segurando no braço da outra, em direção
à calçada. Em agosto, Anice sofreu um acidente enquanto recolhia comida do
lixo. A queda foi tão violenta que a levou a um infarto. Foi socorrida por
Sandra, que a acompanhou até o Hospital do Coração de Messejana, onde Anice
ficou por um mês.
Anice
e Luzanira são vizinhas. Moram no mesmo beco na Comunidade dos Trilhos. As duas
têm em comum a solidão. A primeira sente falta do filho que foi morar em
Manaus. A outra ainda não superou a perda recente dos pais e do único irmão. A
proximidade entre as amigas também serve para superar a fome. "Quando uma
não tem, a outra ajuda e, assim, vai levando a vida", explica Luzanira.
Luzanira acredita que a ida das duas ao depósito de lixo do supermercado ocorrerá mais vezes por semana. Vivendo com apenas R$ 90 e R$ 150 do programa Bolsa Família, respectivamente, a renda não será suficiente para a compra dos remédios de que necessitam. "Ela tem esse problema e eu convivo com a catarata. Não tem [remédio] no posto. Não vai sobrar para comer".
(uol)
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