“Na medida em que os catadores e catadoras buscam a sobrevivência por
meio da coleta de recicláveis, dando uma característica de mercadoria ou produto
vendável a algo que não tinha mais valor, eles vivenciam nesse processo várias
cargas de trabalho e desgaste da saúde física e mental”, constata a enfermeira.
“Embora
o trabalho dos catadores seja enaltecido pelas vantagens ambientais que
proporciona, tal discurso fica apenas no campo da retórica, em especial nos
discursos midiáticos e políticos”, adverte Tanyse Galon, em entrevista
concedida à IHU On-Line por e-mail.
Autora
da tese de doutorado “Do lixo à
mercadoria, do trabalho ao desgaste: estudo do processo de trabalho e suas
implicações na saúde de catadores de materiais recicláveis”, a
enfermeira analisa o outro lado do trabalho desenvolvido a partir da
reciclagem, o qual, embora traga vantagens para o meio ambiente, causa um
impacto direto na saúde dos catadores de resíduos recicláveis,
especialmente daqueles que estão no mercado informal, já que “apenas 10% dos
catadores no Brasil” atuam em cooperativas.
Na
avaliação dela, “tais trabalhadores estão reduzindo gastos dos municípios com o
gerenciamento dos resíduos sólidos, promovendo lucratividade às indústrias de
reciclagem e reduzindo impacto ambiental desencadeado pelos comportamentos
de desperdício da sociedade, sem serem de fato reconhecidos enquanto
trabalhadores”. Enquanto isso, ressalta, “as ações concretas voltadas
para a saúde dos trabalhadores informais ainda são defasadas”.
Entre
os problemas constatados em sua pesquisa, Tanyse chama atenção para os riscos à
saúde aos quais os catadores estão submetidos, desde implicações osteomusculares,
por conta do peso carregado nos carrinhos de mão, acidentes de trabalho
envolvendo materiais perfurocortantes, até o contato com “animais mortos,
vidros, agulhas e seringas contaminadas presentes nos resíduos urbanos”. De
acordo com ela, a situação é agravada “pelo fato de a sociedade não separar ou
descartar corretamente tais materiais”. O “descuido no descarte dos resíduos”,
frisa, aumenta a propensão de os catadores adquirirem “doenças graves, dentre
elas as hepatites, o HIV e tétano”.
Tanyse
Galon é bacharel em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo – EERP/USP e doutora em Enfermagem pela USP.
Atualmente é enfermeira no Hospital da USP / Ribeirão Preto.
IHU On-Line - Que considerações sua pesquisa “Do lixo à mercadoria, do trabalho ao desgaste: estudo do processo de trabalho e suas implicações na saúde de catadores de materiais recicláveis” faz acerca da saúde dos trabalhadores que trabalham com reciclagem?
IHU On-Line - Que considerações sua pesquisa “Do lixo à mercadoria, do trabalho ao desgaste: estudo do processo de trabalho e suas implicações na saúde de catadores de materiais recicláveis” faz acerca da saúde dos trabalhadores que trabalham com reciclagem?
Tanyse
Galon - Como sintetiza o título do trabalho, os resultados da pesquisa
mostraram que na medida em que os catadores e catadoras buscam a sobrevivência
por meio da coleta de recicláveis, dando uma característica de mercadoria ou
produto vendável a algo que não tinha mais valor (resíduos ou lixo), eles
vivenciam nesse processo várias cargas de trabalho e desgaste da saúde física e
mental. Ou seja, o resíduo se renova, enquanto o catador se desgasta. E, para
entender a saúde dos trabalhadores, consideramos a importância de se
compreender o entorno econômico, social, político e cultural que envolve nossa
sociedade e que afeta o trabalho dos catadores, como, por exemplo, a cadeia
produtiva da reciclagem, as políticas que envolvem o gerenciamento dos
resíduos sólidos no Brasil, e a sociedade atual que se constitui como uma sociedade
do consumismo e do desperdício, gerando exorbitantes produções de
resíduos sem preocupações com as questões ambientais, sanitárias e sociais que
tal comportamento pode gerar. Nesse sentido, a contradição se dá pelo fato de
que os catadores estão desenvolvendo um papel do qual a sociedade e muitos
municípios se isentam em participar ativamente, e ainda são desvalorizados por
sua atividade promotora de preservação e renovação do meio ambiente.
IHU
On-Line - Qual é o perfil dos catadores analisados na sua pesquisa? O
que eles relatam sobre o processo de trabalho e que avaliações fazem desse
processo?
Tanyse
Galon - Na pesquisa que desenvolvemos, de abordagem qualitativa, foram
entrevistados 23 catadores de materiais recicláveis de rua autônomos da cidade
de Ribeirão Preto/SP, cujo perfil geral (dados sociodemográficos e
ocupacionais) muito se assemelhou ao de outras pesquisas desenvolvidas no país,
tanto de abordagem quantitativa quanto qualitativa. Grande parte dos catadores
é composta de homens e mulheres adultos jovens, embora haja a presença de
idosos atuando na atividade para complementar a renda da aposentadoria; pessoas
com dependentes financeiros, sustentando suas famílias com a reciclagem; homens
e mulheres oriundos de outras regiões, mostrando uma relação entre migração e
trabalho informal; vários deles com imóvel alugado, o que aumenta as
dificuldades financeiras; maioria com ensino fundamental incompleto, situação
que dificulta a inserção no mercado formal de trabalho; histórico laboral de
atividades pouco valorizadas (construção civil, trabalho doméstico);
necessidade de conciliar a reciclagem com outras atividades laborais,
considerando a renda com os recicláveis insuficiente; e por fim, a realização
de um trabalho com horários flexíveis e com renda mensal muito variável, a
depender da quantidade e qualidade dos materiais recicláveis coletados, além
das oscilações de preço das empresas compradoras desses materiais.
IHU
On-Line - A quais problemas de saúde eles estão expostos por conta das
especificidades do tipo de trabalho que desenvolvem?
Tanyse
Galon – Os problemas de saúde enfrentados pelos catadores em decorrência do seu
contexto de trabalho são amplos, sendo que nosso estudo destacou: os problemas
osteomusculares (dor na coluna e membros inferiores, câimbras, etc.) pelo peso
carregado, deficiência de instrumentos laborais adequados e as longas
distâncias percorridas em busca dos recicláveis; acidentes de trabalho
envolvendo materiais perfurocortantes, picadas de animais peçonhentos
(escorpião, etc.) e risco de atropelamento pelo trabalho nas ruas, com quedas e
contusões; por fim, a ansiedade e o estresse, em decorrência da instabilidade
da renda, do trabalho sem horário regular e delimitado, das vivências no
trânsito com seus “carrinhos de mão”, e principalmente devido ao preconceito e
desvalorização que sofrem, referindo que são comumente vistos como pessoas de
má índole e não como trabalhadores de fato.
“Um dos catadores referiu transportar em torno de
980 kg por percurso de coleta, visto que, quanto mais material for encontrado,
maior a renda adquirida”
IHU
On-Line - Você menciona que os catadores de materiais recicláveis
enfrentam cargas de trabalho biológicas, mecânicas, fisiológicas e psíquicas.
Pode explicar cada uma delas?
Tanyse
Galon - Dentro do referencial teórico que adotamos em nossa pesquisa,
entende-se que as cargas de trabalho, geradas no interior do processo de
trabalho (ou cotidiano laboral), são os elementos ali presentes que vão gerar
desgaste da saúde dos trabalhadores, potencial ou estabelecido. Dentro das
cargas de trabalho que os catadores enfrentam, destacamos:
1. Biológicas: contato com animais mortos, vidros, agulhas e
seringas contaminadas presentes nos resíduos urbanos, situação que, segundo os
trabalhadores, é agravada pelo fato de a sociedade não separar ou descartar
corretamente tais materiais;
2. Mecânicas: risco de
atropelamento no trânsito, sendo que os trabalhadores referiram que sua
presença nas ruas com seus carrinhos carregados de recicláveis são vistos pelos
demais como entraves ao funcionamento do tráfego, aumentando os riscos de queda
e contusões graves;
3. Fisiológicas: o
esforço físico pesado por carregarem grandes quantidades de materiais por
longas distâncias. Um dos catadores referiu transportar em torno de 980 kg por
percurso de coleta, visto que, quanto mais material for encontrado, maior a
renda adquirida (renda por produção);
4. Psíquicas: preconceito e desvalorização que sofrem em seu
cotidiano laboral, destacando que este foi o tema mais demandado pelos
catadores dentre todos os demais. Os trabalhadores referiram que sua
invisibilidade é comum, sendo que muitas pessoas “fecham os vidros do carro” ou
“passam de longe”, evitando a presença dos catadores. Todo este quadro de
cargas laborais é agravado pela falta de recursos de proteção, reconhecimento e
valorização do trabalho que desenvolvem, ficando o catador sozinho em seu
cotidiano laboral.
IHU
On-Line - A que tipo de materiais os catadores ficam expostos e quais
os riscos do contato com esses materiais à saúde?
Tanyse
Galon - Relatos de exposição a vidros, agulhas e seringas, e até fetos humanos
presentes nos resíduos urbanos mostram que ainda há um descuido no
descarte dos resíduos e uma elevada propensão entre os catadores de
adquirir doenças graves, dentre elas as hepatites, o HIV,
tétano, entre outras. Tal situação mostra que o trabalho dos catadores nas ruas
ainda apresenta-se muito precarizado, visto que os mesmos constantemente abrem
sacos de lixo, desprovidos de luvas ou máscaras, sem saber ao certo o que
encontrarão. Nesse sentido, muitos deles buscam fornecedores fixos de materiais
recicláveis em lojas, supermercados, empresas, etc., com o objetivo de evitar o
contato com tais materiais perigosos à saúde.
“Vidros, agulhas, seringas e até fetos humanos,
mostram o descuido no descarte dos resíduos”
IHU
On-Line - Como os problemas de saúde aos quais os trabalhadores são
expostos são abordados na área de saúde no país atualmente?
Tanyse
Galon - A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora
tem reconhecido a necessidade de ações de saúde voltadas também para as
categorias laborais inseridas na informalidade, especialmente aquelas em
condição altamente excluída, como é o caso dos catadores. Entretanto,
observamos que as ações concretas voltadas para a saúde dos trabalhadores
informais ainda são defasadas. Autores que investigam o mundo do trabalho têm
apontado a heterogeneidade e complexidade do mundo laboral, que envolve a
existência das diversas formas de trabalho flexível, dentre elas os
subcontratados e os terceirizados, condições que afastam os trabalhadores dos
direitos à saúde no trabalho e o descumprimento ou defasagem de leis
trabalhistas que os protejam.
Entre
os catadores entrevistados em nossa pesquisa, houve relatos de falta de
recursos financeiros para adquirir equipamentos de proteção
individual, além do fato de que buscam atendimento em serviços de saúde apenas
quando consideram grave a sua condição. Alguns deles referiram que quando
sofrem acidentes de trabalho, comumente prosseguem na coleta de recicláveis,
trabalhando apesar de doentes, visto que não há garantia de renda ou afastamento
remunerado por problema de saúde. Nesse sentido, muito deve ser feito pelos
trabalhadores informais.
IHU
On-Line - Existe alguma discussão nos hospitais sobre o desenvolvimento
do trabalho de reciclagem de materiais usados nos próprios hospitais? Como o
processo de reciclagem e implicações à saúde dos trabalhadores que são
responsáveis pela reciclagem são abordados nos hospitais?
Tanyse
Galon - Uma das exigências da Política Nacional de Resíduos Sólidos
é que os estabelecimentos (empresas, indústrias, etc.) e as residências
realizem a segregação dos resíduos (separando os materiais recicláveis), o que
inclui os serviços de saúde. Os poderes locais (municípios) devem realizar todo
o sistema de coleta seletiva, com centros de triagem e meios de transporte para
coleta desses materiais recicláveis separados na fonte, levando-os para
cooperativas de reciclagem, com a atuação prioritária dos catadores de
materiais recicláveis, que devem ser incluídos nesse processo. Vários hospitais
no país têm grupos internos voltados para essa questão, treinando as equipes a
separarem os materiais recicláveis dos materiais perigosos à saúde e fazendo a
destinação adequada.
Entretanto,
os catadores ainda referem encontrar resíduos hospitalares nos
sacos de lixo comum nas ruas, expondo-os a riscos importantes à saúde, o que
evidencia a necessidade de maior investimento e conscientização tanto dos
produtores de resíduos (sociedade), quanto dos serviços de saúde, que precisam
aplicar de fato as políticas de gerenciamento dos resíduos
produzidos.
IHU
On-Line - Como se dá a improvisação dos instrumentos de trabalho entre
os catadores?
Tanyse
Galon - Por estarem inseridos em um trabalho informal e por apresentarem, em
sua maioria, dificuldades socioeconômicas, os catadores comumente improvisam
seus instrumentos de trabalho com materiais retirados dos próprios
resíduos. Para formarem seus carrinhos de mão, eles utilizam peças de
geladeira, grades, tábuas, barras de
ferro, cabos de vassoura, bags (sacos grandes), tudo com o intuito de elaborarem
tais veículos para transporte dos materiais, adaptando-os na medida em que as
dificuldades e necessidades vão surgindo. O que ocorre é que muitos desses
instrumentos não estão adequados à corporalidade e funcionalidade dos
trabalhadores, o que gera inadaptações de ordem ergonômica, levando-os a
problemas osteomusculares. Visando superar tais circunstâncias, muitos deles,
na medida em que vão angariando maior renda, buscam adquirir veículos
motorizados (peruas) ou de tração animal, com o intuito de reduzir a carga de
trabalho e aumentar a renda adquirida. Porém, até chegarem nessa possibilidade,
muitos deles já desenvolveram problemas de saúde.
“Os catadores comumente improvisam seus instrumentos
de trabalho com materiais retirados dos próprios resíduos”
IHU
On-Line - Diante das implicações à saúde e da condição de trabalho dos
trabalhadores, que alternativas sugere em relação a esse tipo de trabalho, que
hoje é de certo modo enaltecido pelas vantagens que traz ao meio ambiente?
Tanyse
Galon - O que nos despertou a atenção durante o desenvolvimento da pesquisa foi
o fato de que, embora o trabalho dos catadores seja
enaltecido pelas vantagens ambientais que proporciona, tal discurso fica apenas
no campo da retórica, em especial nos discursos midiáticos e políticos. Ainda
falta muito a avançar em termos concretos. Os catadores, especialmente os que
trabalham de forma autônoma nas ruas, ainda nos relatam que estão desprovidos
de recursos laborais, de proteção à sua saúde e de uma renda digna e condizente
com o benefício que promovem.
Tais
trabalhadores estão reduzindo gastos dos municípios com o
gerenciamento dos resíduos sólidos, promovendo lucratividade às indústrias de
reciclagem e reduzindo impacto ambiental desencadeado pelos comportamentos de
desperdício da sociedade, sem serem de fato reconhecidos enquanto
trabalhadores. É claro que não podemos desconsiderar os ganhos que o Movimento
Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR até aqui
conquistou, resultando no reconhecimento da profissão na Classificação
Brasileira de Ocupações – CBO
e na criação de cooperativas de reciclagem ao redor do país, com melhores
condições de trabalho e renda. Entretanto, apenas 10% dos catadores no Brasil
atuam nessas cooperativas, sendo que muitas delas ainda apresentam falta de
recursos para um funcionamento adequado. Nesse sentido, a mobilização dos
municípios no cumprimento das políticas, considerando a inclusão socioeconômica
dos catadores, e a atuação da sociedade no reconhecimento e valorização desses
trabalhadores são questões importantes a serem desenvolvidas não apenas
enquanto pauta de discussão, mas também resultando em ações concretas e
transformadoras da realidade dos catadores. (ecodebate)