Não podemos aceitar a naturalização da violência e dos
impactos das Mudanças Climáticas
O aquecimento global
também deverá deixar as pessoas com a cabeça mais quente, aumentando o número
de conflitos sociais em todo mundo. A previsão é de pesquisa publicada na
edição desta semana na revista “Science”, que congregou dados de 60 estudos
realizados nos últimos anos em busca de ligações entre períodos de mudanças
climáticas e eventos meteorológicos extremos com casos de violência, abrangendo
desde brigas domésticas na Índia e Austrália a assaltos, assassinatos e
estupros nos EUA e Tanzânia, brutalidade policial na Holanda, invasões de
terras no Brasil, guerras civis na África ou mesmo o colapso da civilização
Maia no primeiro milênio depois de Cristo.
Análise
O texto do caderno
Ciência, do O Globo de 02/08/13, busca comunicar ao leitor do jornal uma
relação entre Mudanças Climáticas e as palavras guerra, violência e conflitos
sociais. Essa mensagem fica clara nas três frases de chamada da matéria no topo
da página. A matéria de página inteira ainda tem três figuras: uma grande foto
com centenas de pessoas sobre um trilho de trem que, segundo a legenda, são
integrantes do MST, embora não haja na foto qualquer bandeira do Movimento e
nem texto faça qualquer citação à foto; — e outros dois mapas planos do mundo,
que tratam do tema das mudanças climáticas mas também não recebem qualquer
comentário no texto. Para os muitos leitores de jornal impresso que não se
detêm ao texto, mas optam por uma leitura mais superficial, lendo somente as
manchetes e as imagens, gráficos ou quadros, pode ficar estabelecida uma
relação entre violência e MST, e que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra existe porque há Mudanças Climáticas.
Para estabelecer a
relação entre Mudanças Climáticas e Violência, O Globo escolheu um estudo
quantitativo publicado na revista Science, que buscou estabelecer relação
estatística entre 60 outros diferentes estudos quantitativos sobre mudanças
climáticas, eventos meteorológicos extremos e casos de violência de várias
regiões do mundo, contabilizando desde brigas domésticas, assassinatos e
estupros, passando por brutalidade policial, conflitos agrários, guerras civis
e até colapso civilizatório. Não nos dedicaremos nessa analise ao estudo, mas à
matéria do jornal. Mesmo assim, pelas informações da pesquisa revelada em O
Globo, trata-se de um estudo audacioso, de conclusões matemáticas possíveis,
porém de interpretações limitadas, sujeitas a manipulações. Os autores do
estudo concluem que as alterações do clima têm impacto significativo no
comportamento violento da sociedade e na eclosão de conflitos, apesar de os
pesquisadores reconhecerem que essa ligação entre clima e violência não é a
única ou principal causa dos conflitos.
Apresento três
críticas mais gerais a esta matéria. A primeira delas é que as limitações do
estudo (reconhecidas pelos autores) só aparecem nas últimas linhas do texto
(ocupa menos de 10% do seu conteúdo). Desta forma, mesmo apresentando a
informação para o leitor que leu toda a matéria (só para este leitor), no seu
conjunto, prevalece a informação de que são as mudanças climáticas responsáveis
pela violência na sociedade.
A segunda crítica
mais geral é sobre a escolha do estudo. Ao escolher essa pesquisa e não outra,
O Globo optou por passar para seus leitores a ideia de que os conflitos sociais
são decorrentes de fenômenos do clima. Para deixar mais clara essa crítica,
apresento como contraponto parte dos resultados de outro artigo científico,
também quantitativo e de pesquisadores da mesma Universidade da Califórnia,
EUA, em Berkeley.
Publicado na revista EcoHealth em
2007, com o título Climate
Change and Global Health: Quantifying a Growing Ethical Crisis
(Mudança Climática e Saúde Global: quantificando o crescimento da Crise ética),
o estudo de Patz e colaboradores compara as emissões acumuladas de dióxido de
carbono (CO2) por país entre 1950-2000 com a estimativa da Organização Mundial
da Saúde (OMS) em quatro resultados na saúde: malária, desnutrição, diarreia e
mortes relacionadas a inundações fluviais e costeiras.
O CO2 é
considerado o principal gás responsável pelo efeito estufa e foi contabilizado
no estudo pegando as informações de emissão acumulada para cada país
(tonelada/habitante/ano) durante a segunda metade do século XX. A estimativa de
crescimento de doenças atribuíveis ao aumento da temperatura da OMS leva em
consideração o período entre 2000 e 2030, calculada pela mortalidade de milhões
de pessoas.
O Cartograma ao lado
apresenta uma distorção dos tamanhos dos países, no primeiro mapa identificando
a contribuição nas emissões de CO2 e no segundo a estimativa do
impacto sofrido em doenças sensíveis ao clima. Essa distorção revela de forma
didática para o leitor do estudo o desequilíbrio entre as populações que mais
sofrem de um aumento de doenças sensíveis ao clima contra as nações que mais
causam o aquecimento global.
Segundo o estudo, em
2004 os Estados Unidos apresentavam emissões per capita próximas de 6
toneladas/ano. As emissões per capita dos países em desenvolvimento eram de
aproximadamente de 0.6 tC/ano, e mais de 50 países apresentavam resultado
abaixo de 0.2 tC/ano (ou 30 vezes menos que um americano médio). Os EUA têm
sido tanto o contribuinte principal do mundo para gases de efeito estufa, como
está entre os maiores consumidores de energia do mundo per capita, com o Canadá
e a Austrália não muito atrás.
Por outro lado, as
mesmas regiões ou populações que mais devem sofrer entre 2000 e 2030 com os
impactos das mudanças climáticas já vêm apresentando um maior aumento de
doenças atribuíveis ao aumento da temperatura nos últimos 30 anos. Por exemplo,
a África, um continente onde se estima que de 70% a 80% da malária ocorre, tem
algumas das mais baixas emissões per capita de gases de efeito estufa. De fato,
a OMS mostra que 99% da carga de doença das mudanças climáticas que vêm
ocorrendo nos países em desenvolvimento e 88% desses impactos ocorrem em
crianças menores de 5 anos, sendo outro grande eixo da desigualdade.
Enquanto os países
ricos acumulam os lucros do modelo de desenvolvimento que eles mesmos impõem ao
mundo (altamente poluidor), sobre os países pobres que concentram as piores
condições de infraestrutura e de acesso a políticas sociais (entre elas as de
saúde como ações de cuidado e vigilância) recaem as maiores cargas dos impactos
negativos. Esse tipo de violência tem elementos de uma situação que é chamada
por alguns pesquisadores e organizações da sociedade civil internacional de
Injustiça Ambiental.
Essa mesma Injustiça
Ambiental apresentada acima entre países se manifesta nas diferentes regiões e
dentro dos países, das cidades. A Injustiça Ambiental é caracterizada: a) pela
concentração dos benefícios àqueles que já concentram poder e vivem em melhores
condições; b) concentra os prejuízos, os principais impactos, aos povos
empobrecidos, étnica e culturalmente vulnerabilizados na sociedade; c) pela
violência que se expressa na própria falta de democracia: as comunidades
afetadas não participam da tomada de decisão que resulta em sua realização,
ainda que em nome do desenvolvimento; d) perpetua-se o acesso desigual aos
recursos naturais e a desigual distribuição dos seus benefícios e impactos.
Nem todas das
situações de Injustiça Ambiental estão relacionadas às mudanças climáticas, nem
respondem por todos os tipos de violência. Por outro lado, ainda que os desastres
naturais aumentem em função das mudanças climáticas, como vários estudos tem
demonstrado, não podemos aceitar a naturalização da violência e dos impactos
das Mudanças Climáticas.
Se o MST existe e
está envolvido em conflitos sociais isso se deve muito mais a histórica e
profunda concentração de terras no Brasil e aos impactos sociais e ambientais
do agronegócio que se expande em nosso país desterritorializando comunidades
camponesas, tradicionais e indígenas do que às mudanças climáticas.
Por fim, a terceira
crítica, relacionada com a segunda, é de que outras categorias precisam ser
contempladas para um estudo que pretende explicar a violência no mundo, ou
seja, a violência sofre influências diversas, a depender do tipo de violência.
Por exemplo, a violência relacionada a guerra civil provavelmente vai sofrer
maior influência do acesso a armas do que propriamente das mudanças climáticas.
Nesse sentido, para
agregar um último dado a esta analise apresento abaixo outro cartograma (Figura
2). Nele podemos encontrar a distorção dos tamanhos dos países de acordo com os
gastos militares. As guerras são produção social, assim como a indústria bélica
que também concentra poder e riqueza.
Em 2002, os gastos militares em todo o mundo
foram estimados em 789 bilhões de dólares. Somente os Estados Unidos gastaram
45% desse valor, quase nove vezes mais do que o segundo maior gastador, o
Japão. Este valor cobre os custos de pessoal militar, incluindo o recrutamento
e treinamento, suprimentos, armas e equipamentos, e construção. Também estão
incluídos os gastos com assistência militar a outros territórios. (EcoDebate)
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