Como o mesmo Brasil que
alimenta 1 bilhão ultrapassou 10 milhões de famintos 'dentro de casa'?
Apesar de 'Brasil contribuir
para que mundo continuasse alimentado', como disse Bolsonaro na ONU, IBGE diz
que fome atinge níveis alarmantes no país, especialistas explicam a
contradição.
BBC:
Apesar do ‘Brasil contribuir para que mundo continuasse alimentado’, como disse
Bolsonaro na ONU, IBGE diz que fome atinge níveis alarmantes no país -
especialmente no campo.
Um dos pontos mais
importantes — e menos comentados — do discurso do presidente Jair Bolsonaro na
Assembleia Geral da ONU, em 22/09/20, se referia à produção de alimentos.
"No Brasil, apesar da
crise mundial, a produção rural não parou. O homem do campo trabalhou como
nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O
Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado", afirmou o
presidente. "Garantimos a segurança alimentar a 1/6 da população mundial. O
Brasil desponta como o maior produtor mundial de alimentos."
A fala se choca com dados
divulgados pelo IBGE menos de uma semana antes da fala do presidente.
Mais de 10 milhões de
brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave, segundo o órgão.
Em outras palavras, essa multidão — que inclui crianças — literalmente passa
fome no Brasil.
A pesquisa, que se refere aos
anos de 2017 e 2018, também aponta que o total de pessoas com alimentação em
quantidade suficiente e satisfatória no Brasil é o mais baixo dos últimos 15
anos. O total de brasileiros que passam fome cresceu, segundo o órgão, em 3
milhões de pessoas em cinco anos.
Os dados chamam ainda mais
atenção quando postos em perspectiva: em 2014, quatro anos antes da coleta dos
dados agora divulgados, o Brasil oficialmente saiu do Mapa da Fome das Nações
Unidas, em uma conquista aplaudida pelo mundo inteiro.
A BBC News Brasil conversou
com alguns dos principais especialistas do país em temas como acesso à
alimentação adequada e fome para responder a seguinte pergunta:
Como, afinal, o mesmo país que alimenta boa parte do planeta tem
ao mesmo tempo tantos milhões de famintos?
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF) do IBGE, divulgada em 17/09/20, 10,3 milhões de brasileiros passavam fome
durante o levantamento — um aumento de 3 milhões de pessoas sem acesso normal a
refeições em 5 anos.
3 milhões de pessoas se
somaram aos que passam fome no Brasil em 5 anos.
A conta não inclui pessoas em
situação de rua.
Segundo o estudo, a
insegurança alimentar grave no Brasil é registrada principalmente em áreas
rurais: 23,3% da população urbana passam fome, enquanto 40,1% da
população rural atravessam a mesma situação.
Ainda segundo o IBGE, quanto
mais moradores viverem em um domicílio, maior será a chance de haver fome ali.
Do total de brasileiros que passavam fome no período da pesquisa, a maioria
vivia na região Nordeste, seguida pelo Sudeste e pelo Norte.
O IBGE divide o conceito de
insegurança alimentar em 3 categorias.
A insegurança leve acontece
quando a família não tem certeza se terá acesso a alimentos no futuro, e quando
a qualidade da comida já é ruim. Diz o IBGE: "Nesse contexto, os moradores
já assumem estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos
disponíveis. Trocar um alimento por outro que esteja mais barato, por exemplo".
Já a insegurança moderada
surge quando os moradores já têm uma quantidade restrita de alimentos — menos
comida na despensa do que o satisfatório.
Por fim, a insegurança grave
aparece, nas palavras o IBGE, "quando os moradores passaram por privação
severa no consumo de alimentos". É nesta categoria que se encaixa a
definição tradicional de fome.
Considerando os três tipos de
insegurança, o estudo mostra que o problema do acesso a alimentação de
qualidade também é grave. Segundo o IBGE, "pelo menos metade das crianças
menores de cinco anos viviam em lares com algum grau de insegurança
alimentar".
Isso equivale a 6,5 milhões
de crianças. Quando a referência é insegurança grave — ou fome — 5,1% das
crianças com menos de 5 anos e 7,3% das pessoas com idade entre 5 e 17 anos
vivem nessa condição.

Pesquisa do IBGE mostra que a
fome voltou a crescer no Brasil.
Raio-x da produção de alimentos no Brasil
Diferentemente do que o
presidente Jair Bolsonaro afirmou, o Brasil não é o primeiro, mas o terceiro
maior produtor de alimentos do planeta — com mais de 240 milhões de toneladas
no ano passado, ficando atrás apenas da China e dos EUA.
Segundo a ABIA, Associação
Brasileira da Indústria de Alimentos, o Brasil exportou comida para mais de 180
países, movimentando 34,1 bilhões de dólares no ano passado.
A maior parte, 36,8%, foi
para a Ásia, principalmente para a China. Em seguida vinham União Europeia
(18,8% das exportações) e Oriente Médio (14,3%).
Segundo a associação, o
Brasil é o segundo exportador mundial de alimentos industrializados em volume e
o quinto em valor.
É também o primeiro produtor
e exportador mundial de suco de laranja; o segundo produtor e primeiro
exportador mundial de açúcar; o segundo produtor e primeiro exportador mundial
de carne bovina e de carne de aves.
Mas é importante diferenciar
a origem dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro e para as prateleiras
no exterior.
Segundo o último censo
agropecuário do IBGE, 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da
agricultura familiar. Eles são produzidos em terras pequenas, com geralmente
entre 1 e 2 hectares, administradas por pessoas da mesma família que costumam
produzir para consumo próprio e vender o excedente.
Diferentemente das grandes
monoculturas de soja ou café, ou dos grandes pastos da pecuária do agronegócio,
a agricultura familiar é marcada pela diversidade de alimentos: de mandioca e
hortaliças a milho, leite e frutas.
É graças a ela que o prato do
brasileiro pode ser farto e colorido, como recomendam nutricionistas.
Já o agronegócio, de outro
lado, abarca os maiores produtores do país e contribui com mais de 60% da
balança comercial do país.
Com representantes em todos
os níveis da política nacional, o agronegócio tem produção principalmente
destinada à exportação.
Agronegócio x agricultura familiar
Daniel Balaban, diretor do
Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU no
Brasil, diz que o nome do agronegócio, não à toa, é "negócio".
"O agronegócio vai aonde
pagam mais, aonde ele tem mais lucro. O dólar a R$ 5,50, um dólar
supervalorizado, fez com que o produto brasileiro ficasse muito barato para
exportação, principalmente a China, que compra muito, fora outros mercados como
Rússia. Fica muito barato para eles comprarem e o retorno é bom para o
exportador", afirma.
Já o Kiko Afonso, Diretor
Executivo da Ação da Cidadania, fundada pelo sociólogo Betinho (Herbert de
Souza) em 1993 para combater a fome e a miséria no país, diz que a política de
agricultura brasileira se orienta para as exportações.
Nas palavras de Afonso, isso
pode ser "bom para a balança econômica, mas é péssimo para o consumo
local, principalmente para as populações mais vulneráveis".
"Você soma dois grandes
fatores: uma política de governo que olha para o agronegócio e a exportação em
detrimento do pequeno produtor, o que encarece o alimento, e uma segunda
vertente de desigualdade social absurda, onde grande maioria da população vive
com um salário abaixo de uma média aceitável para se sobreviver", diz.
"Os dois elementos em conjunto geram uma
diminuição do poder de compra das famílias e obviamente dificuldade para a
aquisição de alimentos".
Quando a referência é insegurança grave — ou fome — 5,1% das
crianças com menos de 5 anos e 7,3% das pessoas com idade entre 5 e 17 anos
vivem nessa condição no Brasil.
Atenção ao pequeno produtor
Os especialistas destacaram à
BBC News Brasil que a atenção destinada por governos à agricultura familiar,
que põe comida na mesa do brasileiro, vem diminuindo no Brasil.
"A ONU acompanha há
muito tempo todos os países e o Brasil é um deles", diz Balaban. "Com
a diminuição das políticas de fomento aos agricultores familiares, é intrínseco
o aumento do número de pessoas passando fome."
Ele cita o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA), que no passado chegou a ter orçamento superior a
1 bilhão de reais e foi duramente cortado até que, no governo de Michel Temer, encolheu
de R$ 478 milhões para R$ 294 milhões.
Pelo programa, o governo
compra alimentos de pequenos produtores e os distribui para pessoas de baixa
renda. Em meio à pandemia, o governo Bolsonaro anunciou R$ 500 milhões para uma
retomada do PAA.
"O Pronaf, Programa de
Apoio ao Agricultor Familiar, diminuiu bastante o número de empréstimos com
juros subsidiados para eles comprarem a sua produção, fertilizantes, sementes.
E outros programas, por exemplo, de captação de água da chuva com cisternas,
também caíram drasticamente", diz o especialista da ONU.
"Essa população do campo
é muito vulnerável, então ela precisa que esteja sempre sendo incentivada e
apoiada por políticas públicas do governo."
Afonso, da Ação da Cidadania,
concorda.
"É sempre importante
lembrar que esse governo extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar (Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Consea), justamente o órgão que
dialogava com a sociedade civil na construção de políticas de segurança
alimentar no Brasil", afirma.
Por medida provisória em
janeiro do ano passado, Bolsonaro extinguiu o conselho, criado em 1993 como
parte da criação de um marco legal para o combate a fome.
O órgão era formado por 60
voluntários — 40 representantes de ONGs e movimentos sociais e 20 do governo.
"A situação é muito
grave, e estamos falando de muita gente que pode morrer de fome no
Brasil", diz Afonso. "Isso é inaceitável. Nosso fundador, o Betinho,
sempre dizia que a fome é uma das piores, se não a pior, indignidade que o ser
humano pode ter; E a gente luta justamente para que isso não aconteça".

Segundo o último censo agropecuário do IBGE, 70% dos alimentos
consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar.
Por que há mais fome no campo?
A fome, segundo o IBGE, se
concentra justamente nas regiões rurais — aquelas onde se produz a comida.
Marcelo Neri, professor da
FGV, ex-presidente do IPEA e ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República entre 2013/2015, diz que ‘o morador do
campo é mais pobre, produz alimentos, mas não ganha o suficiente para
comprá-los’.
"Em 2019, 53% dos 20%
mais pobres e 10% dos 20% mais ricos brasileiros declaravam que faltava
dinheiro para alimentação. Já no resto do mundo, os números eram 48% nos 20%
mais pobres e 21% nos 20% mais ricos", diz o professor.
"Ou seja, nossos mais
pobres têm hoje mais insegurança alimentar que no mundo, enquanto nossos mais
ricos têm menos. É a famosa desigualdade tupiniquim."
Os demais especialistas
também apontam a precariedade vivida no campo.
"O Brasil teve muitas
políticas de ajuda aos pequenos agricultores familiares no passado. E essas
políticas perderam força nos últimos governos: já no final do governo da Dilma,
Temer e agora. Praticamente estão, vamos dizer muito pequenas as políticas de
apoio aos pequenos. Isso faz com que, além deles diminuírem a produção ou não
comerem, acaba trazendo fome ao campo", avalia Balaban, da ONU. "Se o
trabalho já é precarizado nas regiões urbanas e vem se precarizando cada vez
mais, especialmente num governo que nos últimos anos tem lutado, por exemplo,
contra as fiscalizações de trabalho análogo à escravidão no campo, você imagina
o grau de desigualdade social vista no campo no Brasil", pondera Kiko
Afonso. "Elas acabam tendo que migrar ou para centros urbanos, para
morarem em favelas e regiões super pobres, porque são pessoas que vieram do
campo e têm enorme dificuldade de adaptação nas grandes cidades, ou elas têm
que se adequar e trabalhar para o grande agronegócio, que obviamente tem foco
em lucrar o máximo possível. Vemos a manutenção de uma visão escravocrata do
país onde o trabalhador do campo é super desvalorizado".

"A situação é muito grave e estamos falando de muita gente
que pode morrer de fome no Brasil".
Fome no contexto da pandemia
Como o avanço da pandemia do
novo coronavírus afeta o cenário da fome no Brasil?
Uma pesquisa da FGV divulgada
em julho mostrou que a faixa da população que vive em extrema pobreza caiu de
4,2% para 3,3% da população, a menor taxa dos últimos 40 anos no Brasil.
"É triste dizer isso,
mas o Brasil tem uma renda média de R$ 480. De repente, quando 65 milhões de
pessoas receberam R$ 600 na sua conta, o Brasil diminuiu incrivelmente, durante
este período dos recursos emergenciais, o número de pessoas abaixo da linha da
pobreza", diz Daniel Balaban, do Centro de Excelência contra a Fome do
Programa Mundial de Alimentos da ONU.
A extrema pobreza se refere a
quem vive com menos de US$ 1,90 por dia, ou R$ 154 mensais.
O resultado, no entanto, não
é razão para comemoração.
"Se a gente já tinha
antes mais de 80 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar,
seja leve, moderado ou grave, esse número certamente vai aumentar, e a gente
estima que supere a casa dos 100 milhões, o que seria o maior número da
História do Brasil", estima o representante da Ação da Cidadania.
"A recessão e a crise
não vão ser resolvidas no curto prazo nem no Brasil nem em qualquer lugar do
mundo, o desemprego já é quase recorde, e a gente vê que o auxílio emergencial
é insustentável no modelo atual criado pelo governo dos últimos anos que
praticamente amarrou qualquer investimento", ele afirma.
Balaban completa: "O
problema todo é que quando os recursos emergenciais acabarem, volta-se ao
problema anterior, porque o problema anterior era estrutural, e esse recurso é
emergencial. Foi extremamente importante, só que acaba".
Marcelo Neri, da FGV, vai
além.
"Segundo nosso último
levantamento apesar da queda de renda do trabalho recorde de 20,5% na pandemia,
cerca de 13,1 milhões de pessoas saíram da pobreza em plena pandemia, O que
explica este paradoxo é a "generosa" concessão do auxílio emergencial
que chegou a 67 milhões de brasileiros ao custo de 322 bilhões de reais durante
2020", afirma.
"O problema é que o
auxílio termina em 31 de dezembro e aí não só os ex-probres vão voltar a
condição inicial como terão a companhia de outros novos pobres deslocados pela
pandemia."
O avanço da fome surpreende?
A resposta unânime é
"não".
"Os números da POF,
infelizmente para a Ação da Cidadania, não surpreendem. A gente sabia da
dimensão das famílias que estavam nos pedindo alimento em vez de educação,
saúde, etc. Quando a pessoa abre mão desses outros direitos para pedir comida,
é porque a situação realmente está muito grave", diz Kiko Afonso.
"Infelizmente,
especialmente no Brasil, esses problemas que são dramas, não são tragédias, têm
pouca visibilidade."
Já Marcelo Neri pondera que
os resultados da pesquisa do IBGE "desafiam aqueles que acreditam que fome
é coisa do passado no Brasil" e que outros estudos corroboram o resultado.
"Antes que ataquem o
mensageiro, observamos o mesmo drama em evidências internacionais sobre o
Brasil citados. A proporção daqueles que não têm dinheiro para comprar
alimentos cai de 20% até 18% e depois sobe para 30% em 2017-18, o que é
consistente em termos de período e prazos com a última POF-IBGE", diz.
Plantação de soja em área do
município de Alto Paraíso mostra o avanço da fronteira agrícola na região da
Chapada dos Veadeiros.
"Este mesmo patamar de
30% é mantido em 2019. O Brasil, que estava em número 30 em 2014, passou
em 2019 a posição 82 em 150 países. Ou seja, os movimentos identificados nas
pesquisas ibgeanas são robustos, e o aumento observado até 2017-18, se manteve
em 2019". (globo)