Desafios
na confiabilidade de módulos bifaciais: quebra de vidro em módulos de grande
área.
O
Caso UFSC
Pouco tempo após a comissionamento da usina, os pesquisadores notaram trincas no vidro de alguns módulos. Inspeções regulares foram realizadas, e uma tendência de 14 módulos quebrados por mês foi registrada ao longo de um período de sete meses. Dentro de nove meses, mais de 50% dos módulos instalados apresentavam vidro quebrado. Os dados de monitoramento climático durante esse período não mostraram anomalias de temperatura ou eventos extremos de vento. Foi nesta época também que o estudo de caso foi apresentado pela primeira vez na 2023 NREL PV Reliability Workshop.
Registro de módulos com vidro quebrado na usina piloto do Laboratório Fotovoltaica/UFSC em Florianópolis-SC. Marcações em amarelo indicam trincas no vidro posterior; em vermelho, trincas na face frontal dos módulos; e em laranja, módulos com ambos os vidros trincados.
Um
ano após o início da operação da usina, as trincas no vidro começaram a
comprometer a segurança e o desempenho do sistema, com falhas frequentes de
isolamento em dias chuvosos e o surgimento de delaminações próximas às trincas,
resultando em pontos quentes. Os módulos fotovoltaicos de toda a usina foram
substituídos por sobressalentes adquiridos na mesma remessa dos originais. No
entanto, o problema das trincas reapareceu, afetando toda a usina piloto.
Após
uma análise minuciosa, não foi possível correlacionar o surgimento das falhas a
problemas no projeto das estruturas, erros de instalação, falhas no controle da
vegetação ou a eventos climáticos extremos. A investigação da causa raiz
permanece em andamento, contando com a colaboração de entidades independentes,
além dos fabricantes dos módulos e dos sistemas de fixação.
Os
módulos utilizados no projeto são bastante representativos dos amplamente
empregados em usinas fotovoltaicas atualmente: de grande formato, com área
superior a 3 m² e peso próximo a 40 kg. As células fotovoltaicas são
encapsuladas entre duas lâminas de vidro de 2 mm cada. Devido à menor
espessura, essas lâminas de vidro não são mais completamente temperadas,
passando apenas por um tratamento térmico intermediário, o que compromete sua
resistência em comparação com o vidro temperado de 3,2 mm tradicionalmente
utilizado na indústria de módulos fotovoltaicos.
No
processo de tempera, o vidro é aquecido em um forno a temperatura elevada
(600°C a 700°C) e, em seguida, sua superfície é rapidamente resfriada,
provocando compressão nas superfícies e arestas (> 10.000 psi), o que eleva
a resistência do vidro. Placas de vidro de menor espessura não suportam as
elevadas temperaturas e o resfriamento desse método.
Já
as placas finas de vidro são submetidas a uma “tempera química”, que ocorre a
temperatura mais baixa, aproximadamente 450°C, por troca de íons e que resulta
numa superfície que está sob esforços de compressão, o que a torna mais
resistente. O enchimento resulta em uma rede atômica quase rígida de vidro com
uma alta compressão superficial que diminui rapidamente para uma pequena tensão
de equilíbrio no interior, dependendo da profundidade de troca iônica e da
espessura do vidro.
Na tempera química as placas de vidro de espessura de 2mm são mergulhadas em Nitrato de Potássio (KNO3) fundido, resultando em uma troca iônica em regiões de profundidade de cerca de 25 micrometros (0,025 mm) que aumenta a dureza superficial. Nesse processo o aumento da resistência do vidro não o leva à mesma robustez dos vidros tratados por tempera térmica. Além disso, o fato de o vidro não ser temperado dificulta a identificação das quebras, pois, em vez de estilhaçar, o vidro apresenta apenas trincas, tornando os danos menos visíveis, mas igualmente problemáticos para a integridade dos módulos.
Exemplos de módulos fotovoltaicos com vidro quebrado: à esquerda, um módulo mais recente com vidro de 2 mm semitemperado; à direita, um módulo mais antigo com vidro temperado de 3,2 mm.
O Caso USP
A USP está enfrentando um problema muito semelhante em sua usina piloto mais recente. Construída no final de 2023, essa usina já apresenta um quarto de seus módulos com algum tipo de quebra no vidro.
Registro de módulos com trincas no vidro posterior na usina piloto do Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos do Instituto de Energia e Ambiente/USP, em São Paulo/SP.
Curiosamente, módulos semelhantes aos instalados em São Paulo foram utilizados em outra usina na Espanha, onde não estão apresentando o mesmo problema. Isso reforça algumas hipóteses importantes: 1) a fixação dos módulos desempenha um papel crucial no surgimento de trincas; e 2) módulos que à primeira vista parecem idênticos podem ter diferentes BOMs (bill of materials), mesmo quando saem da mesma linha de produção, o que também pode influenciar sua suscetibilidade a trincas. Destaca-se que esta última hipótese parte da observação de que os módulos da usina da USP possuem uma catenária (abaulamento) mais acentuada em relação aos módulos utilizados na usina da Espanha.
Vista da catenária (abaulamento) do vidro dos módulos da usina da USP.
Não
são casos isolados
Infelizmente,
esses não são eventos isolados na indústria solar. A equipe da UFSC tem sido
procurada por operadores e proprietários de usinas no Brasil e no exterior que
enfrentam os mesmos problemas observados no piloto de pesquisa. O que
inicialmente parecia ser uma situação atípica em projetos pilotos no Brasil,
hoje é tema de conferências internacionais de energia solar fotovoltaica.
Laboratórios especializados em testes de módulos FV, como TÜV Rheinland, Kiwa
Group e CFV Labs, também têm apresentado dados indicando uma maior fragilidade
mecânica dos módulos atuais quando comparados com os tradicionais
vidro-backsheet, destacando a crescente preocupação com a confiabilidade desses
módulos fotovoltaicos em campo.
Há uma preocupação geral de que a quebra de vidro se torne uma ameaça maior do que antes devido a uma combinação de fatores. Os módulos estão ficando maiores, as estruturas/molduras metálicas estão se tornando mais delgadas e menos resistentes e os trilhos de montagem estão ficando mais curtos. Todos esses elementos contribuem para a formação de um sistema que exerce mais pressão sobre a superfície do vidro, que também está se tornando mais fina.
O módulo e a sua fixação
A
tendência de aumentar o tamanho dos módulos fotovoltaicos e reduzir a espessura
do vidro visa otimizar a produção, mas também introduz novas fragilidades. Para
reduzir custos, os fabricantes têm utilizado vidros e molduras mais finos, o
que resulta em módulos mecanicamente mais frágeis e mais suscetíveis a tensões
externas. Em termos simples, qualquer fabricante pode temperar um vidro de 3
mm. No entanto, a têmpera de vidros com espessura inferior a 3 mm é um processo
complexo. À medida que o vidro se torna mais fino, um número menor de defeitos
é suficiente para gerar falhas que comprometem a resistência do material.
Tendo
isso em vista, o vidro fotovoltaico, tratado como uma commodity pela indústria,
pode não estar sendo submetido a um controle de qualidade tão rigoroso quanto o
necessário. Isso levanta a possibilidade de que as trincas observadas em campo
sejam consequência de imperfeições microscópicas presentes no vidro desde a
fabricação, tornando os módulos mais vulneráveis a danos quando expostos às
condições de operação. Essa realidade ressalta a importância de um rigoroso
controle de qualidade durante a produção para garantir a integridade e durabilidade
dos módulos.
Além
da qualidade do vidro, outro fator crucial para entender o surgimento de
trincas no vidro de módulos fotovoltaicos em campo é a fixação. Os manuais de
instalação frequentemente apresentam diversos tipos de fixação permitidos pelo
fabricante, geralmente associados à máxima carga mecânica suportada em cada
caso. No entanto, a certificação da resistência mecânica dos módulos é
realizada com uma configuração padrão de quatro apoios, que difere da
configuração comumente utilizada em usinas fotovoltaicas com rastreadores.
Dados de laboratórios internacionais mostram que módulos que passam na
certificação com a fixação padrão podem não suportar adequadamente a carga em
situações de fixação em rastreadores.
O
problema das trincas é um indicativo comum da implementação rápida de novas
tecnologias sem uma avaliação abrangente de seus efeitos em condições reais de
operação. Quando uma nova tecnologia é introduzida no mercado, é natural que
ela passe por um ciclo de aprendizado em relação à sua confiabilidade. É
impossível prever todos os problemas que podem surgir em campo e,
principalmente, garantir que os testes utilizados para identificar falhas em um
produto anterior consigam antecipar todas as novas falhas associadas a uma nova
tecnologia.
Atualmente,
o problema de quebra de vidro em módulos fotovoltaicos encontra-se na fase de
observação das falhas em campo, permitindo o desenvolvimento de novos testes
que visam antecipar e evitar a instalação de módulos defeituosos. Surgem,
assim, questionamentos sobre a adequação dos testes de certificação existentes,
que podem não ser suficientemente rigorosos para acompanhar as novas tendências
do mercado, como o uso de rastreadores e a ocorrência cargas dinâmicas.
Além da necessidade de aprimorar os testes em si, é possível que os módulos avaliados não sejam representativos dos que estão efetivamente instalados em campo. Pode ser necessário, ainda, aumentar o tamanho das amostras utilizadas nos testes de aprovação na fábrica, garantindo assim uma melhor validação da confiabilidade dos módulos em condições reais de operação.
Preocupações da Indústria
Com
a crescente demanda por módulos de alta potência no Brasil, especialmente os
bifaciais, é fundamental que a indústria esteja atenta aos desafios associados
a essa evolução. Em uma usina, a ocorrência de falhas no vidro representa um
desafio significativo. O desligamento de partes da usina, causado por falhas de
isolamento relacionadas à quebra do vidro, pode comprometer tanto a produção de
energia quanto a segurança dos sistemas.
Além
disso, como esses problemas são frequentemente difíceis de detectar a olho nu,
torna-se necessário recorrer a métodos manuais de inspeção. Essa abordagem
atrasa a identificação e correção das falhas, gerando perdas financeiras
significativas para as usinas. A atribuição de responsabilidade nesses casos é
um processo complexo e moroso, uma vez que, em geral, os módulos passaram pelas
certificações necessárias e os projetos estruturais foram aprovados, o que
inicialmente isenta os fabricantes dos módulos e das estruturas de fixação de
qualquer culpa. Como resultado, o elo mais vulnerável muitas vezes é a equipe
de EPC ou O&M, que se vê na posição de ter que compensar os prejuízos.
Para
mitigar esse problema, recomenda-se a implementação de testes mais rigorosos de
resistência mecânica para a aprovação de produtos na fábrica. É fundamental que
as amostras testadas reflitam a diversidade das linhas de produção e dos BOMs.
Além disso, os testes devem ser realizados utilizando o método de montagem
específico do projeto. Sempre que possível, é aconselhável incluir testes dinâmicos,
em vez de se limitar apenas a avaliações estáticas, para garantir uma análise
mais abrangente da robustez dos módulos em condições reais de operação.
UFSC
e USP estão desenvolvendo estudos mais aprofundados sobre este tema e convidam
as empresas que tenham enfrentado problemas semelhantes em suas usinas a entrar
em contato para compartilhar dados. O objetivo principal é coletar o máximo de
informações possível sobre casos similares, a fim de mapear essas ocorrências e
identificar padrões. Caso necessário, podem ser providenciados acordos de
confidencialidade e anonimização das informações compartilhadas para proteger a
identidade dos ativos afetados. As empresas interessadas podem entrar em contato pelo e-mail
mbraga.ufsc@gmail.com. (pv-magazine-brasil)
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