O mundo enfrenta uma crise
ambiental sem precedentes. Secas prolongadas, enchentes severas e eventos
extremos cada vez mais frequentes revelam o esgotamento de um modelo de desenvolvimento
que ignora os limites ecológicos do planeta.
No Brasil, essa crise
encontra uma expressão emblemática no Cerrado, um bioma de relevância
continental, essencial para a regulação das chuvas, o abastecimento dos
aquíferos e a estabilidade climática da América do Sul.
Nas últimas quatro décadas, o
Cerrado perdeu quase um terço de sua vegetação nativa, resultado do avanço
acelerado da agropecuária e da expansão desordenada de monoculturas. Essa
transformação não apenas ameaça a biodiversidade, mas também compromete o modo
de vida de comunidades tradicionais e a segurança hídrica de amplas regiões do
país. A continuidade desse processo coloca em risco a capacidade do Brasil de
cumprir seus compromissos ambientais e climáticos.
Às vésperas da COP30,
torna-se indispensável recolocar o Cerrado no centro da agenda ambiental
brasileira e internacional.
Este artigo analisa as
principais ameaças que incidem sobre o bioma, os interesses econômicos e
sociais em disputa e as perspectivas que se abrem para sua conservação. Mais do
que denunciar um quadro de degradação, o texto propõe que o Cerrado seja
reconhecido como um pilar estratégico na construção de políticas públicas que
unam justiça social, proteção ambiental e mitigação da crise climática.
O Cerrado, reconhecido como o
segundo maior bioma do Brasil e um dos mais ricos em biodiversidade do planeta,
ocupa cerca de 24% do território nacional e é considerado um hotspot mundial de
diversidade biológica. Além de abrigar inúmeras espécies endêmicas, o bioma desempenha
um papel estratégico para o equilíbrio climático e a segurança hídrica, sendo
berço de grandes bacias hidrográficas que abastecem diferentes regiões do país
e da América do Sul (de Medeiros et al 2024). No entanto, sua importância
contrasta com a invisibilidade política que frequentemente o acompanha, tanto
nas agendas nacionais quanto nas internacionais, o que tem contribuído para sua
crescente vulnerabilidade.
Nas últimas décadas, o
Cerrado tem sofrido intensas transformações resultantes da expansão da
fronteira agrícola, em especial no MATOPIBA — região que compreende os estados
do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia —, onde o avanço da soja, da pecuária e
de outros cultivos se concentra de forma acelerada (Bataier, 2025). Essa
dinâmica coloca em risco não apenas a biodiversidade, mas também a
sobrevivência de povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores
familiares que dependem diretamente do bioma para sua subsistência.
Desmatamento cresce no
Cerrado e supera Amazônia
O Cerrado é hoje o bioma mais
pressionado pelo desmatamento. Nas últimas quatro décadas, perdeu 40,5 milhões
de hectares de vegetação nativa, equivalentes a 28% de sua cobertura original.
Hoje, 51,2% do bioma mantém vegetação nativa e 47,9% já está sob uso humano.
Atualmente, o Cerrado apresenta 24,1% de seu território ocupado por pastagens e
49% da produção de soja nacional. Essa expansão ocorreu de forma concentrada no
Matopiba que respondeu por 39% da perda líquida desde 1985 e concentrou 73% da
supressão da última década, quando a agricultura cresceu 533% e um quarto dos
municípios passou a ter menos de 20% de cobertura nativa (Custódio, 2025). Essa
transformação em larga escala decorre, sobretudo, da expansão da agropecuária
voltada para commodities, em especial a pecuária bovina, que continuam a
avançar de forma significativa sobre áreas de vegetação natural.
A região do MATOPIBA tem se
consolidado como epicentro desse processo. Ali se concentram alguns dos maiores
índices de supressão de vegetação nativa, muitas vezes amparados por
autorizações legais de desmatamento, o que expõe uma das contradições mais
graves da política ambiental brasileira: o chamado “desmatamento legal”. Mesmo
quando realizado com autorização, esse tipo de supressão compromete
ecossistemas frágeis, coloca em risco a biodiversidade e compromete serviços
ecossistêmicos vitais (CPI, 2024). A flexibilização da regulação ambiental e a
fragilidade da governança territorial agravam o quadro, tornando difícil conter
a perda acelerada de habitats.
Biodiversidade em risco e
perda de serviços ecossistêmicos
Cerrado é considerado um dos
hotspots mundiais de biodiversidade, abrigando milhares de espécies de plantas,
animais e microrganismos, muitas delas endêmicas e ainda pouco conhecidas pela
ciência. No entanto, a rápida transformação do bioma tem levado à extinção de
espécies antes mesmo de serem formalmente descritas, evidenciando a gravidade
do processo de erosão genética e ecológica (Leno, 2025; ISPN, 2025). Essa perda
compromete não apenas a diversidade biológica, mas também a integridade de
processos ecológicos fundamentais.
A formação savânica foi a
mais impactada, com redução de 26,1 milhões de hectares em quarenta anos. A
pressão sobre a água também é expressiva, com retração de superfícies naturais
e aumento de espelhos d’água artificiais. Em 2024, 60,4% da água mapeada no
bioma tinha origem antrópica, como hidrelétricas, reservatórios e aquicultura e
a maior parte das bacias registrou perdas de superfície de água natural
(-27,8%), o que compromete a recarga e a estabilidade hídrica regional.
(Custódio, 2025)
A perda de cobertura vegetal
também tem ampliado a fragmentação dos ecossistemas e a vulnerabilidade a
eventos climáticos extremos. Especialistas alertam que a degradação do Cerrado
interfere na recarga de aquíferos, altera o fluxo de chuvas e aumenta o risco
de secas prolongadas, com impactos diretos sobre a agricultura e o
abastecimento de água no país (Sinimbú, 2025).
Estudos recentes da
Universidade Federal de Goiás revelam que a perda de biodiversidade no Cerrado
é ainda mais grave, do que se imaginava, pois, muitas espécies estão
desaparecendo antes mesmo de serem conhecidas pela ciência (Silveira et al,
2025). Esse processo de extinção silenciosa compromete o patrimônio genético e
ecológico do bioma, eliminando formas de vida que poderiam desempenhar funções
essenciais para o equilíbrio ambiental. A destruição de habitats reduz as
possibilidades de novas descobertas científicas e enfraquece a capacidade do
Cerrado de sustentar processos evolutivos e ecológicos em longo prazo.
O impacto do desmatamento
também se revela na situação de espécies emblemáticas, como o lobo-guará
(Chrysocyon brachyurus). Considerado símbolo do Cerrado, esse canídeo tem
perdido extensas áreas de habitat, o que o obriga a buscar refúgio em regiões
onde não encontra condições adequadas para viver. A devastação do bioma tem
transformado o lobo-guará em uma espécie de “refugiado ambiental”, revelando de
forma dramática como a destruição de ecossistemas empurra a fauna para
situações de vulnerabilidade extrema e aumenta os riscos de conflitos com
atividades humanas (Azevedo, 2025).
Entre os serviços
ecossistêmicos ameaçados, destaca-se o papel do Cerrado como “caixa d’água do
Brasil”. O bioma abriga aquíferos e nascentes que alimentam oito das doze
grandes bacias hidrográficas do país, funcionando como regulador dos ciclos
hídricos em escala continental (AGB, 2024; Albuquerque et al, 2024). O avanço
do desmatamento altera a infiltração de água no solo, reduz a disponibilidade
hídrica e compromete a estabilidade do regime de chuvas, o que afeta tanto a
agricultura quanto o abastecimento urbano. Esse desequilíbrio hídrico amplia a
vulnerabilidade de populações humanas diante de secas prolongadas e eventos
extremos, cada vez mais intensificados pelas mudanças climáticas (Moreno,
2025).
MapBiomas aponta que o Brasil
perdeu 8,5 milhões de hectares de vegetação nativa nos últimos 5 anos, o
equivalente a 2 vezes o Estado do Rio de Janeiro.
Comunidades tradicionais e
conflitos socioambientais
A devastação do Cerrado não
afeta apenas a biodiversidade, mas também impacta diretamente os modos de vida
de povos indígenas, comunidades quilombolas e agricultores familiares que
dependem do bioma para sua subsistência. Essas populações enfrentam violações
sistemáticas de direitos humanos, que vão desde a perda de acesso a recursos
naturais até a violência física contra lideranças locais.
A pressão territorial se
intensifica pelo avanço de grandes empreendimentos de monocultura e de
infraestrutura, que frequentemente ignoram consultas às populações locais e
desconsideram a importância cultural e ambiental de seus territórios. Tais
processos acentuam desigualdades históricas e colocam comunidades em situação
de vulnerabilidade socioeconômica, ao mesmo tempo em que destroem práticas
tradicionais de uso sustentável da terra, essenciais para a conservação do
bioma (BRASIL, 2023; Pati & Yamamoto, 2025)).
Exemplos concretos demonstram
a gravidade desses conflitos. No oeste da Bahia, uma missão do Conselho
Nacional de Direitos Humanos identificou graves violações resultantes da
expansão do agronegócio, incluindo ameaças, intimidações e a expulsão de
famílias de seus territórios tradicionais (AATR, 2024). Já no Maranhão,
organizações da sociedade civil denunciaram a destruição socioambiental causada
pelo avanço da soja sobre comunidades camponesas, que têm perdido terras e meios
de subsistência frente ao poder econômico de grandes grupos (Bezerra, 2024).
Esses casos ilustram como a expansão da fronteira agrícola não apenas degrada o
ambiente, mas também aprofunda desigualdades sociais e viola direitos básicos.
Esse cenário de injustiça
socioambiental tem levado à resistência organizada dessas comunidades, muitas
vezes apoiadas por organizações da sociedade civil e redes de solidariedade.
Cartas públicas, denúncias e missões de órgãos nacionais e internacionais têm
exposto a gravidade das violações, chamando atenção para a necessidade de
políticas públicas que conciliem conservação ambiental com proteção dos
direitos humanos (Bezerra, 2024; Bataier, 2025; Oliveira, 2025). No entanto, a
assimetria de poder entre grandes agentes econômicos e populações locais ainda
dificulta a construção de soluções efetivas e justas para o futuro do Cerrado.
O enfrentamento do
desmatamento no Cerrado tem sido alvo de iniciativas governamentais desde o
início dos anos 2000, com destaque para o Plano de Ação para Prevenção e
Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado). Atualmente em
sua quarta fase, o plano busca integrar ações de monitoramento, ordenamento
territorial, fomento a atividades produtivas sustentáveis e fortalecimento da
fiscalização (BRASIL, 2023). Apesar de representar um avanço em termos
institucionais, sua implementação enfrenta obstáculos relacionados à escassez
de recursos, à fragmentação das políticas ambientais e à pressão constante do
setor agropecuário (Mendes & Batista, 2024).
Nos últimos anos, indicadores
apontaram uma queda relativa nas taxas de desmatamento — em 2024, houve redução
de aproximadamente 33% em comparação ao ano anterior. No entanto, especialistas
alertam que esses números, embora positivos, não são suficientes para reverter
a tendência histórica de perda acumulada do bioma, que continua alarmante em
termos de área total devastada (Guaraldo, 2025). Esse paradoxo revela um dos
grandes dilemas da governança ambiental: avanços pontuais em determinados
períodos não são capazes de alterar de forma estrutural a lógica de expansão
agropecuária baseada na conversão de vegetação nativa.
Outro desafio reside na
regulação do chamado “desmatamento legal”, especialmente no MATOPIBA, onde
autorizações oficiais de supressão de vegetação têm permitido a destruição em
larga escala. Essa prática, amparada por brechas na legislação, enfraquece os
resultados de políticas de conservação e mina a credibilidade do Brasil em
compromissos internacionais. Além disso, a sobreposição de competências entre
diferentes esferas de governo e a ausência de uma governança integrada agravam
a dificuldade de monitorar e conter a degradação (CPI, 2024).
A sociedade civil tem
desempenhado um papel fundamental na defesa do Cerrado. Diversas organizações e
redes, como a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Rede Cerrado, atuam na
denúncia de violações socioambientais, na mobilização de comunidades e na
formulação de propostas de conservação e uso sustentável (Bezerra, 2024;
Oliveira, 2025). Essas iniciativas têm sido importantes para dar visibilidade a
um bioma historicamente marginalizado nas políticas públicas e nos debates
internacionais.
A produção científica também
tem oferecido contribuições relevantes, indicando caminhos para a conservação.
Pesquisas mostram, por exemplo, o potencial das áreas privadas de conservação,
que poderiam preservar até 25% dos habitats naturais do Cerrado se adequadamente
regulamentadas e incentivadas. Programas de uso sustentável, desenvolvidos por
instituições de pesquisa e organizações ambientais, reforçam a viabilidade de
modelos produtivos que conciliem economia e conservação. Essas evidências
demonstram que existem alternativas ao modelo hegemônico de expansão
agropecuária, mas que dependem de apoio político e financeiro para serem
ampliadas (Schmidt, 2023). Essa constatação amplia o horizonte das políticas de
conservação, demonstrando que a proteção do bioma não depende apenas de áreas
públicas, mas também de um engajamento mais amplo de proprietários rurais,
universidades e instituições financeiras em iniciativas sustentáveis e de
restauração ecológica.
Entre as iniciativas mais
promissoras voltadas à recuperação do bioma, destaca-se o Programa Reverte
Cerrado, coordenado pela The Nature Conservancy (TNC) em parceria com
instituições públicas e privadas (TNC,2024). O programa promove a restauração
de áreas degradadas, incentiva boas práticas agropecuárias e busca conciliar
produção e conservação. Seus resultados apontam que é possível reduzir emissões
de carbono, recuperar biodiversidade e aumentar a produtividade agrícola por
meio de práticas integradas de manejo sustentável.
Outra iniciativa de destaque
é o Instituto Cerrados, organização da sociedade civil criada em 2011 que se
tornou referência na proteção e valorização do bioma. Com uma atuação que
integra ciência, tecnologia e participação social, a instituição vem
contribuindo para a criação de áreas protegidas e lidera a formação de Reservas
Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) no país. Também desenvolve projetos
de identificação e mapeamento de comunidades tradicionais, cujos dados
subsidiam políticas públicas conduzidas por órgãos federais. Paralelamente,
realiza ações de prevenção a incêndios e monitoramento do desmatamento,
utilizando sensoriamento remoto e brigadas locais. Ao articular conhecimento
técnico e saberes tradicionais, o Instituto fortalece a resiliência do Cerrado
e reforça sua importância para o equilíbrio ecológico e climático do Brasil
(IC, 2025).
A realização da COP30 em
Belém, no coração da Amazônia, tem gerado grande expectativa em torno da
projeção internacional do Brasil como ator estratégico nas negociações
climáticas. Entretanto, há o risco de que essa centralidade da Amazônia reforce
a histórica invisibilidade do Cerrado, apesar de sua relevância equivalente
para o equilíbrio ambiental e climático (Cortinhas, 2025). Essa assimetria
preocupa organizações e comunidades locais, que defendem que o bioma precisa
ter papel protagonista nos debates internacionais.
Nos últimos meses, povos
indígenas, comunidades tradicionais e organizações da sociedade civil têm se
mobilizado para inserir as demandas do Cerrado na pauta da COP30. Entre as
reivindicações, destacam-se a inclusão do bioma nos compromissos de redução do
desmatamento, o reconhecimento de seus serviços ecossistêmicos e a defesa de
políticas de financiamento voltadas para práticas produtivas sustentáveis no
território (Oliveira, 2025; Pati & Yamamoto, 2025). Essa mobilização amplia
a dimensão política do Cerrado, transformando-o em símbolo da luta por justiça
ambiental e climática.
O reconhecimento do Cerrado
como peça-chave da agenda climática global também depende do esforço do Estado
brasileiro em integrar o bioma às suas estratégias de governança ambiental.
Relatórios recentes já indicam a importância de valorizar o Cerrado em
negociações multilaterais, não apenas como fornecedor de commodities agrícolas,
mas como patrimônio ambiental que conecta biodiversidade, água, clima e modos
de vida (Moreno, 2025; Cortinhas, 2025). Se a COP30 representar um marco para
essa mudança de perspectiva, poderá contribuir para romper o ciclo de
invisibilidade histórica do Cerrado e consolidar sua centralidade nas
estratégias globais de enfrentamento à crise ambiental.
A análise evidencia que o
Cerrado ocupa uma posição paradoxal: é, ao mesmo tempo, um bioma vital para a
manutenção da biodiversidade, da água e do clima em escala continental, e
também o mais pressionado pela expansão agropecuária e pelas falhas na
governança ambiental. A devastação acelerada, que já resultou na perda de
dezenas de milhões de hectares, coloca em risco tanto espécies únicas quanto
comunidades que dependem de seus recursos para sobreviver.
Os esforços de políticas
públicas, embora relevantes em alguns momentos, têm se mostrado insuficientes
diante da magnitude da destruição. As contradições em torno do “desmatamento
legal” e as fragilidades institucionais revelam que avanços pontuais não são
capazes de alterar estruturalmente a lógica de exploração predatória que ameaça
o bioma. Ao mesmo tempo, a resistência das comunidades tradicionais, o trabalho
da sociedade civil e as contribuições da ciência demonstram que existem
alternativas de conservação e uso sustentável que precisam ser fortalecidas.
COP30 e o desmatamento na
Amazônia e Cerrado
As consequências apontam para
o ponto de não retorno da floresta, maior hotspot de risco ambiental planetário
na América do Sul. (ecodebate)









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