quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os vira-latas do Bumba

A chuva no Rio deu uma folga, mas espero que o assunto não saia dos noticiários. Não é hora de esquecer a catástrofe causada não pela intempérie, mas pelo descaso habitual do poder público em relação à vida dos pobres. No momento em que escrevo, a contagem das vítimas está em 412 feridos resgatados dos escombros em todo o Estado. E 251 mortos. Por enquanto. Entre as muitas imagens dos deslizamentos, não me sai da cabeça a foto de um cachorrinho vira-latas encontrado com vida depois de três dias soterrado no Morro do Bumba, em Niterói. O pelo encharcado, dorso arqueado como fazem os cães com muito medo, rabo entre as pernas, claro - e aquele olhar de interrogação que só os bichos domésticos têm quando sofrem: "O que eu fiz pra apanhar assim? Cadê o meu pessoal? Onde estou?" Imagem muda de desolação e desamparo, o vira-latas do Morro do Bumba teve mais sorte do que muita gente, e com certeza terá mais facilidade de encontrar um novo lar. Também são sortudos os cães farejadores que passaram mal com o cheiro do gás metano do antigo lixão e puderam descansar até terem condições de procurar os corpos das pessoas que viviam em cima do mesmo cheiro de gás. É injusto que o sofrimento de um animal nos comova tanto assim. Talvez isso ocorra por conta de seu estatuto de vítima radical, 100% inocente e ignorante a respeito da tragédia humana, sempre humana, que o abateu. Penso na matança dos cavalos pelos capangas do Hermógenes, em Grande Sertão: Veredas. Muitos amigos de Riobaldo morrem na batalha da fazenda dos Tucanos, mas Guimarães Rosa capricha na emoção ao descrever a execução covarde dos cavalos presos, que não podem fugir. Não me espanta que o vira-latas salvo da lama e do lixo nos faça chorar. Mas por que não sentimos comoção muito maior diante de tanta gente desesperada, sem casa, no fim de suas forças a procurar ainda pelos filhos, pais, esposos/as, amigos? Por que não nos desesperamos diante desses e outros, entre os milhões de brasileiros que ainda vivem vulneráveis não apenas às chuvas, mas a tudo, tudo? Ou então, a comoção que sentimos nesse caso talvez seja de natureza diversa da que produz lágrimas fáceis. Talvez esteja mais perto do desespero e da resignação humilhada do que da piedade. No ensaio Da Tristeza, Montaigne se indaga sobre o episódio narrado por Heródoto no qual o rei egípcio Psammenit, derrotado pelo persa Cambises, vê desfilarem diante de si a filha vestida como escrava e o filho a caminho da forca. Psammenit suporta, cabisbaixo, a tragédia que abate seus filhos; mas explode em lágrimas ante a visão de um velho amigo da família (a tradução é controversa: amigo ou criado?) que pede esmolas aos soldados, como um mendigo faminto. Montaigne considera a possibilidade de que a visão do velho amigo teria sido a gota d"água que fez transbordar o "copo até aqui de mágoa" do rei vencido. Mas considera também o relato de Heródoto, para quem a dor ante o destino dos familiares do rei era grande demais para ser chorada. As grandes dores estariam além de qualquer possibilidade de expressão. É mais suportável sofrer pelo cachorrinho do que pelos moradores do Morro do Bumba, assim como parece mais imediata nossa identificação com a impotência dele. Conhecemos a ladainha do fatalismo brasileiro: primeiro se tenta o jeitinho, a viração. Vamos que vamos; se não piorar, já está bom. Depois vem a calamidade (Chuva? Seca? Expulsão da terra? Bangue-bangue?) e a tragédia; depois, a renovada esperança de tudo se ajeitar e a velha, santa paciência. Do outro lado, os governos federal, estadual e municipais, que só agora liberam verbas, removem famílias de outras regiões de risco, determinam terrenos para construções de moradias de emergência. A Caixa Econômica vai liberar empréstimos para as famílias reconstruírem suas casas. Empréstimos? Não seria mais exato falar em indenizações? Agora, só agora, as providências, se é que o dinheiro do Rio não vai parar outra vez na Bahia. Ah, o velho PMDB, nossa mais envergonhada resignação! Qual a diferença, hoje, em relação ao ex-PFL? No Morro do Borel, 150 pessoas, somente desabrigados e seus familiares, fazem protesto contra a precariedade de sua condição e exigem a presença do poder público. Manifesto do Comitê de Mobilização e Solidariedade das Favelas de Niterói critica a especulação imobiliária que expulsa famílias pobres dos bairros para as encostas e contribui com a deterioração do meio ambiente. E exige "...compromissos com os problemas públicos, que nos respeitem como cidadãos e seres humanos". Não faltarão autoridades para acusar os poucos que se mobilizam para protestar, de politizarem a questão. Uai: mas a questão não é política? Querem que acreditemos que viver sobre um velho lixão (há 17 mil pessoas em condições semelhantes na grande São Paulo) é uma situação natural? Nós somos os derrotados que não conseguem chorar. Vivemos, todos, sobre uma espécie de lixo mal soterrado. Antigamente se chamava entulho autoritário. Somos o cachorrinho do Morro do Bumba, salvos por um triz, sem entender o que temos a ver com aquela bagunça toda.
O que escutamos ao relento do vazio é grito dos excluídos ecoando na escuridão dos desalentados, sem ter quem os socorra, curando suas feridas e secando as suas lágrimas, já que nada mais lhes resta ou ao menos lhes console.

Um comentário:

Anônimo disse...

esse artigo saiu no Estadão --- vcs são a mesma pessoa??

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