A questão da privatização da água na Encíclica Laudato Sí
Muitos de nós raramente paramos para pensar, quando estamos
bebendo um copo com água, que este líquido é essencial para nos manter vivos.
Humanos podem morrer após três dias sem ingerir líquidos. A água é tão central
para manter a vida no planeta que ela vem sendo a causa de guerras por milhares
de anos entre sociedades que muito cedo aprenderam que a sua posse resulta em
poder.
Sede não tem um competidor a altura. Bastariam estes
motivos para impedir que ela seja controlada por grupos econômicos.
Não
é sem motivo que a palavra água foi citada quarenta e sete vezes pelo Papa
Francisco na sua encíclica Laudato Si´(*). Isso mostra a preocupação do Papa e
a importância dada por ele a água como elemento sagrado e essencial para manter
a vida. Nesta que é a sua mais famosa encíclica, ele afirma que “Uma maior
escassez de água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários
produtos que dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer
uma aguda escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas
medidas urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de
pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais
se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século.” Sem
dúvida, a escalada inflacionária de alguns alimentos tem, muitas vezes, a falta
de acesso a água como causa e, em alguns casos, o agronegócio aproveita-se da
situação para lucrar ainda mais, mesmo sendo ele o setor produtivo que gasta
70% da água doce no planeta. O Brasil conhece bem esta situação.
Ao
comentar sobre a poluição das águas no planeta, o Papa Francisco afirma que “Em
muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida
por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países
desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não pensamos apenas nas
descargas provenientes das fábricas; os detergentes e produtos químicos que a
população utiliza em muitas partes do mundo continuam a ser derramados em rios,
lagos e mares.” Não há quem duvide que esta poluição é a causa de muitas
enfermidades no planeta. Se a poluição e a falta de saneamento básico ceifa
milhões de vidas todos os anos vítimas de doenças que poderiam ser evitadas,
especialmente de crianças, as soluções apontadas pelo pensamento Neoliberal,
inclusive no Brasil, é a privatização do saneamento básico, como alerta o
documento papal ao ressaltar que, “Enquanto a qualidade da água disponível
piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar
este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado.”
Ressaltemos que muitas distribuidoras de água estaduais do nosso país estão em
processo de estudo para a sua privatização, ou concessão para a iniciativa
privada como o governo eufemisticamente a chama, neste momento. É a confirmação
da tendência que Laudato Si´ nos alerta.
Em
um mundo onde mais de 50% das pessoas vivem em grandes cidades, o resultado é
que muitos dos seres humanos estão perdendo o contato com os ciclos da natureza
ou tem uma relação de distância com o que podemos chamar de velocidade natural
da Terra. Este fato afeta profundamente a percepção de como se deve lidar com a
água no cotidiano. Reflitamos sobre o seguinte exemplo: uma família está
visitando a cidade de do Rio de Janeiro em um daqueles verões escaldantes e
decide parar em um restaurante para o almoço. O garçom vem com o cardápio e
pergunta se querem uma bebida. Depois de andar sob o sol do verão carioca por
horas, a única coisa que os integrantes desta família desejam é beber um pouco
de água gelada que logo será trazida engarrafada e servida pelo garçom para
todos os que estão sentados à mesa. Quando ao final da refeição a conta chega,
a família será cobrada pela água que, a depender do restaurante, muitas vezes é
mais cara do que gasolina na mesma quantidade. Isso não aconteceria em países
como os Estados Unidos, já que é uma tradição nos restaurantes de lá ter água
servida de forma gratuita. Na cidade de Nova York, por exemplo, você pode até
mesmo tomar água vinda da torneira, pois aquela cidade é famosa por pagar aos
proprietários das terras de onde vem as águas para abastecer as casas de seus
residentes para que eles preservem os rios e assim a cidade não precise
utilizar agentes químicos para trata-la.
No
Brasil, seja porque a água não é tratada adequadamente para o consumo humano ou
porque os restaurantes lucrarão mais vendendo água engarrafada para os seus
clientes, esta família deve estar preparada para gastar entre 10 e 20 Reais
pelo dia de passeio apenas com a compra de água para se manter hidratada. Isso
sem contar com a incerteza se a água comprada é mesmo tratado ou não. A outra
opção seria levar a própria água de sua casa, um hábito que deve começar a
aumentar cada vez mais entre os brasileiros.
O
preço da água tem aumentado em várias partes do mundo depois de sua
privatização. A história da relação entre a iniciativa privada e a água não é
nova. Em décadas recentes a sua privatização tem sido causa de conflito em países
como a França, os Estados Unidos, Brasil, Honduras, Argentina, Israel,
Palestina, Turquia, Sudão, Sudão do Sul, Egito e muitos outros. Um dos
conflitos mais conhecidos aconteceu na Bolívia no ano 2000 quando dezenas de
pessoas morreram em um protesto contra a privatização da água na cidade de
Cochabamba, no que ficou conhecido como A Guerra da Água. Neste momento, a
cidade de Buenaventura, na Colômbia, passa por grandes protestos e novamente a
questão da água é uma das razões. Como chegamos a este ponto? Como permitimos
que multinacionais tomassem um dos elementos essenciais para manter a vida no
nosso planeta sob seu poder? Uma das respostas pode ser encontrada nos
documentos do Banco Mundial. Esta organização internacional tem feito lobby
para modificar leis relacionadas com a posse da água e para que ela seja
classificada como passível de valor econômico, isto é, uma mercadoria, o que
facilita a sua comercialização. O fato é que algumas multinacionais veem a água
como o novo ouro, ou ouro azul como é agora chamada e a perspectiva de lucro é
imensurável para elas.Comunidades
ao redor do mundo estão se organizando para resistir a privatização da água.
Bolívia tomou de volta a concessão que deu para a multinacional americana que
administrava a água em Cochabamba. Nos Estados Unidos há ONGs nos estados de
Michigan, Califórnia e Oregon que estão em batalha contra políticos que apoiam
privatização da água e contra multinacionais como a Nestlé, famosa pelo
comércio de água mineral. Na França, a cidade de Paris está retomando a
administração da distribuição da água após protestos contra os altos preços e
denúncias de corrupção no sistema. Em Minas Gerais, comunidades se organizam
contra a escalada privatista de suas fontes de águas minerais. No Rio de
Janeiro, a privatização da CEDAE levou milhares para as ruas este ano. Na
Paraíba, a pressão dos movimentos organizados fez com que o governador
desistisse de privatizar a CAGEPA.
Laudato
Si´ nos convoca a proteger a sacralidade da água, tão sagrada que simboliza o
sacramento do batismo para católicos e vários outros credos. Esta encíclica nos
chama a tomar uma atitude para que a água se torne um direito para todos os
seres do planeta. Nós devemos lutar para que água não se torne causa de
sofrimento para os mais marginalizados de nossa sociedade e que a situação não
piore ainda mais caso a água se torne apenas um produto de mercado como outro qualquer.
Não é à toa a advertência que Francisco nos faz ao lembrar que “Na realidade, o
acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e
universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição
para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida
social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é
negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável.” Sem o
direito a água, todos os outros direitos sequer podem ser reivindicados. (ecodebate)