Com
a geografia marcada por planaltos, o bioma abriga diversas nascentes e
importantes áreas de recarga hídrica, desempenhando um papel fundamental para
as principais bacias hidrográficas brasileiras e sul-americanas. Por esse
motivo, é denominado como “berço das águas” ou a “caixa d'água do Brasil”.
“O Cerrado contribui para
oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras. E esse dado é importante para
analisarmos a importância desse bioma em termos hidrológicos para o país”,
informa Jorge Enoch Furquim Werneck Lima. Por: Thamiris Magalhães e Graziela
Wolfart
“A água do Cerrado não é
importante só para a manutenção do bioma e para o desenvolvimento das
atividades econômicas. É relevante também para todas essas regiões que estão
abaixo, como a Caatinga, no caso da bacia do rio São Francisco, do Pantanal, da
região da Mata Atlântica e para as populações que vivem na bacia do rio Paraná,
que acabam recebendo essas águas. Energia elétrica, navegação, indústria, a própria
população, que toma a água desses rios que têm suas nascentes no Cerrado: o
bioma acaba sendo fundamental para tudo isso”. A análise é do engenheiro
agrícola e pesquisador da Embrapa Cerrados, Jorge Enoch Furquim Werneck Lima,
na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line.
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima é pesquisador em Hidrologia da Embrapa Cerrados. Possui graduação em
Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa, mestrado em Ciências
Agrárias pela Universidade de Brasília e doutorado em Tecnologia Ambiental e
Recursos Hídricos pelo Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da
Universidade de Brasília. Jorge representa a Embrapa no Conselho de Recursos
Hídricos do Distrito Federal, no Conselho Diretor da Rede de Cooperação em
Ciência e Tecnologia para a Conservação e o uso Sustentável do Cerrado – Rede
ComCerrado/MCT, nos comitês das bacias dos rios Preto, Maranhão e Paranoá, no
Distrito Federal, bem como no Conselho Gestor da APA do Planalto Central.
Representa a Associação Brasileira de Recursos Hídricos – ABRH na Comissão de
Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia no Brasil
– CMCH/MCT desde 2008.

IHU On-Line – Como pode ser
definida a atual situação dos recursos hídricos no Cerrado?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – De uma forma geral, os recursos hídricos têm uma situação boa. O que
acontece é que, em determinadas regiões, principalmente onde se têm grandes
cidades ou locais que não possuem adequado sistema de saneamento, as águas que
passam perto desses lugares geralmente têm problema de contaminação, ficando
com a qualidade comprometida. E, em regiões onde há concentração de áreas
agrícolas, principalmente de agricultura irrigada, as pessoas podem ter
problema de falta de água. Isso porque se há uma grande concentração de
sistemas de irrigação em uma bacia onde a quantidade de água disponível não é
suficiente em determinados momentos, no período de seca, por exemplo, fica
difícil suprir toda a demanda.
IHU On-Line – Qual o papel e
a importância das águas do Cerrado para o desenvolvimento do Brasil?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – Pelo fato de o Cerrado estar localizado no meio da região do Planalto
Central, que é a parte alta, o bioma acaba funcionando como um “guarda-chuva” para
o território, além de ser um grande reservatório. Por isso é conhecido como
“pai das águas do Brasil”, ou o “berço das águas”. Pelas características de seu
solo, ele tem uma capacidade boa de infiltração da água da chuva e
armazenamento dessa água, que é liberada. No Cerrado, têm-se duas estações
muito bem definidas: uma chuvosa e outra seca, com pouquíssima chuva. Então,
graças a essa capacidade do solo de infiltrar e armazenar a água e de liberá-la
de forma mais lenta, o bioma acaba funcionando como um grande reservatório e
consegue abastecer nossos rios, inclusive no período seco. Por estar na região
alta e central, o Cerrado tem um papel fundamental também na distribuição dessa
água pelo território brasileiro e sul-americano, principalmente se pensarmos na
Bacia do Rio da Prata. Todos os usos que são feitos nas bacias que recebem água
do Cerrado acabam sendo dependentes. E as pessoas que moram nessas regiões
acabam ficando dependentes também. Se pensarmos em bacias como a do São
Francisco, como o próprio Pantanal, a bacia do rio Paraná e Tocantins, veremos
que todas as pessoas que estão nelas acabam recebendo água do Cerrado. E todas
as atividades econômicas que são desenvolvidas nessas bacias acabam tendo
vinculação com as águas que são produzidas dentro do território do bioma. Isso
vale para quase todo o Brasil. A água do Cerrado não é importante só para a
manutenção do bioma e para o desenvolvimento das atividades econômicas. É
relevante também para todas essas regiões que estão abaixo, como a Caatinga, no
caso da bacia do rio São Francisco, do Pantanal, da região da Mata Atlântica, e
para as populações que vivem na bacia do rio Paraná, que acabam recebendo essas
águas. Energia elétrica, navegação, indústria, a própria população, que toma a
água desses rios que têm suas nascentes no Cerrado: o bioma acaba sendo
fundamental para tudo isso.

IHU On-Line – Quantas são as
regiões hidrográficas brasileiras e quantas recebem contribuição hídrica do
Cerrado?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – O cerrado contribui para oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras.
Esse dado é importante para analisarmos a importância desse bioma em termos
hidrológicos para o país. Temos outros dados interessantes: cerca de 70% da
água que sai na foz da bacia do Tocantins–Araguaia, por exemplo, vem do
Cerrado; cerca de 90% da água que sai na foz do rio São Francisco vem do bioma;
cerca de 50% da água que sai na foz do rio Paraná, no território brasileiro, da
água que chega a Itaipu, por exemplo, vem do Cerrado. Ele manda mais água para
o Pantanal do que este joga de água no rio Paraguai. Além disso, tem uma
contribuição relevante também na bacia do rio Parnaíba. Pelo fato de o restante
da bacia ser de zona semiárida, o Cerrado tem uma importância bastante
relevante para ela também. Então, a contribuição hídrica desse bioma é bastante
expressiva.

IHU On-Line – Qual a
contribuição que o Cerrado oferece às usinas hidrelétricas brasileiras?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – No caso de Itaipu, por exemplo, o Cerrado contribui com cerca de 50% da
água que passa pela usina, que é imensa. Mas além desta, tem todas as outras
usinas que estão na calha. Como o bioma está na região mais alta da bacia, 100%
da energia gerada em Três Marias – MG é com água do Cerrado. 90% da água que passa
em Xingó vem do Cerrado. Além dessas, 70% da água que passa na Usina
Hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, sai do bioma Cerrado.

IHU On-Line – Diz-se muitas
vezes que no Cerrado há apenas seca. Seu trabalho, no entanto, mostra que a
água do bioma é responsável por abastecer grande parte do território
brasileiro. Quais os fatores que levam as pessoas a terem esse tipo de visão?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – O fato de o Cerrado ficar quatro ou cinco meses com pouquíssima chuva e,
muitos meses, sem chuva alguma acaba dando essa impressão. Também pelo fato de
as árvores do Cerrado serem tortas e o tipo de vegetação acaba dando uma
impressão de que todas as vezes que alguém pensa no Cerrado, pensa na árvore
torta, solta. Mas durante boa parte do ano o Cerrado é bastante verde. No
bioma, temos regiões de mata, mas também temos regiões que são apenas de
gramíneas, por exemplo, que é o campo limpo e o cerradão. Este último parece
uma mata enquanto nossos campos de gramíneas são campos limpos. Ademais, o
Cerrado tem divisa com quase todos os biomas; só não tem com o Pampa, que é
mais ao sul. Mas tem com a Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Amazônia. E
isso faz com que o Cerrado tenha uma biodiversidade muito grande e tenha uma variabilidade
na chuva também, uma vez que perto da Amazônia chove muito mais que perto da
Caatinga. A questão é que as chuvas no bioma são concentradas em seis, sete
meses do ano. E no período seco têm-se umidades na faixa de 15%, o que fica
sendo noticiado nos jornais o tempo todo, além das queimadas, etc. Então, tudo
isso ajuda a formar uma ideia de que o Cerrado é uma região muito seca. Mas não
é.

IHU On-Line – Qual a
contribuição que as águas do cerrado oferecem às cidades e às terras agrícolas?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – Por conta dessas características do bioma, os rios conseguem resistir à
seca, em geral, o que é fundamental para o abastecimento de qualquer que seja a
atividade e para o abastecimento humano também. Então, o Cerrado tem essa capacidade
de infiltração e armazenamento. E o fornecimento de água para o rio faz com que
se tenha, ao longo do ano, um bom abastecimento de água, seja ele para as
cidades ou para irrigação. A própria chuva do bioma, por perdurar por cerca de
seis meses, acaba permitindo, mesmo quando não se tem uma agricultura irrigada,
cerca de duas safras por ano, em uma mesma área. Se ainda houver irrigação,
consegue-se fazer, mesmo assim, uma terceira safra.

IHU On-Line – Gostaria de
acrescentar algo?
Jorge Enoch Furquim Werneck
Lima – Hoje, o Cerrado é considerado o “celeiro do mundo” porque tem um
potencial agrícola muito grande. Com o desenvolvimento da tecnologia, essa
região tornou-se altamente produtiva. Devemos olhar com atenção para esse
bioma, que tem ainda grande potencial para o desenvolvimento da agricultura,
mas tentando a todo instante incrementar a produção nas áreas que já foram
abertas. Nós temos tentado recuperar as áreas um pouco mais degradadas ou menos
produtivas, sem ter que abrir mais áreas do Cerrado. Pelo fato de essa área ser
muito importante para os recursos hídricos do Brasil, ela tem que ser olhada
com um carinho especial, uma vez que qualquer problema que aconteça com ela
pode ser transferido para muitas outras áreas do país. Então, temos que pensar
em um planejamento adequado do uso do solo do Cerrado, otimizando os nossos
recursos naturais, tanto o solo como a água, bem como o uso dos insumos
agrícolas, e tomando todos os cuidados para que não tenhamos futuros conflitos.
(ecodebate)