As mudanças climáticas e a sustentabilidade nos exigem olhar para
o futuro. Entrevista especial com Marcelo Dutra da Silva
“Descarbonizar a economia, neste momento, em que se busca
recuperar o prejuízo, parece algo impossível, mas talvez seja oportuno para
planejarmos nosso futuro econômico”, diz o professor da Universidade Federal do
Rio Grande – FURG
Além dos vastos recursos naturais que o Brasil possui em seu
território, há mais uma razão para o país investir no caminho de se tornar uma
economia sustentável: os efeitos das mudanças climáticas. Segundo o ecólogo
Marcelo Dutra da Silva, o último relatório do IPCC coloca o país “em uma
posição difícil e ao mesmo tempo muito favorável”. “Difícil porque entre as
mudanças colocadas como irreversíveis, pelo menos dentro deste século, está o
aumento progressivo do nível dos oceanos, o que deve nos atingir em cheio, pois
temos um litoral extenso e densamente ocupado. Também difícil, porque as nossas
emissões de gases do efeito estufa estão fortemente associadas ao desmatamento
e práticas perversas de extração mineral e ao agronegócio de ocasião, ilegal e
sem limites”, explica.
Apesar do cenário projetado, insiste, o Brasil tem condições de zerar o desmatamento ilegal e acelerar o investimento em fontes energéticas alternativas. “Há um largo espaço de oportunidades no mercado brasileiro para geração de energia livre de carbono. Quase 80% da energia gerada no Brasil é limpa e provém de fontes renováveis, apesar dos impactos da hidroeletricidade. Entretanto, tanto aqui [no Rio Grande do Sul] quanto no Brasil inteiro, o potencial de geração eólica e solar é vastíssimo. É um mercado em expansão com perspectiva de forte crescimento, neste momento muito estimulado pelo risco de mais um apagão energético. O que é irônico, pois se, por um lado, vivemos este novo risco de faltar energia e isso está associado à falta de chuvas (a maior em 91 anos), por outro, pouco estamos fazendo para coibir o desmatamento (que continua elevado) e praticamente nada foi feito para prevenir um novo momento de crise energética”, lamenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Silva expõe as razões pelas quais o Brasil deveria investir na descarbonização da matriz energética, comenta os efeitos das mudanças climáticas sobre a pressão dos corpos hídricos e ecossistemas aquáticos e suas implicações para o Pampa gaúcho.
Marcelo Dutra da Silva é graduado em Ecologia pela Universidade
Católica de Pelotas – UCPel, mestre e doutorado em Ciências pelo Programa de
Pós-Graduação em Agronomia da Universidade Federal de Pelotas – UFPel.
Atualmente, leciona na Universidade Federal do Rio Grande – FURG, no Instituto
de Oceanografia – IO. É coordenador do Laboratório de Ecologia de Paisagem
Costeira – LEPCost e vice-presidente da Sociedade de Ecologia do Brasil.
IHU – Recentemente, um estudo realizado pelo MapBiomas alertou
para a redução da superfície de água em oito das 12 regiões hidrográficas do
Brasil e nos biomas brasileiros. Um dos pontos destacados é que as mudanças
climáticas aumentaram a pressão sobre os corpos hídricos e ecossistemas
aquáticos. Quais são os efeitos das mudanças climáticas no Pampa gaúcho? Que
efeitos estão sendo observados na região, associados às mudanças climáticas?
Marcelo Dutra da Silva – A notícia revelada pelo MapBiomas, quanto
à retração da superfície coberta com água no Brasil, é estarrecedora. 3,1
milhões de hectares de cobertura hídrica é muita coisa para perder em 30 anos.
Significa que 15,7% da área coberta por água evaporou. O que equivale a 62
vezes o tamanho da capital Porto Alegre ou mais de três vezes a superfície da
Lagoa dos Patos, a maior laguna da América do Sul. E os dados indicam uma clara
tendência de perda de superfície de água em todas as regiões hidrográficas, de
todos os biomas do país.
3,1 milhões de hectares de cobertura hídrica é muita coisa para
perder em 30 anos. Significa que 15,7% da área coberta por água evaporou –
Marcelo Dutra da Silva
Certamente essa é uma forte evidência de que as mudanças
climáticas aumentam a pressão sobre os corpos hídricos e ecossistemas
aquáticos. E é o que também podemos esperar para o Pampa gaúcho. Na verdade,
sempre estivemos expostos a um clima que se alterna – com períodos prolongados
de estiagem, altas temperaturas, chuvas torrenciais, granizo, frio intenso,
geadas… Nada disso é estranho para o gaúcho. De alguma forma nos acostumamos e
convivemos com essas diferenças, mesmo que bastante variáveis de uma região
para outra do Estado. Mas tudo pode mudar, em breve. E este é o ponto. A Terra
está mais quente (1,07°C) e somos apontados como os verdadeiros culpados. Pelo
menos, é o que afirma o sexto relatório de avaliação – AR6 (Climate Change
2021: The Physical Science Basis), do IPCC (sigla em inglês para Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), ao considerar irrefutável nossa
responsabilidade pelo aumento da temperatura e nossa influência nas mudanças
impostas ao sistema climático da Terra. Mudanças profundas, inequívocas e sem
precedentes na história. De acordo com o relatório, nada parecido aconteceu nos
últimos 6.500 anos e todas as regiões do globo já foram afetadas de alguma
forma, seja por extremos de calor, chuva, seca ou vento de altas velocidades.
Cada uma das últimas quatro décadas foi sucessivamente mais quente que qualquer
outra, desde 1850; a temperatura vai continuar subindo e a menos que haja
reduções drásticas das emissões de gases do efeito estufa (portanto, limitar o
aquecimento a 1,5°C, meta do Acordo de Paris para este século), poderá ser
impossível reverter o quadro.
A nossa capacidade de influenciar o clima já é a maior em dois mil
anos e os valores de temperatura podem ser muito mais acentuados a depender de
cada região do globo, em algumas até muito mais elevadas do que a média. Mesmo
que boa parte das mudanças se mostrem irreversíveis, é possível que muitas
possam ser retardadas ou interrompidas. Só depende de nós e este é o problema.
Precisamos cortar drasticamente nossas emissões de gases do efeito estufa, em
todas as etapas do processo produtivo. Em outras palavras, descarbonizar a
economia, o que não é uma tarefa fácil.
Precisamos cortar drasticamente nossas emissões de gases do efeito
estufa, em todas as etapas do processo produtivo. Em outras palavras,
descarbonizar a economia – Marcelo Dutra da Silva
De outra parte, tudo que vem acontecendo em outras regiões do país deve nos afetar também. O Sul deve enfrentar mais um longo período de estiagem, com eventos de precipitação intensa, associada a ventos fortes e perturbadores. O risco fica por conta das recorrentes manifestações climáticas extremas e toda sorte de prejuízos. Aliás, isso já está acontecendo. Não faz muito que vimos nevar na Serra e formar geada negra. Agora, as chuvas das últimas semanas têm provocado alagamentos em diversas cidades do litoral e isso ocorre no mesmo momento em que o interior do Estado sofre com a falta de água. E tudo indica que vamos rever o ínterim 2019/2020, quando 394 municípios gaúchos enfrentaram um forte déficit hídrico e mais de 50 municípios autodeclararam emergência devido à estiagem. Um cenário dramático que tende a se repetir e talvez com muito mais intensidade.
IHU – Como avalia o fomento do Estado brasileiro ao setor de carvão mineral, conforme exposto no Programa para Uso Sustentável do Carvão Mineral Nacional, tendo em vista o contexto de mudanças climáticas?
Marcelo Dutra da Silva – A sustentabilidade nos exige olhar para o
futuro e fazer diferente desde agora. Fomentar o carvão é continuar insistindo
em algo que não dá mais certo. O carvão mineral é uma fonte energética muito
suja e ultrapassada. A única avaliação positiva possível, que ainda pode ser
feita, diante do cenário de crise, é a de que é uma reserva emergencial
importante, para tempos difíceis, mas que precisa ter seu uso desmobilizado. A
queima do carvão tem forte impacto no clima e não há a menor possibilidade de
sucesso em um “programa de uso sustentável”. Neste caso, para ser sustentável o
carvão não pode ser usado.
Fomentar o carvão é continuar insistindo em algo que não dá mais
certo. O carvão mineral é uma fonte energética muito suja e ultrapassada –
Marcelo Dutra da Silva
IHU – Como o senhor analisa, de outro lado, a proposta do governo
do Rio Grande do Sul, de incentivar a implementação da Usina Termelétrica Nova
Seival, na região sul do estado, ou mesmo o projeto de exploração de carvão,
com a proposta da Mina Guaíba?
Marcelo Dutra da Silva – Na minha avaliação o governo Eduardo
Leite é muito mais tradicional e preso às práticas convencionais do que se
imagina. Não há espaço para inovação, tampouco a intenção de modernizar nossa
matriz energética, com corte significativo das emissões de gases do efeito
estufa, entre outras iniciativas necessárias, na conversão para o
desenvolvimento com características de sustentabilidade. Tanto a implantação da
Usina Nova Seival, quanto a exploração do carvão na Mina Guaíba revelam o
quanto é limitado o horizonte do governo, que não vê futuro em fontes
energéticas alternativas, mantendo-se preso em conceitos ultrapassados e
dissonantes de um futuro de baixo carbono.
O governo Eduardo Leite é muito mais tradicional e preso às
práticas convencionais do que se imagina – Marcelo Dutra da Silva
IHU – O que significa investir em fontes energéticas a carvão num
momento em que o mundo discute a descarbonização da matriz energética?
Marcelo Dutra da Silva – Significa caminhar na contramão do mundo
e em oposição à ideia de um futuro sustentável. E de uma forma profundamente
lamentável, já que temos, ao nosso favor, um enorme potencial energético de
fontes limpas, ainda pouco explorado. Por aqui, o vento é constante, entre os
melhores do mundo para produzir energia, com potência de 500 W/m² (fluxo médio
de 7,5 m/s, a 50 m de altura). Apenas 13% da superfície terrestre apresenta
vento na velocidade média igual ou superior a esta marca, segundo a Organização
Mundial de Meteorologia (WMO). O mesmo para o potencial solar, que é menor
comparado a outras regiões brasileiras, mas que supera, em 30%, o potencial
solar da Alemanha, país líder neste segmento. Portanto, estamos desperdiçando
riquezas ao não criar um ambiente mais favorável ao investimento nas fontes
limpas de geração, o que é lamentável.
Estamos desperdiçando riquezas ao não criar um ambiente mais
favorável ao investimento nas fontes limpas de geração, o que é lamentável –
Marcelo Dutra da Silva
IHU – Tendo em vista o último relatório do IPCC, que ações são
urgentes para modificar ou reajustar o plano energético brasileiro?
Marcelo Dutra da Silva – O relatório do IPCC nos coloca em uma
posição difícil e ao mesmo tempo muito favorável. Difícil porque entre as
mudanças colocadas como irreversíveis, pelo menos dentro deste século, está o
aumento progressivo do nível dos oceanos, o que deve nos atingir em cheio, pois
temos um litoral extenso e densamente ocupado. Também difícil, porque as nossas
emissões de gases do efeito estufa estão fortemente associadas ao desmatamento
e práticas perversas de extração mineral e ao agronegócio de ocasião, ilegal e
sem limites.
Mas há o que podemos fazer para reverter este quadro e amenizar os efeitos do aquecimento. Podemos conter e zerar o desmatamento ilegal, bastando fortalecer a política ambiental, sobretudo o esforço de fiscalização e controle. Mais do que isso, há um largo espaço de oportunidades no mercado brasileiro para geração de energia livre de carbono. Quase 80% da energia gerada no Brasil é limpa e provém de fontes renováveis, apesar dos impactos da hidroeletricidade. Entretanto, tanto aqui [no Rio Grande do Sul] quanto no Brasil inteiro, o potencial de geração eólica e solar é vastíssimo. É um mercado em expansão com perspectiva de forte crescimento, neste momento muito estimulado pelo risco de mais um apagão energético. O que é irônico, pois se, por um lado, vivemos este novo risco de faltar energia e isso está associado à falta de chuvas (a maior em 91 anos), por outro, pouco estamos fazendo para coibir o desmatamento (que continua elevado) e praticamente nada foi feito para prevenir um novo momento de crise energética.
Mudanças climáticas do passado são fundamentais para o futuro do planeta
IHU – Quais são os efeitos ambientais e sociais que o carvão tem
gerado na região sul do RS? Ele impacta o bioma Pampa?
Marcelo Dutra da Silva – Os efeitos diretos da exploração e queima
do carvão na região sul do Estado, com o qual aquela região é obrigada a
conviver, estão associados à transformação da paisagem e ao risco da
contaminação e acidificação do solo e da água, emissões atmosféricas tóxicas,
lançamento de particulados e o sequestro biológico de metais pesados pela
biota, incluindo o organismo humano. Já os efeitos indiretos, que todos nós
sentimos, estão ligados às emissões de gases do efeito estufa, que contribuem
fortemente para o aquecimento global e mudanças no sistema climático e todos os
efeitos decorrentes.
A criação de gado em campo nativo deve ser fortalecida e ampliada,
pois tem mercado, valor agregado e é a principal estratégia de manutenção dos
remanescentes do campo original do Pampa – Marcelo Dutra da Silva
IHU – O que significa fazer a gestão e uso sustentável dos
recursos naturais, tendo em vista as mudanças climáticas?
Marcelo Dutra da Silva – Significa mudar de rumo, sensibilizar
novos hábitos, assumir práticas, tomar novas escolhas e, sobretudo, firmar uma
trajetória de aprendizado, quanto à melhor forma de aproveitar nossas
potencialidades, que são muito mais amplas do que as fontes energéticas de
baixo carbono. Temos um vasto campo de desenvolvimento na produção orgânica em
escala e na agricultura familiar de base ecológica para reduzir de forma
significativa o uso de veneno e insumos fertilizantes (que estão associados ao
uso de óxido nitroso, um importante gás do efeito estufa). A criação de gado em
campo nativo deve ser fortalecida e ampliada, pois tem mercado, valor agregado
e é a principal estratégia de manutenção dos remanescentes do campo original do
Pampa. Assim como a exploração e beneficiamento das nossas rochas ornamentais,
o turismo em cenários belíssimos e o incentivo para empresas verdes e
responsáveis. E não é só isso. Vivemos em uma região privilegiada, sob diversos
aspectos. Nossa posição geográfica é estratégica, nossos rios e essa enorme
laguna nos permitem conectar, por via hídrica e sobre trilhos, o interior do
Estado com o centro industrial brasileiro de São Paulo (ao norte) e o porto de
Montevidéu, no Uruguai (ao sul). Também possuímos um porto marítimo, que para
além das relações macroeconômicas regionais, nos permite estabelecer outras
conexões com o mundo e tudo isso precisa ser usado a nosso favor.
É o pior momento ambiental da nossa história e o mundo inteiro nos
cobra mais responsabilidade e empenho para conter o desmatamento, as queimadas,
a mineração clandestina e o avanço de lavouras e pastagens sobre a mata nativa
– Marcelo Dutra da Silva
IHU – Considerando as diferentes características regionais do
Brasil e o cenário de mudanças climáticas, que alternativas são possíveis para
a matriz energética e para a preservação dos biomas brasileiros?
Marcelo Dutra da Silva – Todos os olhares se voltam para o Brasil quando o assunto é meio ambiente, tanto para o que estamos, quanto para o que deixamos de fazer (e foi muita coisa). O desmonte ambiental é enorme e a boiada continua passando na porteira. Renunciamos a recursos importantes, desmobilizamos a política climática e reduzimos o esforço de fiscalização e controle. Em resumo, é o pior momento ambiental da nossa história e o mundo inteiro nos cobra mais responsabilidade e empenho para conter o desmatamento, as queimadas, a mineração clandestina e o avanço de lavouras e pastagens sobre a mata nativa. Não vejo alternativa senão retroceder o desmonte e reabilitar nossa política de meio ambiente, incluindo o orçamento, que caiu para menos da metade no atual governo. Evidentemente, tudo isso acaba refletindo na execução da política ambiental, em cada estado e/ou município, inclusive por aqui.
Mudanças climáticas desenham o cenário de urgência para a saúde do planeta na próxima década
Descarbonizar a economia, neste momento, em que se busca recuperar
o prejuízo, parece algo impossível, mas talvez seja oportuno para planejarmos
nosso futuro econômico. A ideia de retomarmos o desenvolvimento, dentro das
mesmas condições, anteriores à pandemia, é equivocada. Não mais será como já
foi um dia e já estava bem ruim e errado. Podemos ser um país de economia
sustentável, que sabe aproveitar o melhor de cada região, sem comprometer os
recursos e os serviços prestados pela natureza. Há muito o que fazer, seja
reduzindo gases do efeito estufa, investindo em tecnologias verdes ou
preparando a sociedade, o campo e a cidade para as mudanças que estão por vir.
(ecodebate)
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