‘Queremos água ou mineração? Vida ou degradação?’
Além de sofrer grandes consequências em função da transposição do seu curso de água, o rio São Francisco também está sendo condenado pela contaminação dos rejeitos de chumbo, cádmio e cobre resultantes da exploração minerária no sudoeste da Bahia e Minas Gerais. Em entrevista à IHU On-Line, por telrefone, o representante da Comissão Pastoral da Terra – CPT-Bahia, Ruben Siqueira, analisou a situação do rio e denunciou as agressões que o Velho Chico vem sofrendo. “A transposição é, talvez, o caso mais contundente. Não basta esses sobreusos; estão querendo que as águas do São Francisco sejam suficientes para o abuso fora da bacia em nome do crescimento econômico”, disse ele.
O governo defende a transposição do São Francisco com a justificativa de acabar com a sede na região Nordeste, mas, segundo Ruben, o rio está com tamanho sobreuso que a qualidade dessa água é muito ruim. “A água que será transposta é de má qualidade, classe 4. Os estudos mostram que há classes de água de 1 a 5, sendo 5 a pior qualidade. Vão levar água ruim para o povo beber, então?”, questionou.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Um estudo revelou que na região de Três Marias-MG, o rio São Francisco foi contaminado por metais pesados. Como esses metais chegaram ao rio?
Ruben Siqueira – Nas barrancas do São Francisco em Três Marias, logo que criou-se a hidrelétrica, instalou-se também a Votorantim Metais para processar o zinco que vem na bacia do rio na região de Vazante. Por muito tempo, os rejeitos desse processo caíram diretamente no São Francisco. Depois, fizeram uma barragem de rejeitos de cobre também no Velho Chico e, na década passada, começaram a aparecer peixes grandes, como o Surubim, morrendo em função do acúmulo desse lixo de mineração. Estudos identificaram presença de chumbo, cádmio e outros metais pesados nas vísceras desses peixes. A empresa tentou se defender, apresentar contralaudos e mobilizar sua força sobre poder público e junto à sociedade da região. Boa parte da população de Três Marias depende dessa que é a principal atividade econômica do município.
IHU On-Line – Que tipos de metais são esses?
Ruben Siqueira – Cobre, chumbo, cádmio. São metais que têm uma tolerância muito pequena no organismo. Alguns não podem nem constar na corrente sanguínea. Mas estão lá na água. Quando a barragem de Três Marias libera a água, revolve esse acúmulo de sedimentos contaminados no leito do rio e isso fica em suspensão na água, exatamente onde os peixes se alimentam.
IHU On-Line – Quem é o maior beneficiado com a extração desse minério?
Ruben Siqueira – É a Votorantim Metais. Ela se instalou lá há bastante tempo e possui tecnologia defasada para extração desse minério. Eles já refizeram a barragem de rejeitos, levaram para outro local com tecnologia mais avançada que impeça a circulação desse lixo. O problema, todavia, continua. O passivo socioambiental está instalado; a empresa nunca pagou qualquer multa ou ressarciu as pessoas que sofreram com essa poluição. Pelos padrões atuais, ela tem que sair daquela região. É inadmissível mais uma empresa com esse poder de poluição na beira de um rio com a dimensão do São Francisco.
IHU On-Line – Como essa empresa faz a extração dos minérios?
Ruben Siqueira – O trabalho de extração não fica em Três Marias, fica em Vazante-MG, que também faz parte também da bacia do rio São Francisco. A cidade já sofreu com o aumento da população que veio de fora atraída tanto pela construção da barragem quanto pela implementação da Votorantim. A expansão da mineração, devido à demanda internacional por minérios, é que tem gerado uma explosão de mineradoras sem que os cuidados ambientais estejam sendo considerados. A qualidade da água na bacia do rio São Francisco está sempre com dificuldades de melhoria e isso tem a ver com essa expansão. Os focos de contaminação das águas, a degradação do solo, o desmatamento, a dificuldade em descartar os rejeitos que se acumulam são problemas ligados à mineração.
IHU On-Line – Quais são os principais impactos ambientais e sociais gerados pelas atividades minerárias?
Ruben Siqueira – Descobrimos que um território ferrífero também é aquífero. Essa região de Belo Horizonte é cercada por diferentes serras de minérios de ferro em grandes quantidades. E o “belo horizonte” da capital mineira é o da Serra do Curral que ainda está conservado ao lado da metrópole, que é uma das maiores do Brasil, mas do outro lado há uma chaga. Ou seja, a serra tem crateras porque está sendo desbastada pela mineradora. A destruição é tanta que já atingiu os lençóis freáticos e as nascentes. Isso porque essa região também é conhecida pelas melhores águas. Dizem que Belo Horizonte foi escolhida como o local da capital em função da qualidade e quantidade das águas. E isso está sendo rapidamente degradado.
“A expansão da mineração a esse custo para atender a uma demanda que vem de outros países é um desrespeito”
Então, a mineração gera um problema na paisagem e na biodiversidade. Essa região também é de campos de altitude e tem uma biodiversidade específica, que é estudada de forma insuficiente. Além disso, a mineração causa um nível de desmatamento muito sério. A qualidade do emprego também é afetada. Nós tivemos conversando com trabalhadores e eles nos contam coisas absurdas. Além disso, as empresas mantêm um clima de insegurança e condições insalubres de trabalho para baixar o custo e aumentar o lucro. Os trabalhadores nos contam que, às vezes, precisam caminhar nas barragens de rejeitos. Nós ficamos espantados ao conhecer um desses trabalhadores e ver o tamanho da sua chaga aberta. Há acúmulo de lama tóxica nos vales e os trabalhadores têm que caminhar por ali. Há casos de pessoas que caíram e morreram naquela lama. Os impactos são terríveis.
Então, é preciso mineração? Claro que sim. Mas nesses padrões nós não podemos concordar. A expansão da mineração a esse custo para atender a uma demanda que vem de outros países é um desrespeito. Nós estamos, portanto, vivendo um neocolonialismo. Levaram o pau-brasil, o ouro, os diamantes, agora os grãos e o minério. Só que crescem os problemas e a sociedade se vê traída por parte do poder público; ela se vê engabelada, mal informada. É uma situação que nos faz pensar a respeito: é preciso que o desenvolvimento econômico venha dessa forma? A sociedade também precisa responder a algumas questões: Queremos água ou mineração? Vida ou degradação?
IHU On-Line – As pessoas podem se contaminar bebendo a água que vem do rio?
Ruben Siqueira – Sim, sem dúvida. Um dos problemas que acontece no Rio das Velhas é a proliferação de cianobactérias – também conhecidas como algas azuis – por conta não só dos rejeitos de poluição que vêm das mineradoras, mas principalmente da poluição urbana. O nível de oxigênio na água diminui e essas bactérias se proliferam com o calor e a baixa renovação da água e isso é terrível; causa problemas de pele, diarreia; o peixe se torna impróprio para alimentação. Isso já aconteceu no Rio das Velhas, que é o maior afluente do São Francisco em volume d’água, contaminado este último em grande extensão.
IHU On-Line – Já há casos de pessoas que ficaram doentes em função da contaminação contaminação das águas por metais pesados?
Ruben Siqueira – Muitos casos. Tanto em Minas Gerais quanto na Bahia. Há relatos de alta incidência de câncer de pulmão, silicose (é uma forma de pneumoconiose causada pela inalação de finas partículas de sílica cristalina e caracterizada por inflamação e cicatrização em forma de lesões nodulares nos lóbulos superiores do pulmão), doenças de pele… E já percebemos que não há interesse do Estado em capacitar setores da saúde para atender, registrar, acompanhar e pesquisar essas consequências para as pessoas que trabalham diretamente com minérios ou vivem nessa região de exploração desse recurso. Há uma concentração de poder muito forte, um lobby muito poderoso e o Estado é refém dessa situação.
IHU On-Line – Qual é o critério para exploração dos minérios nessa região?
Ruben Siqueira – Esse também é um questionamento que temos feito. Queremos rever a legislação que controla a mineração no Brasil. O novo marco regulatório da mineração já está sendo gestado e as autoridades federais contrataram pessoas que passaram pela mineração. É como se a gestão do novo Código Florestal estivesse submisso ao produtor que precisa desmatar. A sociedade, as comunidades, os trabalhadores envolvidos, todos querem participar, porém a discussão não está aberta. Há infraestrutura em expansão para servir à mineração, como é o caso da Bahia que está construindo uma nova ferrovia que liga o estado ao Tocantins e um novo porto tambem basicamente para transportar minério de ferro para a região de Caetité.
Essa região já sofre com a exploração de urânio com sérios impactos de radioatividade na água, no solo, nas plantas e nas pessoas. O governo da Bahia tem dito que o futuro do estado passa pelo complexo ferroviário, portuário e minerário que está se instalando. Essa é a nova fronteira da economia baiana. Nós estamos diante de um monstro determinado e a sociedade organizada não consegue alterar nem levantar a possibilidade que não seja assim tal como o conjunto de forças que estão por trás desses projetos. O desafio é muito grande.
IHU On-Line – Que tipo de alternativa está sendo apresentado para se fazer o enfrentamento ao atual modelo de mineração?
Ruben Siqueira – Temos que repensar a mineração e todo o projeto de desenvolvimento econômico em função do projeto de vida da sociedade que queremos. Isso vai rebater no consumismo, por exemplo. Há um incentivo em consumir sempre novos equipamentos, novos aparelhos, novos carros, novos eletrodomésticos que demandam uma grande quantidade de minério. E esses minérios não vão durar para sempre, afinal, as jazidas são finitas, assim como o petróleo. Por isso, corre-se atrás agora de alternativas renováveis de energia.
IHU On-Line – As obras de transposição do São Francisco contribuem de alguma forma na expansão dessa contaminação do rio por metais pesados?
Ruben Siqueira – Tem o São Francisco água para tanta coisa? Com a expansão da mineração na bacia do rio, nós temos informações de que, ao longo da serra geral e do norte de Minas Gerais até o norte da Bahia, há um grande filão de minério de ferro. Isso significa que vão usar as água do São Francisco para a mineração. Além disso, irá ser construída uma adutora que levará água do rio para Caetité, ou seja, a 120 km de distância para fazer o processamento do minério. Porém, essa á uma região que sofre escassez hídrica e sempre se pleiteou uma adutora para essa área. Vai tudo a reboque dos grandes interesses.
A água do São Francisco também está sendo destinada para a expansão dos agrocombustíveis na região do semiárido e foram construídos canais que levam água para as plantações de cana em Pernambuco, em Alagoas e na Bahia. Sabemos que 70% dos usos que serão dados à água da transposição serão para irrigação de cana para produzir etanol. Ao mesmo tempo em que a água deste rio tem que se multiplicar para esses diversos usos, ele vai perdendo vazão. Estudos apontam que nos últimos 50 anos o rio perdeu 35% da sua vazão. Se continuar assim, até quando continuará sendo um rio permanente? Há previsões que apontam que, em alguns anos, o São Francisco será um rio intermitente – possui água durante o período das chuvas e desaparece temporariamente no verão –, como aconteceu com o rio Amarelo, na China; o rio Colorado, nos Estados Unidos, por exemplo, tudo em decorrência sobreposição de usos de maneira irresponsável.
A transposição é, talvez, o caso mais contundente. Não bastam esses sobreusos; estão querendo que as águas do São Francisco sejam suficientes para o abuso fora da bacia em nome do crescimento econômico. A informação oficial diz que a transposição é em função da sede humana, mas a água que será transposta é de má qualidade, classe 4. Os estudos mostram que há classes de água de 1 a 5, sendo 5 a pior qualidade. Vão levar água ruim para o povo beber, então? Abaixo de Juazeiro e Petrolina temos não apenas toda a degradação que vem da região minerária, mas também a poluição agrícola. Essa é a região cuja irrigação é mais intensa no país. Essa é a região que mais consome agrotóxicos no Brasil. (Ecodebate)
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