quinta-feira, 13 de maio de 2010

A Crise dos Alimentos não Acabou

Em 1999 a FAO (Food and Agriculture Organization) produziu o primeiro relatório intitulado ‘The state of food insecurity in the world’, no qual informava a existência de mais de 800 milhões de pessoas desnutridas no mundo1. A meta estabelecida pela Cúpula Mundial da Alimentação de 1996 de redução dos famintos para cerca de 400 milhões em 2015, número correspondente à metade do observado em 1990-92, também foi ressaltada no documento. A realidade mostrou que o mundo não caminha para atingir essa meta. Pelo contrário, o último relatório da FAO divulgado em outubro de 2009 traz a seguinte informação: FAO estima que 1,02 bilhões de pessoas estejam desnutridas no mundo em 2009. Isso representa mais pessoas famintas que em qualquer momento, desde 1970, e piora das tendências insatisfatórias observadas mesmo antes da crise econômica. O aumento da insegurança alimentar não resulta de redução das safras dos pobres, mas dos preços elevados dos alimentos, baixa renda e crescente desemprego que reduziram o acesso dos pobres aos alimentos2. Observa-se na figura 1, reproduzida do mesmo relatório da FAO, que o número de famintos do mundo vinha decrescendo desde a década de 1970, mas a série registrou reversão em meados da década de 1990. Desde então o número vem crescendo de forma sem precedentes na história, a despeito da redução da taxa de natalidade. A crise econômica mundial, iniciada em meados de 2008, contribuiu para piorar a situação. A FAO aponta três fatores relacionados a ela como agravantes da insegurança alimentar para as populações mais pobres do mundo: 1) A crise econômica sucedeu à crise dos alimentos e energia de 2006-08 que elevou os preços da alimentação além do alcance de milhões de pessoas pobres; 2) A crise afetou grande parte do mundo simultaneamente; 3) Os países em desenvolvimento têm maior integração comercial e financeira na economia mundial que no passado, logo estão mais expostos a choques do mercado internacional. Os dados da FAO mostram que, a despeito do crescimento populacional relativamente rápido, a proporção dos famintos no mundo vinha declinando significativamente: da média de 24% da população mundial no triênio 1969-71, caiu para 19% dez anos depois e para 16% no início da década de 19903.
Figura 1 – Número de Desnutridos no Mundo, 1969-71 a 2009. Fonte: UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. The state of food insecurity in the world 2009. Rome: FAO, 2009. Na década de 1990, embora o crescimento populacional tenha sido mais lento, o número de famintos cresceu, mas a situação não era tão crítica porque a proporção em relação à população global continuou decrescente. Essa tendência prevaleceu também nos anos iniciais do século XXI, chegando a 13% no triênio 2004-06. O problema é que depois da crise econômica mundial, também a proporção dos famintos do mundo passou a crescer, atingindo 15% da população mundial em 20094. Felizmente o Brasil não contribuiu para essa piora das estatísticas mundiais. Pelo contrário, as estimativas da FAO mostram que a proporção dos famintos na população brasileira caiu de 10%, na década de 1990, para 6%, no triênio 2004-06. Observa-se que essa redução representou declínio de 28,3% em relação a 2000-02, período em que os famintos do mundo cresceram 1,9% (Tabela 1). Triênio – Nº (milhão) – Proporção (%) - Variação (%) Brasil - Mundo 1990/92 - 15, 8 – 10 - _ -845 – 16 - _ 1995/97 - 15, 6 – 10 - -1,3 – 826 – 16 – 2,4 2000/02 - 16,6 - 9 - 6,4 - 857 - 14 - 3,9 2004/06 - 11,9 - 6 - -28,3 - 873 - 13 - 1,9 Tabela 1 – Número de Pessoas Desnutridas e Proporção da População Total, Brasil e Mundo, 1990-92 a 2004-06 Fonte: UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. FAO hunger. Disponível em: . Acesso em: 6 abr. 2010. A tendência de melhora dos indicadores brasileiros continuou nos anos mais recentes. Notícias divulgadas pelo Ministério da Saúde em março de 2010 informam que entre 1990 e 2008 a porcentagem da população sujeita à desnutrição caiu de 8,8% para 4,8%5. É interessante destacar que o Brasil apresentou tendência divergente dos países em desenvolvimento, maiores vítimas da fome no mundo. Observa-se que no triênio 1990-92, enquanto a média do conjunto dos países em desenvolvimento, que inclui o Brasil, registrava 20% da população desnutrida, no Brasil a proporção era a metade desse percentual (Tabela 1 e Figura 2). A diferença cresceu no triênio 2004-06 com 16% para o conjunto contra 6% para o Brasil.
Figura 2 – Proporção dos Desnutridos na População Total dos Países em Desenvolvimento, 1969-71 a 2009. Fonte: UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. The state of food insecurity in the world 2009. Rome: FAO, 2009. É importante ressaltar que os países menos desenvolvidos vinham apresentando tendência sistemática de queda da proporção dos desnutridos na população. Entre os triênios 1969-71 e 2004-06 houve declínio dos 30% para pouco mais de 15% da população. Em 2008 houve uma reversão de tendência e a proporção dos famintos nesses países se elevou para 17%. Observa-se que a razão entre este número da FAO e a estimativa do Ministério da Saúde indica que a proporção dos desnutridos na população dos países em desenvolvimento gira em torno de 3,5 vezes a proporção observada na população brasileira. Grande parte das maiores dificuldades de acesso à alimentação na atualidade se deve aos preços dos alimentos que ainda estão em alta no mundo, não tanto como no pico da crise, mas bem mais elevados que no passado. Tendo por base a média de 2002-04 = 100, o índice médio dos alimentos atingiu 191,28 em 2008, caiu para 151,54 em 2009, mas nos três meses iniciais de 2010 voltou a crescer, chegando a 168,64 (Tabela 2). Ano - Alimentos ² - Carnes - Lácteos - Cereais - Óleos - Açúcar 2000 - 89,51 - 93,87 - 95,44 - 84,53 - 67,82 - 116,05 2001 - 92,29 - 93,69 - 107,06 - 86,19 - 67,61 - 122,61 2002 - 90,19 - 90,32 - 82,24 - 94,57 - 87,02 - 97,76 2003 - 98,35 - 98,66 - 95,12 - 98,06 - 100,81 - 100,56 2004 - 111,47 - 111,01 - 122,65 - 107,37 - 112,17 - 101,68 2005 - 114,68 - 112,67 - 135,35 - 103,43 - 103,64 - 140,32 2006 - 122,44 - 106,67 - 127,96 - 121,50 - 111,99 - 209,56 2007 - 154,06 - 112,09 - 212,39 - 166,84 - 169,09 - 143,01 2008 - 191,28 - 128,31 - 219,56 - 239,12 - 225,42 - 181,59 2009 - 151,54 - 117,71 - 141,55 - 173,73 - 149,96 - 257,33 2010 - 168,64 - 124,69 - 193,59 - 164,26 - 170,94 - 334,28 Tabela 2 – Índice dos Preços dos Alimentos no Mundo, 1990 a Março de 2010
1Média de 2002-04 = 100. 2Média ponderada pela participação dos grupos de commodities nas exportações mundiais. Fonte: UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. World food situation.
Rome: FAO, 2010. Disponível em:
. Acesso em: 7 abr. 2010. O índice dos alimentos estimado pela FAO é resultado de uma média dos preços dos grupos de produtos, ponderados pela participação de cada um deles nas exportações mundiais. Os resultados mostram que depois da crise dos alimentos o grupo das carnes foi o que menos pressionou o índice geral para cima, pois esteve sistematicamente abaixo da média. Neste início de 2010 destacam-se pela alta e por ordem decrescente os grupos do açúcar, lácteos e óleos. Os índices mensais de preços dos grupos de produtos são úteis para se observar a dinâmica dos preços ao longo do tempo. Os números estão apresentados com base na média de todo o período de janeiro de 1990 a março de 2010 com o propósito de evidenciar a disparidade observada desde 2006 (Figura 3)6. De 1990 a 2005, o máximo índice médio dos alimentos ficou apenas 13% acima da média de todo o período (índice = 113,33 em maio de 1996). A média mensal desses 16 anos ficou abaixo da média dos 20 anos analisados em 9,1 pontos percentuais (índice médio de janeiro de 1990 a dezembro de 1995 = 90,90). Entre janeiro de 2006 e março de 2010 nenhum mês registrou índice de preços dos alimentos abaixo da média dos 20 anos analisados e a maior discrepância foi observada em junho de 2008, quando o índice superou esta média em 84,19%. Na análise dos grupos de produtos, junho de 2008 é também o mês que registrou o máximo índice de toda a série, correspondente ao preço de óleos que chegou a superar a média dos 20 anos em 154,96%.
Figura 3 – Índice Mensal dos Preços dos Alimentos no Mundo, Janeiro de 1990 a Março de 20101. 1Média de janeiro de 1990 a março de 2010 = 100. Fonte: UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. World food situation. Rome: FAO, 2010. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2010. No início de 2010 todos os grupos de produtos registraram índices bem superiores à média da série, destacando-se o açúcar que o superou em mais de 100%, de agosto de 2009 a fevereiro de 2010. De janeiro a março de 2010 o índice médio dos alimentos atingiu 145,46, ficando portanto 45,46% acima da média da série analisada. Pelos indicadores apresentados, pode-se concluir que a crise dos alimentos não acabou. Ela teve início por um conjunto de razões, dentre as quais se destacam a crescente demanda por alimentos nos países emergentes e a escalada dos preços dos combustíveis. A alta dos preços provocou reação em cadeia e a especulação contribuiu para agravar e prolongar o processo, com enormes perdas para os mais pobres do mundo. Muitos países impuseram restrições às exportações, alguns controlaram preços dos alimentos e houve os que mudaram leis e descumpriram contratos, entre outras medidas. O resultado foi um grande movimento especulativo mundial, apontado por Robles, Torero e Braun (2009)7, como sério agravante da crise: As mudanças nos princípios básicos da oferta e demanda não podem explicar plenamente o recente aumento radical dos preços dos alimentos. As crescentes expectativas, a especulação, a monopolização e a histeria também desempenharam papel no nível crescente e volátil dos preços dos alimentos. 1O desnutrido é aquele que recebe quantidade de alimentos insuficiente para suas necessidades energéticas. Neste texto, a exemplo da FAO, os termos faminto e desnutrido foram empregados como sinônimos. Ver: UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. The State of food insecurity in the world 1999. Rome: FAO, 1999. Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2010. 2UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. The State of food insecurity in the world: economic crises – impacts and lessons learned. Rome: FAO, 2009. Disponível em: . Acesso em: 1 abr. 2010. Tradução nossa. 3UNITED NATIONS, Food and Agriculture Organization – FAO. FAO hunger. Disponível em: . Acesso em: 6 abr. 2010. 4Em 2007 e 2008 mais 115 milhões de pessoas foram incluídas entre os famintos crônicos do mundo. Ver: HALLAM, D. (Coord.). The state of agricultural commodity markets: high food prices and the food crisis – experiences and lessons learned. Rome: FAO, 2009. Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2010. 5O Ministério da Saúde julga que o Brasil caminha para atingir todas as metas estabelecidas para o milênio na área de saúde e erradicar a extrema pobreza e a fome é uma delas. Ver em: MINISTÉRIO DA SAÚDE. Brasil reduz a fome, diminui taxa de mortalidade na infância e reverte avanço de doenças endêmicas. Notícias , Brasília, 24 mar. 2010. Disponível em:. Acesso em: 7 abr. 2010. 6A linha horizontal traçada no índice = 100 visa evidenciar as discrepâncias em relação à média do período de 243 meses. 7ROBLES, M.; TORETO, M.; BRAUN, J. Cuando la especulación si importa. Washington, DC: IFPRI, Feb. 2009 (Resumen Temático, 57). Disponível em: <>. Acesso em: 8 abr. 2010. Tradução nossa. (EcoDebate)

Nenhum comentário:

Ondas de calor devem diminuir em 2025

Ondas de calor devem diminuir em 2025, aponta Climatempo. O pico de emissões em 2025 é uma boa notícia, decerto, mas a física é implacável...