“O que estava em jogo no velho conflito industrial do trabalho
contra o capital eram positividades: lucros, prosperidade, bens de consumo. No
novo conflito ecológico, o que está em jogo são negatividades: perdas,
devastação, ameaças” (Ulrich Beck, Sociedade de Risco)
A civilização global, desde o início do uso dos combustíveis fósseis
há 250 anos, conquistou inúmeras melhorias no padrão de vida da população.
Houve redução das taxas de mortalidade infantil, aumento da expectativa de
vida, elevação das taxas de escolaridade, avanços na qualidade das moradias e
melhoria geral do padrão de consumo. Contudo, o enriquecimento humano ocorreu
de forma socialmente divergente e às custas do empobrecimento do meio ambiente.
Como mostrou Ulrich Beck, no livro Sociedade de Risco, as
primeiras fases do capitalismo foram marcadas por uma disputa pelo excedente da
produção econômica entre o capital e o trabalho, o primeiro buscando aumentar
os lucros e o segundo buscando aumentar os salários. Havia um conflito
distributivo, mas o ambiente era de prosperidade geral, embora desigual e
combinada.
Porém, o contínuo crescimento da população e da economia fez a
humanidade ultrapassar a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica
ultrapassou a Biocapacidade do Planeta, gerando um déficit ambiental crescente.
Desta forma, a realidade mudou, a oferta de combustíveis fósseis chegou ao pico
e os danos ambientais passaram a se sobrepor sobre a distribuição de ganhos,
com o mundo entrando na Sociedade de Risco, onde: “o que está em jogo são
negatividades: perdas, devastação, ameaças” (Beck, 2010, p.3).
Esta nova realidade ficou evidente no verão de 2022 no hemisfério
Norte. Não são apenas os países pobres que sofrem os efeitos da emergência
climática. Além das ondas letais de calor que provocam a morte de milhares de
pessoas, as queimadas têm destruído áreas verdes e propriedades, o baixo nível
de água dos rios tem prejudicado o transporte fluvial, perda de colheitas,
dificuldades no transporte fluvial e, na França, a restrição ao uso de água
forçou o desligamento de usinas nucleares.
Na Alemanha, o rio Reno é uma grande artéria logística, mas o nível baixo da água obrigou as barcaças que o percorrem a adotarem uma capacidade de carga reduzida. Algumas empresas anunciaram que interromperão o transporte fluvial a partir da próxima semana no Alto e Médio Reno, da fronteira com a Suíça até Bonn. A indústria, o comércio e os serviços estão sendo prejudicados. Na Espanha, a imprensa destacou o surgimento de um círculo de pedra pré-histórico apelidado de “Stonehenge Espanhol”. O nível do rio Danúbio caiu e expôs os cascos de mais de 20 navios de guerra alemães afundadas durante a Segunda Guerra Mundial.
Reportagem da agência DW (13/08/2022) mostrou que o rio Danúbio também enfrentou baixos níveis de água, e o rio Tille secou completamente no sudoeste da França, na altura da vila de Lux, deixando milhares de peixes mortos. O rio Po, o mais longo da Itália, que fornece irrigação a cerca de um terço da produção agrícola do país, também sofreu com a pior seca do norte italiano em 70 anos. Na Espanha, a seca também tem afetado as plantações. Algumas fazendas de abacateiros estão removendo parte das árvores para que possa sobrar mais água para as demais. Milhões de oliveiras e girassóis secaram na região de Andaluzia, enquanto laranjeiras e limoeiros enfrentaram o mesmo em Valência.
A França registrou em três meses seu maior nível de emissão de gás
carbônico a partir de incêndios florestais desde o início dos registros, em
2003. O mesmo ocorreu na Espanha em julho. A seca na Inglaterra levou à
proibição do uso de mangueiras para regar jardins, lavar veículos, encher
piscinas ou limpar casas, válida em diversas partes do país, e o Rio Tâmisa
enfrentou também níveis muito baixos de água. O serviço meteorológico nacional
do Reino Unido declarou no mês de julho como o mais seco da Inglaterra desde
1935.
Portanto, a Europa enfrenta mudanças climáticas que afetam a
economia, a saúde da população e agravam os problemas ambientais. Nada disto
deveria ser novidade, pois os estudos mostram que a Europa possui uma
sobrecarga ambiental e um grande déficit ecológico, como mostra a figura
abaixo. Segundo o Instituto Global Footprint Network, a Europa já tinha um
grande déficit ambiental em 1961 e manteve o déficit nos últimos 60 anos.
A mudança ocorrida no início dos anos 1990 se deve à contabilidade da área da Rússia na estatística do continente. Em 2018, a Europa tinha uma Pegada Ecológica de 3,24 bilhões de hectares globais (gha) e uma Biocapacidade de 2 bilhões de gha. Isto significa um déficit absoluto de 1,24 bilhão de gha e um déficit relativo de 61%. Desta forma, a crise atual só agrava um problema que vem ocorrendo há várias décadas e que fica cada vez mais difícil de ser negado.
Na China, as mudanças climáticas catastróficas não são menos danosas, com crescentes custos econômicos e sociais. A China está enfrentando a onda de calor mais feroz em seis décadas, com temperaturas passando de 40ºC em dezenas de cidades. Na província chinesa de Sichuan, em agosto, todas as fábricas foram fechadas por 6 dias para economizar energia, o que afetou a cadeia produtiva em diversas outras regiões e outros países. Segundo a emissora estatal CCTV, o nível da água do rio Yangtzé caiu rapidamente em meio à seca e a uma onda de calor na região sudoeste do país fez cerca de 66 rios em 34 condados de Chongqing secaram. Foram reveladas 3 estátuas budistas históricas, que podem ter sido construídas há 600 anos.
Em junho de 2022, sete províncias do sul enfrentam chuvas que
provocaram as piores enchentes no país em décadas. Milhares ficaram
desabrigados. Só na província de Guangdong, a mais populosa da China, as chuvas
impactaram quase meio milhão de pessoas e provocaram o desmoronamento de 1.729
casas. Os estragos se estendem para a agricultura, com danos em 27,1 hectares de
plantações e milhões de dólares de prejuízo. Em agosto, mais de 5 milhões de
chineses têm sofrido com recorrentes cortes de energia devido a uma onda de
calor que atinge o país e que tem paralisado a economia, já afetada pelos
constantes lockdowns da covid-19. A China é considerada a “fábrica do mundo”,
mas esta posição está ameaçada pela insustentabilidade ambiental.
A China tem o maior déficit ambiental do mundo. Segundo o Instituto Global Footprint Network, a China ainda tinha um pequeno superávit ambiental em 1961, mas se tornou o país mais poluidor do Planeta. Em 2018, a China tinha uma Pegada Ecológica de 5,54 bilhões de hectares globais (gha) e uma Biocapacidade de 1,35 bilhão de gha. Isto significa um déficit absoluto de 4,2 bilhões de gha e um déficit relativo de 310%. A China sozinha consome quase a metade da Biocapacidade da Terra.
Nos EUA a situação climática não é menos desastrosa. A Califórnia registrou o maior incêndio do ano em julho de 2022, sendo que duas pessoas morreram e 2.000 moradores foram obrigados a deixarem suas casas. A escassez hídrica se alastrou para a maioria do território. Por exemplo, o Lago Medow, que fornece água para cerca de 25 milhões de pessoas em todo o oeste americano, está em seu nível mais baixo desde que foi enchido, em 1937. Na medição feita no final de julho, possui apenas 25% de sua capacidade. As perdas agrícolas têm pressionado a inflação, que já está em alto patamar no país. No final de setembro de 2022 o furacão Ian deixou pelo menos 100 mortos no estado da Flórida, além de milhões de dólares em prejuízos, mostrando que não são apenas os países pobres que sobrem com as mudanças climáticas.
Os Estados Unidos possuem o segundo maior déficit ambiental do mundo. Segundo o Instituto Global Footprint Network, os EUA já tinham um déficit em 1961, que se ampliou com o crescimento demoeconômico do país. Em 2018, os EUA tinham uma Pegada Ecológica de 2,66 bilhões de hectares globais (gha) e uma Biocapacidade de 1,11 bilhão de gha. Isto significa um déficit absoluto de 1,55 bilhão de gha e um déficit relativo de 140%. A Pegada Ecológica per capita dos EUA é maior do que da China, mas como o gigante asiático possui uma população muito maior, a Pegada Ecológica total é menor nos EUA.
Em síntese, os desastres ambientais tendem a crescer com o aquecimento global provocando eventos extremos cada vez mais frequentes, mais letais e mais caros. O livro “Hothouse Earth: An Inhabitant’s Guide”, do professor Bill McGuire argumenta que, depois de anos ignorando os avisos dos cientistas, é tarde demais para evitar os impactos catastróficos das mudanças climáticas. Ele diz que já é um mundo diferente lá fora e em breve será irreconhecível para todos nós, pois o colapso total do clima se tornou praticamente inevitável. As grandes economias do mundo não vão passar ilesas por este processo. Como disse Marília Mendonça: “Ninguém vai sofrer sozinho. Todo mundo vai sofrer”. (ecodebate)
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