Omissão e jogo de empurra deixam população no escuro
sobre presença de agrotóxico na água.
Resumo:
Não há nenhuma punição para cidades que burlam a lei ao não enviar dados sobre
pesticidas ou que não agem quando teste sugere contaminação.
Não
importa em qual parte do país você mora: pode ser difícil ou mesmo impossível
saber se o copo de água que você está bebendo tem ou não agrotóxico e, pior, se
a concentração do pesticida está acima do limite considerado seguro no Brasil.
O
problema veio à tona após a publicação, pela Repórter Brasil e Agência
Pública em parceria com a organização suíça Public Eye, da
reportagem “Coquetel” com 27 agrotóxicos foi
achado na água de 1 em cada 4 municípios”. Nela, um mapa interativo feito com base nos dados
do Ministério da Saúde, coletados entre 2014 e 2017, mostrava os pesticidas
encontrados nas torneiras do país, destacando quais municípios tinham índices
acima do limite considerado seguro.
O
mapa, divulgado em abril deste ano, trouxe pela primeira vez os dados nacionais
de forma clara, de modo que o público não especializado pudesse entender. A
publicação gerou grande repercussão, com mais de 400 veículos de mídia
discutindo os resultados de suas cidades. Além do grande interesse público
sobre esses dados, a repercussão revelou também que há uma série de falhas no
monitoramento e na responsabilização dos órgãos envolvidos.
Há cidades, como Brasília e Recife, que descumprem a legislação ao não enviarem ao
Ministério da Saúde os resultados dos testes sobre agrotóxicos na água. E
outras como Bauru (SP), onde nenhuma providência foi tomada pela Vigilância
Ambiental mesmo depois que os dados apontaram concentração de pesticidas na
água 160 vezes acima do valor permitido – o que indicaria um risco iminente à
população que bebe essa água. Também há empresas de abastecimento que minam a
credibilidade do banco de dados ao enviar os resultados dos testes usando
parâmetros diferentes dos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, caso de São
Carlos (SP), Porto Alegre (RS), Viçosa (MG) e Balneário Camboriú (SC).
“É um ambiente de desregulação total”, afirma o procurador do
Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, Marco Antonio Delfino de
Almeida, sobre a estrutura que gira em torno do Sisagua, o sistema criado pelo
Ministério da Saúde para armazenar dados sobre a água e que funciona com o
preceito de que a responsabilidade de alimentá-lo corretamente é dividida entre
União, estados, municípios e empresas de abastecimento. “Deveria ser papel do
poder público analisar, avaliar e trazer esses dados para população de maneira
ampla, irrestrita e transparente. Mas isso não acontece.”
Almeida
chama atenção para a gravidade de situações em que, mesmo quando os testes não
foram enviados ou os resultados indicavam concentração perigosa à saúde humana,
não houve fiscalização, cobrança por providências ou penalidades.
No escuro
Casos
analisados pela reportagem, em diferentes partes do país, ilustram como uma
série de omissões vem deixando a população no escuro quanto à presença de
agrotóxicos na água que sai de sua torneira, colocando em risco a saúde das
pessoas.
Brasília
e Recife, por exemplo, representam um problema que atinge 52% dos municípios
brasileiros: os resultados dos testes de 2014 a 2017 não foram enviados ao
Ministério da Saúde. Isso significa que os responsáveis não realizaram os
testes para medir a presença de agrotóxico na água ou, se fizeram, não enviaram
os dados para o Sisagua.
“Antes mesmo da divulgação da reportagem, cobramos a inclusão dos
números, mas eles não cumpriram”, explicou João Suender, da Vigilância
Ambiental da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, explicando que a
responsabilidade pela coleta e envio dos dados ao Sisagua é da Companhia de
Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb). A Caesb confirmou que houve
“inúmeras dificuldades para repassar algumas informações referentes a
agrotóxicos, sobretudo devido à falta de padronização existente”.
Suender
argumenta que nada pode ser feito para punir a empresa que não envia os dados,
já que a regulação do sistema é feita por uma portaria, instrumento que não teria
poder de responsabilizar infratores.
Mas
esse argumento é rechaçado pelo professor de Direito Administrativo da
Universidade Mackenzie, Cecílio Moreira Pires. Ele explica que a portaria é
vinculada à lei 6.437 de 1971, que prevê sanções para
infrações. “O problema não é ausência de lei e, sim, de fiscalização e
monitoramento do que fazem as empresas de abastecimento. O poder público não
possui servidores suficientes e habilitados para exercer essa função”,
sustenta.
A
situação de Brasília se repete nas regiões Norte e Nordeste – onde o mapa
publicado em abril pela reportagem revela um grande vazio de dados, já que a
maioria dos municípios não envia informações sobre a presença de pesticidas da
água. É o caso de Recife, capital pernambucana. A Companhia Pernambucana de
Saneamento (Compesa) reconheceu o erro e afirmou “que as análises de
agrotóxicos estão disponíveis somente até o ano de 2015” e que está em processo
de reforma dos laboratórios.
Já
a Secretaria de Saúde Municipal informou que “há uma orientação do Ministério
da Saúde que elege municípios prioritários para monitoramento de agrotóxicos e
Recife não entra nessa lista por ter um perfil urbano, além de não possuir
manancial de água para abastecimento local que possa sofrer esse tipo de
contaminação”. De fato, segundo a norma do Sisagua, a Vigilância tem a
prerrogativa de priorizar em quais cidades confere os dados, mas precisa
garantir que todos os municípios enviem os resultados duas vezes ao ano. A nota
afirma ainda que a Vigilância Ambiental não testa os agrotóxicos na água, “a
não ser que existam evidências epidemiológicas para esse monitoramento”. A
secretaria, porém, não esclareceu o que seriam “evidências epidemiológicas” e
se alguma vez fez algum teste.
De
acordo com o Mapa da Água, porém, nenhuma cidade pernambucana enviou os testes,
como prevê a portaria do Sisagua. A Secretaria de Saúde de Pernambuco, por meio
de nota, reconheceu a não inserção dos dados e afirmou que eles “foram
analisados e serão inseridos no sistema apesar das amostras de vigilância não
terem identificado valores que ultrapassassem o limite máximo referente ao
padrão [estabelecido pela legislação brasileira]”.
As
omissões e o jogo de empurra de Brasília, Recife e de outras cidades que não
monitoram a presença de agrotóxicos na água prejudicam o efetivo controle
“porque não há uma avaliação crítica ou uma validação dos dados”. É o que
sustenta a professora Gisela Umbuzeiro do departamento de toxicologia e
genotoxicidade da Unicamp, que conduziu um estudo sobre o Sisagua.
“Primeiro, não faz sentido tantos municípios brasileiros não
alimentarem o sistema. Depois, mesmo em cidades que armazenam os dados, não
existe análise técnica aprofundada do que foi informado”, pontua. Segunda a
professora, sem validar essas informações, não é possível conhecer as
particularidades de cada região – o que ajudaria no monitoramento. “A depender
do tipo de cultivo que é plantado numa região, é possível saber qual agrotóxico
é mais utilizado e fazer testes mais específicos de acordo com a realidade
local”.
O alarme soou, ninguém reagiu
Outro
problema grave evidenciado após a publicação do mapa é o dos municípios que
registraram concentração de agrotóxicos acima do que é considerado seguro no
país. Nesses casos, ações deveriam ser tomadas para averiguar se os dados estão
corretos e encaminhar medidas para resolver o problema. Mas nem mesmo nesses
casos providências foram tomadas. É o que aconteceu em Bauru, no interior de
São Paulo, onde os números do Sisagua indicavam que seis agrotóxicos foram detectados
em concentração acima do Valor Máximo Permitido, em diferentes datas entre 2014
e 2017, sendo que dois dos pesticidas (Clorpirifós e o Aldrin) foram
encontrados em dois pontos de coletas diferentes na cidade.
A
reportagem entrou em contato com os órgãos responsáveis e descobriu que nenhuma
ação foi tomada. Das oito irregularidades, quatro foram registradas em pontos
de coleta de responsabilidade do DAE (Departamento de Água e Esgoto) e as
outras quatro em locais particulares, incluindo um poço (em um instituto de
pesquisa local) a cargo da Vigilância Ambiental – ligada à Secretaria Municipal
de Saúde. Danielle Depicolli Chiuso, chefe de Seção de Análise de Água do DAE
de Bauru, enviou à reportagem os laudos referentes aos pontos que, no Sisagua,
mostravam um nível de agrotóxico muito acima do máximo permitido. Nos
documentos, no entanto, os índices eram diferentes daqueles enviados ao Sisagua
e estavam dentro do autorizado. “Esses laudos mostram que a água de Bauru não
estava contaminada e comprovam que apenas houve erro na hora de passar os dados
no sistema do Sisagua”, afirma Chiuso.
O
erro citado ficaria na conta da Vigilância, que na época era responsável por
inserir no Sisagua os dados coletados pelo DAE. Roldão Puci, chefe de Ações de
Meio Ambiente da Divisão de Vigilância Ambiental de Bauru, afirmou que os erros
podem ter acontecido durante “um mutirão para digitação dos dados” no Sisagua,
mas que não havia como confirmar.
“O Sisagua é muito pesado, complexo e demorado. Por isso, a gente
prefere fazer a checagem no laudo em si. Também é mais simples fazer a
conferência in loco do que no Sisagua”, afirma Puci.
Mas
a Vigilância Municipal não apresentou os laudos das coletas de pontos de sua
responsabilidade que mostravam água contaminada, como uma realizada em dezembro
de 2017 no Instituto Lauro de Souza Lima, em que o agrotóxico Clorpirifós, cujo
valor máximo permitido é de 30µg/L (micrograma por litro), mostrava um
resultado de 5.000µg/L, um índice que, se fosse verdadeiro, ofereceria riscos
imediatos à população de Bauru.
Quem,
então, deveria vigiar a Vigilância, que não percebeu o problema ou percebeu e
não foi atrás? Em qual setor das esferas públicas deveria acender um alerta
para checar se esses dados altíssimos seriam erros de digitação ou se, de fato,
a água estava com alto grau de contaminação?
A
resposta passa pela Secretaria Estadual já que, segundo a portaria do Ministério da Saúde sobre tema, “compete às
Secretarias de Saúde do Estados promover e acompanhar a vigilância da qualidade
da água, em articulação com os Municípios e com os responsáveis pelo controle
da qualidade da água”.
Em
nota, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo informou que “a
responsabilidade de investigação e análise da qualidade da água é do município
e das empresas responsáveis pelo abastecimento. O Estado capacita e orienta as
vigilâncias municipais para que a análise de dados seja feita de forma
correta”.
Metodologia fora do padrão
Reportagem
revelou que a concentração de agrotóxico encontrado nas águas das cidades
brasileiras está acima do limite considerado seguro
Um
terceiro grande problema ficou visível quando a publicação do mapa abriu a “caixa-preta” dos
agrotóxicos na água: nem todas as empresas seguem corretamente as orientações
do Ministério da Saúde para lançar os resultados no sistema.
Um
dos pontos mais delicados foi esclarecido após a divulgação da reportagem,
quando algumas empresas de abastecimento reclamaram que estaria errada a
interpretação feita pela reportagem – que se baseou na orientação do Ministério
da Saúde. O ponto em questão era a leitura de dois códigos: o Limite de
Quantificação e o Limite de Detecção.
Foram tantos os questionamentos enviados pelas empresas em
decorrência da publicação do mapa que, em junho, o Ministério da Saúde convocou
uma reunião técnica com representantes das empresas de abastecimento, do
Inmetro, dos laboratórios de saúde pública, das Secretarias de Saúde e da ANVISA
para elucidar a metodologia para leitura dos dados.
Algumas
empresas alegavam que ao declarar o código “Menor que o Limite de
Quantificação” estavam comunicando que não foi possível detectar agrotóxico na
água. Mas, segundo Thaís Araújo Cavendish, coordenadora-geral de Vigilância em
Saúde Ambiental, o ministério esclareceu que esse resultado na verdade
significa que agrotóxicos foram identificados na água, mas em concentrações tão
baixas que não puderam ser quantificadas.
Pode
parecer uma conversa técnica de químicos, mas a compreensão correta da
metodologia é fundamental para que o sistema de vigilância funcione para
monitorar e garantir a qualidade da água.
Agora,
com a esclarecimento da metodologia por parte do Ministério da Saúde, as
empresas ou órgãos públicos que interpretavam errado precisarão corrigir os
dados daqui para frente e também retroativamente. A pasta informou que deu até
o fim deste mês (outubro) para essa correção acontecer.
Lista dos 27 ampliada
Outra
crítica feita ao sistema é a de que os testes buscam apenas 27 ingredientes
ativos de agrotóxicos – somente em 2019, o governo aprovou a comercialização de
mais de 400 novos produtos agrotóxicos. “É preciso que haja um monitoramento
mais amplo, até para se verificar de fato que tipo de agrotóxicos está sendo
usado em determinada região”, completa a professora Gisela Umbuzeiro, da
Unicamp.
O
Ministério da Saúde estuda aumentar o número de ingredientes que precisam ser
testados e os valores de referência. Mas, além da lista mínima fixada em âmbito
federal, cada estado deve editar normas complementares à norma nacional a fim
de atender às especificidades de seus territórios. Um exemplo é a norma editada pelo Rio Grande
do Sul, que estabeleceu a obrigatoriedade do monitoramento de agrotóxicos que
não constam na lista nacional, mas que são muito usados nas lavouras gaúchas.
Atualmente, o estado testa, além dos 27 exigidos por lei, outros 46 pesticidas
na água.
Especialistas
apontam ainda outros problemas que comprometem a credibilidade dos dados
armazenados no Sisagua, como a falta de verificação dos dados fornecidos pelas
empresas de abastecimento, que podem ser inseridos pelas próprias empresas.
“Não existe uma avaliação crítica do que é colocado. Se, por um
lado, as concessionárias precisam analisar as amostras, por outro é necessário
que depois exista a verificação se as normas estão sendo atendidas”, reitera
Umbuzeiro.
O
procurador Almeida aponta ainda um conflito de interesses neste sistema. “Como
as próprias empresas que são responsáveis por alimentar o sistema vão registrar
a presença de agrotóxicos na sua água?”, questiona.
Cadeia de responsabilidades e penalidades
Segundo
o procurador Almeida, todos esses problemas “evidenciam como empresas e órgãos
públicos nem sempre cumprem seu papel, o que, na prática, faz com que hoje o
Sisagua não funcione efetivamente como ferramenta de verificação”.
Para
que a complexa engrenagem funcione, a responsabilização administrativa ou
judicial dos órgãos envolvidos deveria começar do local (municipal) para o
nacional, segundo Marco Antonio Ghannage Barbosa, Procurador do Ministério
Público Federal. Ou seja, primeiro, cobra-se das instâncias municipais
(empresas de fornecimento e da vigilância sanitária); depois, das estaduais
(Secretaria do Meio Ambiente) e, por fim, Ministério da Saúde e Ministério
Público Federal podem atuar para cobrar os responsáveis, com sanções que podem
variar de advertências a multas e ações indenizatórias.
Foi
esse o caminho trilhado no Mato Grosso do Sul. O procurador Almeida, do
Ministério Público, entrou com um pedido na Justiça pedindo que Estado e União
garantissem a realização de testes na água de Dourados – por conta da possível
relação entre a contaminação da água com o aumento dos casos de câncer na
cidade.
Neste
caso, o jogo de empurra está perto do fim: uma sentença determinou em agosto que
o governo federal pague uma multa de R$ 90 milhões por descumprimento de uma
decisão 2016 que determinava a análise da água consumida pela população. A
decisão, da qual ainda cabe recurso, determina que o valor seja usado na
construção de um laboratório para que, enfim, os testes sejam realizados.
Medidas
como estas são fundamentais para garantir que os órgãos envolvidos cumpram seu
papel, sobretudo em um cenário atual em que o Governo Federal tem ampliado e
acelerado o processo de liberação de novos ingredientes ativos de agrotóxicos
para uso no país. No entanto, enquanto mais da metade dos municípios
brasileiros não realizarem os testes definidos em lei, grande parte da
população brasileira continuará no escuro sobre a real presença de agrotóxicos
nas torneiras da sua cidade. (ecodebate)