“Estamos assistindo, no país, à elaboração de uma série de
políticas que incentivam a monocultura, a exposição de grãos, e isso afeta
diretamente a questão da alimentação do povo brasileiro”, diz o coordenador
nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA.
Apesar de os
agricultores familiares e os pequenos camponeses serem responsáveis por 70% da
produção alimentícia brasileira, “o processo de comercialização da produção é
controlado por grandes redes varejistas: Carrefour, Walmart e Pão de Açúcar
controlam 80% da circulação de alimentos; são elas que definem os preços dos
produtos”, informa Raul Klauser à IHU On-Line, em entrevista concedida por
telefone na manhã do Dia Mundial da Alimentação, durante a Jornada Nacional de
Lutas por Soberania Alimentar, organizada pelo MPA.
No que se refere à
produção de grãos no país, Klauser assinala que “as mesmas empresas que
controlam a oferta e comercialização da soja, do milho, produzem os
agrotóxicos, os transgênicos, o modelo tecnológico, gerando um controle em
torno dos alimentos”.
Na entrevista a
seguir, ele comenta as políticas públicas destinadas à agricultura familiar e
enfatiza que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –
PRONAF, a maior política pública destinada ao setor, “não corresponde à
necessidade” dos agricultores. E dispara: “Considerando o universo de oito
milhões de famílias camponesas, somente cerca de um milhão tem acesso ao
programa. Há uma massa excluída, porque a lógica do crédito rural não segue a
lógica da agricultura camponesa”.
Raul Klauser pontua
ainda que o Movimentos dos Pequenos Agricultores vê com preocupação o aumento
do preço dos alimentos, que é recorrente nos últimos anos. “Há inflação no
preço dos alimentos, e, se não mudarmos a estrutura de produção, o preço irá
aumentar ainda mais, refletindo diretamente na capacidade da população de se
alimentar. Isso pode refletir em uma piora no sentido de não atender aos
Objetivos do Milênio” [1], adverte.
Sobre o tema, o IHU
irá promover, no próximo ano, o XV Simpósio Internacional IHU – Alimento e
Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Raul Klauser é
coordenador nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA.
IHU On-Line –
Em que consiste a iniciativa da Jornada Nacional de Lutas por Soberania
Alimentar?
Raul Klauser
– Ontem, dia 16 de
novembro, foi o Dia Mundial da Alimentação e diversas organizações fizeram
manifestações para discutir por que o Estado brasileiro tem privilegiado as
políticas públicas que favorecem a produção e exportação do agronegócio em
detrimento da agricultura camponesa. Em consequência dessa política, houve
inflação no preço dos alimentos, as áreas de cultivo de feijão e mandioca estão
sendo reduzidas, ao passo que aumentam as áreas cultivadas de cana-de-açúcar e
eucalipto. Estamos assistindo, no país, à elaboração de uma série de políticas
que incentivam a monocultura, a exportação de grãos, e isso afeta diretamente a
questão da alimentação do povo brasileiro. Junto a isso, há as implicações do
modelo tecnológico, baseado na produção química, com uso de agrotóxicos — o
Brasil, nos últimos quatro anos, já é considerado o maior consumidor de
agrotóxicos do mundo. Além disso, há um ano e três meses não é decretada
nenhuma área para a reforma agrária no país. Então, nesse sentido, a Jornada
Nacional de Lutas pela Soberania Alimentar quer demonstrar que o caminho que o
Brasil está seguindo não é o de produzir alimentos, mas de produzir fome. O
país pode até produzir dólares, mas não produz alimento para a população, o que
está completamente na contramão da soberania alimentar.
IHU On-Line –
Como avalia o processo de produção e distribuição de alimentos no Brasil? Qual
tem sido a participação dos camponeses e pequenos agricultores nesse processo?
Raul Klauser
– Os dados do último
censo agropecuário realizado pelo IBGE demonstram que 70% da produção de
alimentos é realizada pelos camponeses. Então, eles efetivamente produzem os
alimentos. Entretanto, o processo de comercialização da produção é controlado
por grandes redes varejistas: Carrefour, Walmart e Pão de Açúcar controlam 80%
da circulação de alimentos; são elas que definem os preços dos produtos. Essa é
uma situação complicada, porque, no caso dos grãos, as mesmas empresas que
controlam a oferta e comercialização da soja, do milho, produzem os agrotóxicos,
os transgênicos, o modelo tecnológico, gerando um controle em torno dos
alimentos. Então, os camponeses de fato produzem, mas não controlam a produção.
IHU On-Line –
Os pequenos agricultores reivindicam mais espaço no mercado?
Raul Klauser
– Veja bem, o Brasil tem
uma das estruturas fundiárias mais desiguais do mundo, então, pensar em uma
política séria e efetiva para distribuir alimentos sem pensar a reforma agrária
é impossível. Temos de discutir a reforma agrária e esse é um ponto de que nenhum
movimento social abre mão. Hoje existem cerca de quatro milhões de
estabelecimentos de agricultura familiar, os quais precisam ter incentivo
econômico para a produção. É preciso políticas que tratem da questão sanitária,
da legislação ambiental, da questão do crédito, da tecnologia, da mecanização
da agroecologia, que são instrumentos para ampliar a produção de alimentos nas
áreas que os camponeses já plantam.
IHU On-Line –
Quais são hoje as principais políticas públicas de incentivo aos pequenos produtores
e como implicam na produção de alimentos?
Raul Klauser
– A principal política
do Estado brasileiro é o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar – PRONAF, mas, considerando o universo de oito
milhões de famílias camponesas, somente cerca de um milhão tem acesso ao
programa. Há uma massa excluída, porque a lógica do crédito rural não segue a
lógica da agricultura camponesa. Portanto, o sistema de crédito oferecido não
corresponde à necessidade.
Também são políticas
importantes o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e o Programa Nacional da Alimentação Escolar - PNAE. Em relação a este último, a
dificuldade que nós, camponeses, enfrentamos é com os produtos processados em
relação à legislação sanitária, a qual é altamente restritiva, não tem foco na
equidade e na qualidade dos alimentos, mas funciona como uma barreira de
mercado para impedir a comercialização de alimentos das pequenas agroindústrias
e viabilizar somente as grandes. Então, para que o PNAE se
torne mais efetivo, é preciso mexer na legislação sanitária.
IHU On-Line –
E a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO?
Raul Klauser
– Nós participamos do
processo de construção dessa política, mas até agora ela ainda não foi
efetivada. É uma política bem estruturada, mas a nossa dúvida é em relação à
escala que essa política terá. Ela irá atender 10, 15 mil agricultores, ou oito
milhões de famílias e estabelecimentos agropecuários? Tem de ser uma política
massiva, e não uma política de experiência para algumas localidades.
IHU On-Line –
Que aspectos podem pôr em risco a soberania alimentar no Brasil?
Raul Klauser
– A diminuição das áreas
de produção de alimento e o aumento das áreas de produção de cana-de-açúcar e
soja são um problema grave. Um aspecto é a expansão dos transgênicos de forma
indiscriminada — este ano mais de 67 milhões de hectares foram cultivados com
transgênicos. Também está em curso a resistência de transgênicos ao herbicida 2,4 D,
que é o agente laranja usado na guerra do Vietnã. O controle do mercado pelas
multinacionais é outro aspecto complicado, porque elas passam a determinar o
preço dos alimentos e, portanto, isso representa um risco gravíssimo para os
agricultores. Esses são os principais elementos que põem em risco a soberania
alimentar no país.
IHU On-Line –
Qual é a participação de empresas estrangeiras no processo de vendas de terras
destinadas à produção de alimentos?
Raul Klauser
– Não tenho esses dados
no momento, mas a questão fundamental é que a forma como o Estado brasileiro tem
conduzido a questão da agricultura no país está entregando o território para as
multinacionais de forma direta e indireta. Direta no que se refere à compra de
terras brasileiras pelas empresas e indireta pela aquisição de ações em
empresas nacionais. Esse processo não seria permitido em nenhum país
desenvolvido. Nossa reivindicação é de que seja vedada a aquisição de terras
por estrangeiros e que o governo federal tenha mecanismos efetivos de controlar
isso.
IHU On-Line –
Quais são os problemas econômicos que afligem o Nordeste e implicam diretamente
na produção de alimentos?
Raul Klauser
– As políticas públicas
aplicadas no Nordeste sempre tiveram como objetivo combater a seca.
Considerando a questão climática da região, seria o mesmo que, na Europa, ter
políticas públicas de combate à neve. Políticas de combate à seca não resolvem
a questão alimentícia do Nordeste; tem de ter política de convivência com o
semiárido. Então, essa compreensão equivocada acerca do Nordeste foi o primeiro
fator que limitou o desenvolvimento de novas ações.
Outro equívoco na
região é a transposição do Rio São Francisco.
Trata-se de uma obra gigantesca, milionária, mas que não terá o objetivo de
produzir alimentos para o povo. Pelo contrário, a obra irá favorecer a produção
de camarão, a fruticultura de exportação, cana-de-açúcar irrigada, etc. Prova
disso é a área de 20 mil hectares da Monsanto, localizada em um perímetro
irrigado, para fazer experimentos com transgênicos, enquanto o povo não tem
arroz, não tem feijão para comer.
Outro problema
histórico é o acesso à água da cisterna. Esta é uma política que necessita ser
universalizada em todo o Nordeste. O governo preferiu investir nas cisternas de
polietileno, mas elas não se adaptam à realidade, porque não resistem ao calor
do sol. Elas esquentam e liberam toxinas na água.
Em períodos de safra
boa, sempre há o problema do preço a cobrar pelos alimentos. Então, é preciso
uma política de comercialização para garantir a renda dos agricultores nos
momentos bons. A questão do acesso à terra, a regularização dos territórios Ribeirinhos,
dos Quilombos, é outra demanda. Muitas
comunidades tradicionais estão sendo ameaçadas por grandes empreendimentos,
principalmente as que vivem nas margens do Rio São Francisco.
Regularizar esses territórios é uma questão fundamental.
IHU On-Line –
Qual é o cenário brasileiro em relação à alimentação e à nutrição, considerando
os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de erradicar a fome?
Raul Klauser
– Houve avanços
consideráveis no Brasil, mas não são mudanças estruturantes, porque as
políticas de transferências de renda, o Programa Bolsa Família,
etc., são políticas compensatórias, as quais não mudam efetivamente a estrutura
de produção e a estrutura econômica do país. Para mudar a estrutura econômica
do país, é preciso distribuir terra para quem não tem terra, é preciso acabar
com essa possibilidade de os estrangeiros comprarem terras no Brasil, é preciso
limitar os monocultivos, limitar a grande produção de agrocombustíveis. Esses
seriam caminhos estruturais.
Vemos com muita
preocupação o aumento do preço dos alimentos, como ocorreu no início deste ano.
Há inflação no preço dos alimentos, e, se não mudarmos a estrutura de produção,
o preço irá aumentar ainda mais, refletindo diretamente na capacidade da
população de se alimentar. Isso pode refletir em uma piora no sentido de não
atender aos Objetivos do Milênio.
Outra questão
gravíssima é a qualidade dos alimentos, uma vez que eles estão sendo
envenenados. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA tem publicado os relatórios do programa de análise de agrotóxicos nos
alimentos, e a quantidade de alimentos fora dos padrões mínimos é muito grande.
Então, isso reverte em problemas de saúde pública: já foram registrados um
milhão de novos casos de câncer por ano, segundo o Instituto Nacional do Câncer, além de várias doenças ligadas à questão gastrointestinal,
que é resultado direto de uma alimentação contaminada com produtos químicos. A
questão do alimento não é uma preocupação só da população do campo, tem de ser
uma preocupação de toda a sociedade, que deve decidir qual tipo de alimento
quer comer.
Nota:
[1] Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio – ODM surgem da Declaração do Milênio das Nações
Unidas, adotada pelos 191 estados membros no dia 8 de setembro de 2000. Criada
em um esforço para sintetizar acordos internacionais alcançados em várias
cúpulas mundiais ao longo dos anos 90 (sobre meio-ambiente e desenvolvimento,
direitos das mulheres, desenvolvimento social, racismo, etc.), a Declaração traz
uma série de compromissos concretos que, se cumpridos nos prazos fixados,
segundo os indicadores quantitativos que os acompanham, deverão melhorar o
destino da humanidade neste século.
Acabar com a extrema
pobreza e a fome, promover a igualdade entre os sexos, erradicar doenças que
matam milhões e fomentar novas bases para o desenvolvimento sustentável dos
povos são alguns dos oito objetivos da ONU apresentados na Declaração do
Milênio, e que se pretendem alcançar até 2015. (EcoDebate)