Partículas da fumaça de queimadas na Amazônia induzem
inflamação e danos genéticos em células de pulmão.
Quando são
expostas em laboratório a concentrações comparáveis de poluentes encontrados na
atmosfera amazônica em época de queimadas, células do pulmão humano sofrem
severos danos em seu DNA e param de se dividir. Após 72 horas de exposição,
mais de 30% das células em cultura já estão mortas.
O principal
responsável pelo estrago? Ao que tudo indica é o reteno, um composto químico
pertencente à classe dos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs).
As
conclusões são de um estudo publicado em 07/09/2017 na revista Scientific Reports por um grupo de
pesquisadores brasileiros.
“Não
encontramos na literatura científica informações sobre a toxicidade do reteno.
Espero que nossos achados sirvam como incentivo para que esse composto seja
melhor estudado e para que suas concentrações ambientais passem a ser reguladas
pelas organizações de saúde”, disse Nilmara de Oliveira Alves Brito, primeira
autora do artigo e bolsista de pós-doutorado da
FAPESP.
A pesquisa
foi conduzida sob a supervisão do professor Carlos Menck, do Instituto de Ciências
Biomédicas (ICB-USP), e Silvia Regina Batistuzzo, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Contou com a participação de Paulo
Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FMUSP), e de Paulo Artaxo, do Instituto de Física
(IF-USP), além de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Washington University em Saint
Louis, nos Estados Unidos.
“Ainda
durante meu mestrado, na UFRN, observei que a exposição das células do pulmão a
esse material particulado emitido pela queima de biomassa induzia mutação no
DNA de células de pulmão. O objetivo neste estudo mais recente foi investigar
os mecanismos pelos quais isso acontece”, disse Alves Brito.
De acordo
com a pesquisadora, o primeiro passo foi determinar a concentração de poluentes
a ser usada nos testes in vitropara
mimetizar a exposição sofrida por pessoas que moram no chamado “arco do
desmatamento” – 500 mil km² de terras que vão do leste e sul do Pará em direção
oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre.
Por meio de
modelos matemáticos, os pesquisadores calcularam a capacidade de inalação de
material particulado pelo pulmão humano no auge do período de queimadas, bem
como a porcentagem de poluentes que de fato se deposita no órgão. “A partir
dessa massa teórica, determinamos as concentrações que seriam testadas nas
culturas celulares”, disse Alves Brito.
Os
poluentes usados in vitro foram
coletados em uma área natural próxima a Porto Velho (RO) durante a estação de
queimadas, cujo pico ocorre entre os meses de setembro e outubro.
“Fizemos a
coleta com equipamentos que aspiram o ar e depositam o material particulado
fino – com diâmetro menor que 10 micrômetros – em um filtro. Nosso interesse
era estudar as partículas pequenas, pois são as que conseguem chegar nos
alvéolos pulmonares”, disse Alves Brito.
Como
explicou Artaxo, os filtros foram congelados logo após a coleta do material
particulado, uma vez que os compostos orgânicos encontrados na pluma de
poluição são extremamente voláteis.
“Esse
material foi levado para São Paulo e diluído em uma solução nutritiva, que
depois foi aplicada nas culturas. Foi usada a mesma proporção de poluentes
presente no ar respirado pela população em Porto Velho”, disse Artaxo.
As culturas
tratadas com a solução foram comparadas com um grupo de células-controle, que
recebeu apenas o solvente usado para extrair os poluentes do filtro. O objetivo
era confirmar que os eventuais efeitos adversos observados eram causados pelo
material particulado e não pelo solvente.
Pulmão com
fribrose
Ao entrarem
nos pulmões, partículas de queimadas da Amazônia aumentam o estresse oxidativo
e causam danos genéticos nas células.
Efeito imediato
Logo nos
primeiros momentos de exposição, as células pulmonares passavam a produzir
grandes quantidade de moléculas pró-inflamatórias. A inflamação era seguida
pelo aumento na liberação de espécies reativas de oxigênio (ROS) – substâncias
que provocam o chamado estresse oxidativo e que, em grandes quantidades,
danificam as estruturas celulares.
“Para
entender os caminhos que estavam levando a essa condição de estresse,
analisamos o ciclo celular e notamos que ele estava prejudicado pelo aumento na
expressão de proteínas como a P53 e P21. As células tinham parado de se
replicar, o que sugeria que danos no DNA estavam ocorrendo”, disse Alves Brito.
Por meio de
testes específicos, os pesquisadores confirmaram os danos genéticos. Graças ao
aumento na expressão da proteína LC3 e de outros marcadores específicos,
notaram também que as células estavam entrando em um processo de autofagia, ou
seja, estavam autodegradando suas estruturas internas.
“Todos
esses danos foram observados em apenas 24 horas de exposição. À medida que o
tempo passava, o dano genético aumentava e as células entravam em processo de
apoptose [uma espécie de morte celular não inflamatória] e de necrose [tipo de
morte em que a célula libera seu conteúdo interno, induzindo inflamação no
local]”, disse Alves Brito.
Enquanto na
cultura controle apenas 2% das células haviam morrido por necrose após 72
horas, na cultura tratada com os poluentes o índice chegou a 33%.
“Nem todas
as células morrem. Porém, as que sobrevivem continuam sofrendo danos em seu
DNA, o que pode predispor ao desenvolvimento de câncer no futuro”, comentou a
pesquisadora.
Antes mesmo
de iniciar o experimento com as culturas celulares, Alves Brito e colaboradores
concluíram uma análise das substâncias presentes no material particulado
coletado na Amazônia. A presença de diversos compostos da classe dos HPAs foi
identificada – muitos deles já são reconhecidos como carcinogênicos. Os
resultados dessa análise foram divulgados em 2015 na revista Atmospheric Environment.
“Observamos
que o composto em maior quantidade era o reteno. Decidimos, então, repetir o
experimento com as células usando essa substância de forma isolada, mas na
mesma concentração encontrada no material particulado. Observamos que o reteno
sozinho também induzia danos no DNA e morte celular”, disse Alves Brito.
Segundo
Artaxo, caso o número de células pulmonares mortas seja grande in vivo, podem surgir dificuldades
respiratórias e até mesmo doenças graves como enfisema pulmonar.
“Em um
estudo anterior, mostramos que a queda no desmatamento – que era de 27 mil km2
em 2004 e passou para 4 mil km2 em 2012 – evitou a morte de pelo
menos 1.700 pessoas por doenças associadas à poluição. O curioso é que a
maioria dessas mortes não teria ocorrido na Amazônia, mas no Sul do Brasil, por
causa do transporte a longa distância dos poluentes e também porque aqui a
densidade populacional é muito maior”, disse.
Alcance mundial
Embora o
reteno não seja emitido pela queima de combustíveis fósseis – principal fonte
de poluição em regiões urbanas no Brasil –, os pesquisadores destacam que esse
composto pode ser encontrado na atmosfera de cidades como São Paulo, em
decorrência provavelmente da queima de cana e de outros tipos de biomassa nas
proximidades.
No artigo,
os pesquisadores ressaltam que a maioria das pesquisas realizadas teve como
foco o papel dos combustíveis fósseis na poluição atmosférica. No entanto,
aproximadamente 3 bilhões de pessoas em todo o mundo estão expostas a poluentes
oriundos da queima de biomassa – decorrente de práticas agrícolas, desmatamento,
queima de madeira ou carvão para uso como combustível, em fogões ou aquecimento
residencial.
Um
relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em 2012 apontou que
aproximadamente 7 milhões de mortes – uma em cada oito ocorridas no mundo – era
resultado de exposição à poluição atmosférica.
“A
combinação de incêndio florestal e ocupação humana transformou a queima de
biomassa em uma séria ameaça à saúde pública. A maioria dos incêndios
florestais ocorre no arco do desmatamento, impactando diretamente mais de 10
milhões de pessoas na região. Muitos estudos identificaram severos efeitos na
saúde humana, como aumento na incidência de asma e elevação na morbidade e
mortalidade principalmente na população mais vulnerável, composta por crianças
e idosos”, apontam os autores. (ecodebate)
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