Terra Indígena Lagoa da
Encantada, do povo Jenipapo Kanindé: Uma guerra de baixa intensidade em defesa
da água.
A Pecém Agroindustrial S.A é
uma das empresas do Grupo Ypióca. Localizada em Aquiraz, município situado a 32
km de Fortaleza (CE), a empresa produz papel e papelão; assim como no caso da
cachaça, carro chefe do grupo desde o século XIX, a água é a matéria-prima na
produção de 70 toneladas por dia em bobinas de papel. Alegando prejuízo a este
negócio lucrativo, a empresa lutou na Justiça Federal pela anulação da Terra
Indígena Lagoa da Encantada, do povo Jenipapo Kanindé. Perdeu em todas as
instâncias, até a derrota definitiva no Supremo Tribunal Federal (STF), em 5 de
setembro de 2017. Os indígenas sequer tomaram conhecimento do julgamento em
curso, mas agora “não há mais nada que impeça a homologação e a retirada dos
posseiros. Para a gente o mais importante é que a Lagoa da Encantada e suas
águas estejam protegidas”, explica a cacique Pequena Jenipapo Kanindé.
O Grupo Ypióca argumentou, em
todo o percurso processual, que ainda contou com acachapante derrota no
Superior Tribunal de Justiça (STJ), que as partes interessadas não tinham sido
ouvidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A “injustiça” reclamada, no
entanto, era nada mais do que uma construção narrativa usada para o grupo
seguir exaurindo as águas situadas na terra Jenipapo Kanindé, com destaque para
a Lagoa da Encantada – local sagrado para o povo. A Lagoa secou entre 2009 e
2010 devido às investidas depredatórias provocadas pelas necessidades de
produção da Pecém Agroindustrial. A lagoa passou a se recuperar nesta década,
quando os indígenas enfrentaram o poder econômico e político da Ypióca
impedindo a retirada de água. A resposta veio com a criminalização de
lideranças e apoiadores, envolvendo jornalistas e pesquisadores acadêmicos.
Conforme a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), no ano de 2025, 1,8
bilhão de pessoas viverão em países ou regiões com falta de água, e 2/3 da
população poderão enfrentar a escassez total. Para a própria ONU, desde 2010,
resolução diz que o acesso à água potável do mundo e ao saneamento básico são
direitos humanos fundamentais. No último Fórum Econômico Mundial de Davos,
ocasião em que os mais ricos países e pessoas físicas do planeta se reúnem nas
montanhas suíças, as classes dominantes internacionais tiveram que admitir o
que a FAO estima: 70% de toda a água doce disponível no planeta (1% desta água
é acessada pelos seres humanos) é consumido pela agropecuária de larga escala.
Conforme estudos do físico e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC),
Alexandre Costa, este percentual está em 60% nas terras cearenses; em 2015,
durante entrevista à Agência Brasil, o diretor de Operações da Companhia de
Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (Cogerh), Ricardo Adeodato, estimou que
70% da água dos reservatórios são usados pelo agronegócio. Ou seja, situações
como a dos Jenipapo Kanindé mostram que outras torneiras estão abertas na
cadeia agroindustrial adensando ainda mais o que o professor Alexandre Costa
chama de “injustiça hídrica”.
Lagoa da Encantada, do povo
Jenipapo Kanindé: águas sagradas exploradas quase até a última gota pelo Grupo
Ypioca.
Entre dunas e o que restou de
mangues e mata nativa, os Jenipapo Kanindé, conhecidos como Cabeludos da
Encantada, se mantiveram em situação de pouco contato com a sociedade
envolvente até meados da década de 1980. Hoje fazem parte de um cenário de
intensa disputa na região litorânea do Ceará, chamada pelos indígenas de a
Guerra da Água. Esta guerra de baixa intensidade envolve ainda o povo Anacé, no
Lagamar do Cauípe, que, em fevereiro deste ano, sofreu uma ação violenta da
Polícia Militar durante ocupação ao canteiro de obras que visa desviar 900 mil
litros por segundo de água do rio Cauípe direto para o Complexo Industrial e
Portuário do Pecém (CIPP), no município de Caucaia, na Região Metropolitana de
Fortaleza. As águas serão utilizadas para matar a sede insaciável das duas
maiores termelétricas da América Latina, além de uma siderúrgica.
O que aponta para um outra
informação sustentada não apenas pela FAO, mas no Brasil pelas organizações que
compõem a campanha Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida: a questão central não é a
escassez da água em seus termos gerais, “e sim um processo de exploração
intensa e apropriação da água” (Le Monde Diplomatique, 2018). Neste ponto
entram os conflitos nos quais estão envolvidos os povos indígenas, quilombolas,
ribeirinhos e demais comunidades tradicionais. Até mesmo o Vaticano já
demonstrou preocupações diante do quadro. Na Encíclica Ladauto Si., o Papa
Francisco afirma: “Enquanto a qualidade da água disponível está em constante
deterioração, há uma tendência crescente em alguns lugares de privatizar este
recurso limitado(…). Espera-se que o controle da água por grandes empresas
globais torne-se uma das principais fontes de conflito neste século”. Os povos Jenipapo
Kanindé e Anacé (leia retranca) já vivem tal realidade.
Estes apontamentos críticos à mercantilização da
água estiveram presentes no Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama) – 2018,
ocorrido em Brasília (DF), entre os dias 17 e 22 de março. “No Chile avançam os
empreendimentos minerais, no Brasil querem privatizar a água, e na Argentina
avançam as lavouras de soja transgênica e seus agrotóxicos. Em todo o
continente latino-americano a exploração de petróleo e o desmatamento poluem,
destroem e ameaçam a vida de camponeses, quilombolas, povos tradicionais e
comunidades pobres”, disse durante o encontro Ivan Emiliano Manzo, do movimento
Pátria Grande, da Argentina. O Fama faz contraposição e é organizado de forma
paralela ao Fórum Mundial da Água, onde países e multinacionais privadas se
reúnem para analisar e executar maneiras mais eficientes de comercializar este
direito humano fundamental.
Cacique Pequena
Jenipapo Kanindé lidera uma luta histórica que começou com os Cabeludos da
Encantada, comunidade que vivia em situação de pouco contato com a sociedade
branca.
Jenipapo Kanindé e a
luta pela Lagoa
A luta dos indígenas Jenipapo
Kanindé pelo território tradicional teve como motivação, no início da década de
1980, a exploração da Lagoa da Encantada pelo Grupo Ypióca e demais invasores,
incluindo a Prefeitura de Aquiraz que passou a lotear terrenos para a venda.
Como no período os indígenas tinham pouco contato com a sociedade envolvente,
vendiam pedaços de terra por preços irrisórios. “Foi nesse tempo que começamos
a briga com a Ypióca. Não queriam deixar a gente chegar na água. A Ypióca
comprou um terreno na beira da Lagoa e colocou o encanamento que seguia até a
fábrica. Essa briga doida dura até hoje”, aponta cacique Pequena Jenipapo
Kanindé.
Antes deste período, o povo
vivia numa situação quase de isolamento. Não dependiam de nada fora do
território, tirando o sustento da terra, das lagoas e do mar. “Nunca saímos
daqui. Lagoa da Encantada e o Saco do Marisco. Vivíamos na beira da Lagoa.
Outros mais do lado do mar. Vivíamos bem, uma vida livre e descansada. Chegava
da maré, lagoa ou da mata com as comidas e cozinhávamos. Nosso café era o
almoço: peixe fresco com pirão de beiju, feito no caco. Bebíamos o caldo do
peixe. O café de manjerioba era sobremesa, adoçado com rapadura. Assim cada
qual ia trabalhar; cavar chão, plantar melancia, jerimum, batata, mandioca. Até
o início de 1980, vivíamos dessa forma. Nos anos 70 começaram a comprar terras,
mas nos anos 80 os confrontos começaram de verdade”, diz cacique Pequena.
A liderança explica que cinco
raízes compõem o povo: “Pedi para o presidente da FUNAI, na minha primeira ida
à Brasília, em 1995, para mandar a equipe de demarcação. O Grupo de Trabalho
chegou aqui em 1997. Estudaram a gente, os povos que formam os Jenipapo
Kanindé. Éramos conhecidos como os Cabeludo da Encantada, mas tínhamos mais
quatro raízes: Payaku, Tapuia (povos enquadrados na denominação colonial
Tapuia), Jenipapo e Kanindé. São essas cinco raízes que formam o povo Jenipapo
Kanindé”, explica Pequena.
Em 2011, o Relatório
Circunstanciado foi publicado com 1734 hectares. O Grupo Ypióca decidiu entrar
com ação na Justiça Federal pedindo a suspensão dos efeitos da portaria de
demarcação. Em setembro o processo teve um ponto final na Corte Suprema, com o
ministro Luís Roberto Barroso declarando que o procedimento demarcatório
respeitou as normas previstas na Lei 6.001/1973 e no Decreto 1.775/1996 sendo,
portanto, declarado inviável o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (RMS)
34563, em que a empresa Pecém Agroindustrial Ltda. sustentava que os estudos da
Funai teriam desrespeitado os princípios do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal.
“Quando começou a briga com a
Ypióca, fomos recuando e recuando. Outros grupos atacaram nosso território,
posseiros, a Prefeitura, invasores de todo jeito. O Centro de Defesa dos
Direitos Humanos da Diocese de Fortaleza veio mostrar pra gente que tínhamos
direitos. Então começamos a nos sentir mais empoderados. Quando a FUNAI chegou aqui
registrou nossos nomes indígenas, nossas famílias. Somos apenas uma família,
casamos entre nós mesmos. O relatório antropológico comprovou a nossa terra,
mesmo porque você andava por aqui e achava um bocado de gênero velho, que, como
dizem, é arqueológico. Até hoje se procurar acha, mas antes ficava por cima de
tudo mesmo. Era só andar pra achar. Montanhas de cascas de mariscos, das coisas
dos índios antigos”, pontua Pequena.
A Ypióca, durante todo o
conflito, seguiu querendo tomar conta, usando de influência política e poder
econômico. Ofereceram R$ 7 mil para as famílias em troca da água. Os indígenas
não aceitaram. Até o então governador Cid Gomes baixou na área, de helicóptero
e acompanhado dos executivos da empresa, para pressionar o povo. “A Ypióca
Puxou tanta água que a Lagoa ficou no prato, só nas poças. Quando eu vi aquilo
eu chorava muito. Isso foi entre 2009 e 2010, secaram a lagoa. Os meninos (dois
filhos e um genro de Pequena) foram fazer barragem para não permitir que o
restinho de água fosse pra empresa. Foram processados, assim como um jornalista
e um pesquisador”, denuncia Pequena.
Outra lagoa, chamada de Tapuio, também
localizada no interior da terra indígena, foi explorada. Abastecia a cidade de
Pindoretama, sem nenhuma contrapartida aos indígenas. Quando a luta pela terra
teve início, a iniciativa privada entrou com processos para retirar água à
força, sem o consentimento dos indígenas, mas não prosperou e logo Tapuio ficou
apenas para os Jenipapo Kanindé. Ao contrário da Lagoa da Encantada. “Hoje
temos mais o controle, mas sabemos que ainda retiram água. Quando se descobre,
uma turma de guerreiros vai até o local e retira as mangueiras. Mas a gente
teme pela vida, que façam alguma maldade. Esperamos agora que a demarcação
finalize e os invasores e posseiros sejam retirados das nossas terras”, conclui
a cacique Pequena, histórica liderança dos povos indígenas do Nordeste.
De cocar, a liderança
Climério Anacé. Povo luta contra o Complexo do Pecém e sua cadeia produtiva de
devastação e morte.
Outros
empreendimentos
Eraldo Alves, mais conhecido
como Preá, é um dos filhos de cacique Pequena. Era um garoto magricela e
cabeludo quando a luta pela terra e pela água teve início nas dunas e matas que
hoje ele percorre de forma satisfeita, como costuma dizer. Preá faz um
parêntese quando questionado sobre a briga com a Ypióca, a qual empurrou para o
juízo dele a preocupação de um processo judicial. “Entre 1999 e 2003 tinha aqui
o Aquiraz Resort, um empreendimento que queria construir cinco hotéis de quatro
estrelas. Não aceitamos. A Ypióca foi apenas um dos problemas. Só que em 2004
fomos pensar como era que a gente ia trabalhar um turismo de base comunitária,
inclusive para conscientizar a sociedade sobre a nossa luta. Começamos em 2005
com a formação de 28 jovens Jenipapo Kanindé para trabalhar nesse turismo. Hoje
fazemos parte de uma rede. Trazemos a população numa ideia de turismo que
mostra as raízes deste país”, pontua Preá.
Na frente do Museu Indígena
Jenipapo Kanindé, parte do circuito turístico comunitário, existe uma frondosa
mangueira. Abaixo dela pajé João Batista Alves, relaciona a água e a terra no
acervo ritualístico do povo: “Nosso ritual sagrado é um fortalecimento
espiritual. Buscamos as forças dos nos nossos ancestrais. A nossa terra tá no
processo de demarcação, e como ganhamos no STF a demarcação deverá ser
concluída. Nós pajés temos o nosso momento de encantamento. Vamos rezar na
mata. Nos encantamos junto com a caipora, com os encantados da Lagoa. Acho que
isso explica a razão de tanta defesa da terra e das águas”.
Conclui o pajé: “A nossa
Encantada é uma mãe pra nós. Sempre foi. Para os índios Jenipapo Kanindé é como
uma mãe. Sempre trouxe o bem estar das pessoas, a Lagoa. Tem seus poderes, suas
histórias e suas riquezas. Ao redor, e nela mesma. A luta da terra indígena
começou pela luta da Lagoa da Encantada. E hoje ainda nós lutamos, é um
patrimônio nosso”.
Em dez dias, povo
Anacé sofre dois despejos envolvendo a questão da água.
Climério Anacé é uma jovem
liderança da Terra Indígena Anacé, cujo processo de demarcação está paralisado
desde a publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação.
Climério e seu povo lutam por 8.712 hectares de terra tradicional, no município
de Caucaia (CE), mas atualmente vivem em menos de 1 mil hectare divididos entre
as aldeias Japuara, Tabuleiro Grande, Jacurutu, Santa Rosa e Lagoa do Barro.
Outra parte do povo Anacé, das aldeias Matões e Bolso, foram levados para a
Reserva Taba dos Anacé – a degradação causada pelo Complexo Industrial e
Portuário do Pecém foi tamanha que as áreas em que estas aldeias estavam não
entraram na demarcação.
Nesta região envolvente e
integrada ao território Anacé, está parte do ecossistema hídrico do Lagamar do
Cauípe, o rio Cauípe e dezenas de lagos e lagoas, entre elas uma que dá nome à
aldeia Lagoa do Barro. “Retomamos áreas desta nossa aldeia. A Justiça Estadual
concedeu a reintegração de posse ao posseiro. Nossos advogados representaram
afirmando que a competência é Federal, por se tratar de povo indígena. O juiz
declinou da competência, mas não suspendeu a liminar”, explica Climério Anacé.
No dia 19 de janeiro, o
Comando Tático Motorizado (Cotam) da Polícia Militar do Ceará chegou na aldeia
sem nenhum diálogo. “Até esse dia eu era um homem, agora não sei mais. A
humilhação de você ser expulso de uma terra que é sua, ver o seu povo sendo
despejado. Tentamos segurar o máximo, mas a truculência era grande. Voltamos
para a aldeia Japuara”, diz Climério. A Lagoa do Barro é uma localidade de interesse
hídrico e faz parte de um complexo de lagos fechados por latifundiários que
insistem em se apossar das terras do povo Anacé.
Ernani Viana é dono de 80% do
território Anacé identificado. Político da velha guarda (chegou a integrar o
Arena, partido alinhado ao regime militar), agropecuarista, dono de imobiliária
e comércios, Viana, conforme listagem dos indígenas apresentada ao Ministério
Público Federal (MPF), teria privado o acesso dos Anacé aos recursos hídricos
da terra tradicional. “São cerca de 20 lagos que foram fechados. Fora todo o
desmatamento e os projetos de resorts, condomínios fechados”, destaca Climério.
Dez dias depois da
reintegração de posse, o governo estadual de Camilo Santana (PT) conseguiu na
Justiça Estadual o despejo dos Anacé que ocuparam durante 90 dias (ver página
16) o canteiro das obras que visam transpor as águas do rio Cauípe para o
Complexo Industrial e Portuário do Pecém (leia entrevista). “É uma área que não
está dentro do que reivindicamos, portanto se tratou de uma ocupação realizada
às margens do rio, onde estavam os canos pra captar a água”, explica Climério.
A polícia chegou também sem muito diálogo, conta o indígena. “É uma obra ilegal
porque o governo disse que a água seria para abastecer municípios do entorno, mas
na verdade vai para o Complexo do Pecém. A autorização só ocorreu porque era
para uso humano, não industrial. São 900 mil litros por minuto que sairão do
rio. Será a morte dele, do meio ambiente e a nossa”, critica Climério Anacé.
(RS)
Pajé João e os relatos da Lagoa
da Encantada na cosmologia Jenipapo Kanindé.
Pajé João e as histórias da
Lagoa da Encantada
A Lagoa da Encantada compõe o
acervo de histórias contadas desde os troncos velhos entre as cinco raízes que
compõem o povo Jenipapo Kanindé, sobretudo os Cabeludos da Encantada. Hoje quem
as conta aos mais jovens, animando as noites de ritual ao redor da fogueira, é
o pajé João. Nos contos, a Lagoa transporta os indígenas do presente ao passado
ou ao futuro, como uma máquina do tempo; não sem um elemento típico das
mirações de ayahuasca amazônica ou da Jurema, mais comum no Nordeste, a Lagoa é
uma entidade espiritual, uma Encantada, viva e repleta de revelações.
Conta pajé João que certa vez
a Lagoa virou cidade. Dois indígenas chegaram na beira da Lagoa. Um vigiaria os
movimentos e o outro leria um enorme livro; o volume batia as mil páginas.
Ambos fizeram um pacto: não poderiam “se admirar” diante do que vissem sob
risco da miração se acabar. Era necessário ter concentração, não se deixar seduzir.
Tão logo o indígena passou a ler o livro, o que acontecia na história
imediatamente ganhava formas na Lagoa. No caso, a Lagoa virou uma cidade,
deixando de ser água para ser concreto. Apareceram os postes de luz, carros,
faróis altos. O Morro do Sagrado virou uma Igreja, com uma praça muito bonita
na frente. Ruas, barulho, poluição, prédios, arranha-céus, viadutos, pontes,
trânsito, milhares de pessoas nas calçadas. Passaram-se horas e horas de
leitura; uma cidade complexa se formou. Dada uma parte avançada do livro, o
indígena que vigiava “se admirou”. Tão logo a cidade se desencantou e tudo
voltou ao normal: mato, Lagoa, água e terra.
Na mesma Lagoa, conta outra
história pajé João, uma serpente de ouro se formou nas águas da Lagoa. Os
mesmos indígenas estavam às margens do local sagrado, com o imenso livro nas
mãos. Fizeram o mesmo pacto: um vigia, outro lê e ambos não “se admiraram”. Um
deles abriu a pesada capa dura e passou a lê-lo. Um navio emergiu debaixo das
linhas d’água da Lagoa, com uma orquestra tocando acima. Era dourado, todo
banhado em ouro. A música compunha uma linda melodia. Caminhando por eles os
indígenas viam as pessoas, todas banhadas a ouro, conversando educadamente
enquanto bebiam e admiravam a orquestra. Até que surge uma grande serpente de
ouro. Quando a boca se abriu em um ângulo de 180°, mostrando as enormes presas
de um ouro maciço e brilhante, para engolir o navio, um dos indígenas “se
admirou” e correu até se ver com a água da Encantada pela cintura. Tudo tinha
voltado ao normal. (RS)
“A segurança hídrica das
empresas é garantida pela insegurança hídrica das populações indígenas”
O deputado estadual Renato
Roseno (PSOL) se tornou um destacado aliado da causa indígena, na Assembleia
Legislativa do Ceará, contra a insegurança hídrica e a pressão territorial
sofrida pelos povos indígenas.
Crítico do modelo de
desenvolvimento adotado pelo governo de Camilo Santana (PT), denuncia os
efeitos nocivos das políticas depredatórias da atual gestão em prol de uma
lista de privatizações e concessões.
“Há uma intensificação dos
conflitos. A segurança hídrica que essas empresas requerem é garantida pelo
governo às custas da insegurança territorial e hídrica das populações
tradicionais”, afirma Roseno.
Leia os principais trechos da
entrevista:
Porantim – Por que no Ceará há
tantos conflitos envolvendo a questão hídrica?
Renato Roseno – O modelo de
desenvolvimento no Ceará tem privilegiado, com investimentos públicos e de
infraestrutura, renúncia fiscal e benefícios tarifários, a atração de grandes
empresas. O Complexo Industrial e Portuário do Pecém se inscreve nessa agenda.
Só que é uma agenda velha, destrói o meio ambiente, é hidrointensiva (num
estado em que 97% dele está no semiárido, ou seja, suscetível a estiagens),
além de elevar, e muito, a exclusão espacial e socioeconômica de povos
tradicionais.
O que está acontecendo com os
Anacé é a repetição desse modelo de desenvolvimento, agora mais impactado pelo
Complexo Industrial e Portuário, que é a joia da coroa da lista de
privatizações e concessões do governo Camilo Santana (PT). Há uma
intensificação dos conflitos. A segurança hídrica que essas empresas requerem é
garantida pelo governo às custas da insegurança territorial e hídrica das
populações tradicionais. Incluindo os Anacé.
Porantim – Na última década,
grandes empreendimentos no Brasil foram executados sem todas as licenças ou com
muitos problemas…
Renato Roseno – Os
empreendimentos do Complexo Industrial e Portuário foram licenciados
individualmente, mas não há o licenciamento (cumulativo) sinérgico. Existe uma
resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que determina que
quando um empreendimento é formando por vários empreendimentos, deve haver um
licenciamento sinérgico. Isso não ocorreu. Existe um percurso histórico que
chega a tal situação. Desde os anos 90 acompanhamos a elevação dos conflitos
nos territórios, com agricultura familiar, a elevação da migração, disputa pela
água, destruição do meio ambiente, poluentes lançados na atmosfera e nos
afluentes hídricos e agora mais recentemente a pressão sobre o povo indígena
Anacé para que não ele não conquiste a sua terra e entre nessa instabilidade
hídrica.
Porantim – Como o senhor tem
acompanhado a luta dos Anacé?
Renato Roseno – Os Anacé têm
uma larga capacidade de solidariedade. Um conjunto de forças se mobiliza ao
redor das demandas do povo, incluindo o meu gabinete. Ações populares,
construída pelo povo e advogados populares, ações civis públicas dos
ministérios públicos Estaduais e Federal, ações civis públicas das defensorias
Estaduais e da União. São ações que abordam as questões da água, em função das
obras no Lagamar do Cauípe e na Lagoa do Barro, além da questão da demarcação.
MPF e MPE, Defensorias e advogados populares. Há este conjunto de medidas
judiciais tramitando nas justiças Estadual e Federal.
Lamentavelmente o Tribunal de Justiça suspendeu
duas liminares que barravam a obra de extração de água do Lagamar do Cauípe e
os poços. Foram duas liminares da Justiça Estadual, em Caucaia e São Gonçalo do
Amarante; houve um Pedido de Suspensão de Liminar (PSL) do governo Camilo
Santana e esse pedido foi atendido no TJ nos primeiros dias de janeiro.
Porantim – O caso apresenta
também irregularidades?
Renato Roseno – As liminares
foram suspensas, mas o mérito das obras está em litígio. Nós argumentos que são
obras completamente ilegais: não houve consulta como determina a Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não houve estudo prévio de
impacto ambiental, a autorização ambiental dada pela APA (Área de Proteção
Ambiental) do Lagamar do Cauípe foi uma autorização para abastecimento humano,
não para as indústrias. Na outorga da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos
do Ceará (Cogerh), está claro que será para o Complexo Industrial e Portuário
do Pecém. Uma sucessão de ilegalidades. (RS) (ecodebate)
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