Relatório indica que todo o Brasil deverá ficar ao
menos 3ºC mais quente até o fim do século; chuvas podem aumentar 30% no
Sul-Sudeste e diminuir até 40% no Norte-Nordeste.
Os cientistas familiarizados com a
obra do historiador inglês marxista Eric Hobsbawm, falecido no ano passado, bem
que poderiam tomar emprestado o título de seu livro dedicado às transformações
político-econômicas do século XX e empregá-lo para descrever o cenário
climático previsto para o Brasil das próximas décadas. Se o assunto são as
mudanças climáticas, a era dos extremos (nome do livro de Hobsbawm) apenas se
iniciou e, segundo os pesquisadores, veio para ficar por um bom tempo. Em razão
do aumento progressivo da concentração de gases de efeito estufa – em maio
passado, os níveis de dióxido de carbono (CO2) atingiram pela
primeira vez na história recente da humanidade as 400 partes por milhão (ppm) –
e de alterações na ocupação do uso do solo, o clima no Brasil do final do
século XXI será provavelmente bem diferente do atual, a exemplo do que deverá
ocorrer em outras partes do planeta.
As projeções indicam que a temperatura média em todas
as grandes regiões do país, sem exceção, será de 3º a 6ºC mais elevada em 2100
do que no final do século XX, a depender do padrão futuro de emissões de gases
de efeito estufa. As chuvas devem apresentar um quadro mais complexo. Em biomas
como a Amazônia e a caatinga, a quantidade estimada de chuvas poderá ser 40%
menor. Nos pampas, há uma tendência de que ocorra o inverso, com um aumento de cerca
de um terço nos índices gerais de pluviosidade ao longo deste século. Nas
demais áreas do Brasil, os modelos climáticos também indicam cenários com
modificações preocupantes, mas o grau de confiabilidade dessas projeções é
menor. Ainda assim, há indícios de que poderá chover significativamente mais
nas porções de mata atlântica do Sul e do Sudeste e menos na do Nordeste, no
cerrado, na caatinga e no pantanal. “Com exceção da costa central e sul do
Chile, onde há um esfriamento observado nas últimas décadas, estamos medindo e
também projetamos para o futuro um aumento de temperatura em todas as demais
áreas da América do Sul”, diz José Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), que trabalha com projeções futuras a partir de modelos regionais
do clima. “A sensação é de que as estações estão meio ‘loucas’, com
manifestações mais frequentes de extremos climáticos.”
A expressão significa que os brasileiros vão conviver
tanto com mais períodos de seca prolongada como de chuva forte, às vezes um
após o outro. Isso sem falar na possibilidade de aparecimento de fenômenos com
grande potencial de destruição que antes eram muito raros no país, como o
furacão Catarina, que atingiu a costa de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul
em março de 2004. Nas grandes áreas metropolitanas, e mesmo em cidades de médio
porte, o avanço do concreto e do asfalto intensifica o efeito ilha urbana de
calor, tornando-as mais quentes e alterando seu regime de chuvas.
Imagem de satélite do
furacão Catarina perto da costa da região Sul: fenômeno bem raro no país
Esse quadro faz parte do mais completo diagnóstico já
produzido sobre as principais tendências do clima futuro no país: o primeiro
relatório de avaliação nacional (RAN1) do Painel Brasileiro de Mudanças
Climáticas (PBMC), criado em 2009 pelos ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da
Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Entre 9 e 13 de setembro, o relatório
será divulgado durante a 1ª Conferência Nacional de Mudanças Climáticas
Globais, organizada pela FAPESP. Concebido nos moldes do Painel
Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) das
Nações Unidas, que, aliás, vai divulgar a primeira parte de seu quinto
relatório no final de setembro, o PBMC reuniu 345 pesquisadores de diversas
áreas para formular uma síntese inédita do estado da arte da produção
científica nacional sobre o tema.
O RAN1 é dividido em três partes, cada uma elaborada
por um grupo de trabalho distinto. A primeira traz as principais conclusões de
estudos feitos entre 2007 e o início deste ano que mostram a ocorrência das
mudanças climáticas no Brasil. A segunda detalha os impactos das alterações
climáticas no país, realçando vulnerabilidades e medidas de adaptação à nova
realidade. A terceira indica formas de reduzir as emissões de gases de efeito
estufa no território nacional. “Fizemos uma compilação crítica dos dados
produzidos pelos estudos mais recentes”, explica o meteorologista Tércio
Ambrizzi, da Universidade de São Paulo (USP), um dos coordenadores do primeiro
grupo de trabalho do PBMC sobre a produção científica nacional. “Há regiões do
país, como o Centro-Oeste, sobre as quais quase não há estudos. Também temos
pouca pesquisa sobre o paleoclima no Brasil.”
A maioria dos trabalhos sobre esse tema analisa o
pólen fossilizado de plantas do território nacional e apresenta datação de
qualidade irregular, segundo os especialistas. “Pesquisas sobre como era o
clima do passado na costa do Atlântico em torno do Brasil são ainda mais
raras”, afirma o paleoceanógrafo Cristiano Chiessi, da USP Leste, um dos
autores do relatório. “Precisamos investir nesse tipo de estudo para sabermos o
que é variação natural do clima e o que é decorrente da ação humana.”
Um modelo climático brasileiro
A divulgação do
relatório do PBMC marca a incorporação de uma sofisticada ferramenta para
melhorar o entendimento do clima e fazer projeções no país. O Modelo Brasileiro
do Sistema Terrestre (Besm, na sigla em inglês) é um conjunto de programas
computacionais que permite simular a evolução dos principais parâmetros do
clima em escala global. “O Brasil é hoje o único país do hemisfério Sul a
contar com um modelo próprio”, diz Paulo Nobre, do Inpe, um dos coordenadores
do Besm. “Isso nos dará uma grande autonomia para realizar as simulações que
sejam de nosso maior interesse.” Com o Besm podem ser feitas, por exemplo,
projeções sobre prováveis efeitos no clima no Brasil ocasionados por alterações
na circulação oceânica do Atlântico Tropical e nos biomas do país. A Austrália
também estava criando um modelo climático próprio, mas preferiu juntar seus
esforços aos do Centro Hadley, do Reino Unido. O modelo brasileiro está sendo
desenvolvido desde 2008 por pesquisadores de diversas instituições que integram
o Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), a Rede
Brasileira de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima) e o
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC).
Como qualquer programa de
computador, o Besm é uma obra aberta, a ser aprimorada continuamente. Sua
construção visa não somente a dotar o país de um modelo que seja o estado da
arte para representar o sistema terrestre, mas também contribuir para a
formação de uma nova geração de cientistas capazes de manejar um poderoso
instrumento dedicado à previsão climática. A versão atual do Besm – que roda no
supercomputador Tupã da Rede Clima/PFPMCG, instalado na unidade do INPE de
Cachoeira Paulista – já permite reproduzir vários fenômenos do clima global e
regional e prever cenários futuros. O modelo consegue, por exemplo,
reconstituir a ocorrência dos últimos El Niños e estimar o retorno desse
fenômeno climático. O El Niño é o aquecimento anormal das águas superficiais do
Pacífico Equatorial, uma alteração oceânica e atmosférica que afeta o regime de
chuvas em boa parte do planeta. No Brasil tende a provocar secas na Amazônia e
no Nordeste e intensificar a pluviosidade no Sul. Simulações feitas com o Besm
mostraram que o hipotético desmatamento total da Amazônia aumentaria a
intensidade dos El Niños e reduziria a precipitação anual sobre a região Norte
em até 40%.
Os cenários climáticos gerados pelo Besm foram aceitos
neste ano pela iniciativa internacional que reúne os dados produzidos pelos 20
modelos globais até agora desenvolvidos, a fase 5 do Projeto de Intercomparação
de Modelos Acoplados (CMIP5, na sigla em inglês). Eles inauguram a participação
do Brasil no IPCC como nação fornecedora de projeções em escala planetária das
mudanças climáticas. As projeções geradas pelo modelo nacional serão utilizadas
para a elaboração do quinto relatório sobre mudanças climáticas do IPCC.
O Besm ainda não fornece cenários tão detalhados como
os gerados por outros modelos globais e mesmo pelo modelo regional do INPE, que
enfoca o clima na América do Sul e serviu de base para boa parte das projeções
do primeiro relatório do PBMC. Sua resolução espacial é de 200 por 200 quilômetros,
enquanto a do modelo regional do INPE, que por ora roda “dentro” do modelo
global do Centro Hadley, é usualmente de 40 por 40 quilômetros e pode chegar a
5 por 5 quilômetros. Apesar de estar em seus primórdios, o Besm já produz
simulações que traçam um panorama das variações climáticas previstas para
ocorrer no Brasil nos próximos 30 anos. Pesquisa FAPESP publica em
primeira mão os resultados de uma simulação inédita que mostra como a
temperatura média anual da atmosfera pode variar em todos os estados do país
até 2035, com base nos primeiros resultados da versão mais recente do modelo
Besm. Os dados indicam um Brasil mais quente em quase todas as latitudes. “Esse
é o primeiro resultado de cenário de aquecimento global futuro realizado
integralmente no país, sem depender das simulações obtidas por modelos de
outros países”, comenta Paulo Nobre, também um dos autores do RAN1.
Se a taxa de CO2, principal gás responsável
por intensificar o efeito estufa, mantiver a tendência atual e atingir os 450
ppm daqui a três décadas, a temperatura média anual na maior parte do
território nacional, em especial nas áreas mais distantes da costa, deverá se
elevar até 1ºC. Apenas no Sul do país e em áreas setentrionais da região Norte
a temperatura apresenta tendência a se manter estável ou até diminuir
ligeiramente. “Esse resultado inicial leva em conta as contribuições das
tendências de ajuste de longo tempo da circulação oceânica global e do
aquecimento atmosférico decorrente do aumento moderado de CO2 em
escala planetária”, explica Paulo Nobre. “São resultados preliminares.
Precisamos rodar o modelo mais vezes para ter um grau maior de confiabilidade
dos resultados e, assim, podermos falar mais especificamente de tendências
climáticas para um estado ou uma área menor.”
As previsões do Besm para a parte mais meridional do
país são as únicas que não concordam totalmente com as feitas pelo modelo
regional do Inpe, que projeta uma discreta elevação de temperatura na região
Sul até 2040. Até o final do século, no entanto, a maioria das projeções
sinaliza que o Rio Grande do Sul vai seguir a mesma tendência das demais partes
do país e se tornar mais quente. Com o aumento contínuo do CO2, a
passagem do tempo faz os modelos registrarem uma elevação progressiva das
temperaturas e exacerba a possibilidade de ocorrer mais ou menos chuva numa
região.
O tamanho da gota de chuva
A versão mais recente do Besm conseguiu contornar, em
parte, uma grande limitação da modelagem climática: prever com razoável nível
de exatidão a pluviosidade na Amazônia, um traço determinante da região Norte
sem o qual uma floresta tropical tão densa e exuberante não se sustenta em
longo prazo. Na região Norte chove anualmente entre 2.500 e 3.400 milímetros,
mais ou menos o dobro do que no Centro-Oeste, onde a vegetação típica é o
cerrado, com predomínio de gramíneas e presença esparsa de pequenas árvores.
“Todos os modelos climáticos globais subestimam a chuva que cai na região
amazônica”, diz Paulo Nobre.
Chuva na Amazônia:
leste da região Norte pode ser a mais atingida por uma possível redução nos
níveis de pluviosidade
A melhoria na previsão de pluviosidade sobre a
floresta amazônica foi obtida pela introdução de aprimoramentos sucessivos no
componente atmosférico do Besm, com destaque para a revisão de um parâmetro: o
tamanho médio do raio das gotas de chuva representadas nas nuvens geradas pelo
modelo. Antes as gotas de chuva simuladas pelo Besm tinham raio médio de 1
milímetro. Agora adotam o valor de 1,4 milímetros. “O modelo climático
norte-americano CAM5, do NCAR (Centro Nacional para Pesquisa Atmosférica) já
usava esse valor médio de raio, mas os resultados de suas projeções não
corrigiram os totais pluviométricos sobre a Amazônia de forma tão satisfatória
como ocorreu com nosso modelo”, afirma Paulo Nobre. “Ainda não simulamos com
perfeição as chuvas. No entanto, isso nenhum modelo climático faz por
enquanto.”
Com as modificações introduzidas, o Besm deu um salto
de qualidade. Passou a simular melhor a formação dos ventos alísios que levam
umidade à Amazônia. Começou a registrar de forma mais adequada a variação de
temperatura do mar entre o Brasil e a África. Conseguiu ainda reproduzir um
importante mecanismo climático conhecido como Zona de Convergência do Atlântico
Sul, que regula a formação de chuvas no Sudeste e sul do Nordeste. Formado por
um conjunto de nuvens que pode se estender por até 5 mil quilômetros de
extensão, orientado no sentido noroeste-sudeste, a zona de convergência cruza o
litoral brasileiro entre 18 e 25 graus de latitude sul.
A diferença de desempenho tem uma explicação
razoavelmente simples. Cada modelo é composto por partes menores que tentam
reproduzir o funcionamento dos grandes componentes do clima, como a atmosfera,
os oceanos, a ocupação do solo e sua vegetação, o gelo do globo. Uma série de
dados e equações particulares faz cada componente funcionar de uma maneira
única e interagir com as demais partes do modelo. Por isso, ao mexer num
parâmetro como o raio médio das gotas de água na cobertura de nuvens, um modelo
pode melhorar seu desempenho enquanto outro pode piorar ou não apresentar
mudança significativa. “Os modelos têm mais dificuldade de fazer projeções de
chuvas do que temperatura”, comenta o físico Alexandre Costa, da Universidade
Estadual do Ceará (Uece), um dos autores do capítulo sobre nuvens e aerossóis
(conjunto de diminutas partículas sólidas ou líquidas em suspensão num gás) do
primeiro relatório do PBMC. “De acordo com o tamanho da gota de uma nuvem, pode
ocorrer mais ou menos chuva.”
A favor de uma rede de dados ambientais
Para o físico Paulo Artaxo, da USP, um dos maiores
especialistas no processo de formação de aerossóis, o primeiro relatório do
PBMC servirá para o Brasil identificar áreas ainda carentes em termos de
pesquisa, além de fornecer um panorama sobre os estudos a respeito das mudanças
climáticas. “Temos um longo caminho a percorrer”, afirma Artaxo, membro do
conselho diretor do PBMC. “O IPCC tem 20 anos e está indo para seu quinto
relatório. Ainda não temos massa crítica de cientistas e falta gente para tocar
algumas áreas importantes.” O físico alerta que o Brasil ainda não conta com
uma rede nacional para coleta sistemática de dados ambientais mais sofisticados
do que somente medidas de temperatura e pluviosidade. Na Amazônia há 12 torres
que registram as trocas de carbono e energia entre a floresta e a atmosfera e
medem propriedades de outros ciclos biogeoquímicos, uma iniciativa mantida pelo
Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA), uma
bem-sucedida parceria que há mais de duas décadas une pesquisadores do país e
do exterior. Fora da região Norte existem poucas torres no território
brasileiro, entre as quais uma no pantanal, outra no cerrado, uma terceira nos
pampas e uma no interior paulista. “Essa estrutura de pequena escala não
permite fazer uma radiografia nacional, por exemplo, das emissões e da captura
de CO2 atmosférico”, diz Artaxo. “Na Europa e Estados Unidos há
centenas de torres que fornecem uma radiografia do que está acontecendo com o
funcionamento dos ecossistemas em decorrência das mudanças climáticas.”
Para o climatologista Carlos Nobre, secretário de
Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTI e presidente do
PBMC, os dados disponibilizados pelo Painel Brasileiro servem para guiar as
políticas públicas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas. “O
trabalho do painel não se encerrará com esse primeiro relatório de avaliação,
mas continuará e se tornará cada vez mais relevante”, afirma Carlos Nobre.
(revistapesquisa.fapesp)
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