O Dia Mundial sem Carro e a
mobilidade (in) sustentável
“Estudos mostram que o
deslocamento do centro da cidade do Rio de Janeiro até um determinado ponto da
periferia demorava 20 minutos há 10 anos e, agora, demora 45 minutos. Nos
próximos 10 anos, faremos esse percurso em quanto tempo?”, pergunta o jornalista.
Há 15 anos o Dia Mundial sem
carro mobiliza inúmeras pessoas de diversas cidades do mundo, que abdicam seus
carros para aderirem à proposta do Dia Mundial Sem Carro: evitar acidentes e
mortes no trânsito, poluição, congestionamento, estresse, barulho e mau uso do
espaço público. A campanha surgiu na França, em 1998, e espalhou-se pelo mundo.
No Brasil, o ato é realizado no
dia 22 de setembro desde 2001, com a proposta de “repensar o modelo de cidade
que temos, com excessiva frota motorizada em circulação”, diz Uirá Felipe
Lourenço, presidente da ONG Rodas da Paz.
De um símbolo de luxo e
liberdade, o automóvel se transformou em sinônimo de caos nas cidades
metropolitanas de todo o país, de tal modo que “não existe mais hora do rush e
isso significa perda de mobilidade”, diz o jornalista André Trigueiro. Para
refletir sobre o uso dos automóveis e pensar alternativas que garantam a
mobilidade urbana, republicamos hoje trechos de duas entrevistas publicadas
originalmente em 16 de março de 2011 e 22 de setembro de 2011.
André Trigueiro é
jornalista, pós-graduado em Gestão Ambiental pela COOPE/UFRJ e professor do
curso de Jornalismo Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). Na Globo News, apresenta o programa “Cidades e soluções”,
tratando da questão do meio ambiente. É autor de Mundo sustentável (São
Paulo: Globo, 2005).
Uirá Felipe
Lourenço é presidente da ONG
Rodas da Paz.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Em que contexto surgiu o Dia
Mundial sem Carro e de que forma este momento pode contribuir para uma
sociedade mais sustentável?
Uirá Felipe Lourenço – A data surgiu na França em 1998, espalhou-se
pela Europa e chegou ao Brasil. Atualmente muitas cidades brasileiras promovem
ações. A data é uma oportunidade de repensar o modelo de cidade que temos, com
excessiva frota motorizada em circulação.
IHU On-Line –
Em que contexto surgiu o Dia Mundial sem Carro e de que forma este momento pode
contribuir para uma sociedade mais sustentável?
Uirá Felipe
Lourenço – A data surgiu
na França em 1998, espalhou-se pela Europa e chegou ao Brasil. Atualmente
muitas cidades brasileiras promovem ações. A data é uma oportunidade de
repensar o modelo de cidade que temos, com excessiva frota motorizada em
circulação.
IHU On-Line –
Que problemas o Dia Mundial sem Carro ajuda a minimizar?
Uirá Felipe
Lourenço – A proposta do Dia Mundial sem Carro alerta para os diversos malefícios que a
excessiva dependência do automóvel nas cidades causa: acidentes e mortes no
trânsito, congestionamento, poluição, barulho, estresse e mau uso do espaço
público.
IHU On-Line –
De que maneira esta data pode ajudar a sociedade a repensar a cidade?
Uirá Felipe
Lourenço – As várias
ações propostas servem para que a população reflita sobre o transporte nas
cidades. O Desafio Intermodal, por exemplo, testa as diversas modalidades de
transporte quanto a tempo, custo, poluição e segurança. As bicicletas costumam
se destacar e chegar em primeiro lugar. Mesmo em Brasília, com o contexto
altamente favorável ao automóvel, nas três edições do desafio Intermodal realizadas, a bicicleta se destacou em todos os quesitos,
inclusive tempo.
Outra ação
interessante, geralmente realizada na semana em que se comemora o Dia Mundial sem carro, é a Vaga Viva. No espaço
tradicionalmente ocupado por carros (vagas de estacionamento) promovem-se
atividades de lazer, esportivas e culturais. Por exemplo, deixam-se livros e
poltronas para que a pessoa possa se sentar e ler. Um espaço morto, em que o
motorista deixa o carro o dia inteiro parado (área sem utilidade pública),
ganha vida e utilidade para a população.
IHU On-Line –
Algumas pessoas alegam que preferem se locomover de carro porque o transporte
público é ineficiente. Será só isso mesmo, ou no Brasil o uso do carro já faz
parte da cultura brasileira?
André
Trigueiro – No Rio de
Janeiro há um volume de investimento muito expressivo para preparar a cidade
tanto para a Copa do Mundo de 2014 quanto para as Olimpíadas de 2016. O Rio de Janeiro tem uma oportunidade ímpar de promover, como
nunca fez, o transporte público de massa. Há uma pressão enorme, o nível de
consciência da população é muito grande, ou muito maior do que já foi. A
tendência é que esse nível de pressão e de consciência cresça e que os
tomadores de decisão percebam, como já percebem, que não há alternativa: não se
consegue governar uma cidade colapsada na capacidade de promover o deslocamento
das pessoas, as cidades são dinâmicas por vício de origem, as cidades são
grandes formigueiros. Então, têm que ter fluxos de movimentação livres.
Estudos mostram que o
deslocamento do centro da cidade do Rio de Janeiro até um determinado ponto da
periferia demorava 20 minutos há 10 anos e, agora, demora 45 minutos. Nos
próximos 10 anos, faremos esse percurso em quanto tempo? Há um problema de
gerenciamento, pois os mandatos de prefeitos e governadores são de quatro anos
e as mudanças feitas não resolvem o problema.
Respondendo
objetivamente à pergunta, tem um pouco de tudo e cada região do Brasil tem a
sua singularidade. Via de regra, existe certo comodismo, além da publicidade
enganosa, que mostra o carro em comercial de televisão sempre andando sem
engarrafamento. O carro também está cada vez mais confortável, oferece kits de
conveniência. Não é normal perder até quatro horas da vida em engarrafamentos,
todos os dias. Mas a loucura do automóvel também é a de tentar emprestar
sentido à permanência no engarrafamento desde que seja em um carro Pop. Há uma
inversão de valores.
IHU On-Line –
Por que a cidade “tem um contexto urbano que não favorece pedestres e
ciclistas”?
Uirá Felipe
Lourenço – As cidades
brasileiras, de forma geral, ainda permanecem com a lógica atrasada de
incentivar o transporte individual motorizado. Túneis, viadutos e ampliações de
vias ainda fazem parte dos planos e das obras governamentais. Cidades modernas
já não fazem isso há décadas. A ordem do dia nas cidades efetivamente modernas
é investir em transporte coletivo e no transporte não motorizado. Assim, tais
cidades investem em corredores exclusivos de ônibus, em integração, em
moderação de tráfego (por exemplo, reduz-se o limite de velocidade na via para
permitir melhor convivência entre motorizados e não motorizados), em ciclovias,
ciclofaixas e calçadas contínuas e de boa qualidade.
Como exemplo da
política atrasada, na nossa capital federal, o estacionamento de carros em área
pública é gratuito, um grande incentivo a se permanecer com a alta dependência
do carro. Ao mesmo tempo, inexistem vagas públicas para bicicletas. Existem
projetos para aumentar ainda mais as vagas para carros, inclusive com
estacionamentos subterrâneos, e para ampliar mais vias. E o transporte coletivo
continua sofrível: caro, desintegrado, superlotado, sem pontualidade nem
informações básicas aos usuários sobre linhas e horários.
IHU On-Line –
Muitas pessoas alegam que é complicado se locomover de bicicleta em função da
engenharia das cidades. O que poderia mudar nesse sentido?
André
Trigueiro – A engenharia
de tráfego das cidades tem que mudar, temos que mudar o paradigma, o modelo.
Isso, em bom português, significa que os investimentos públicos em transporte
de massa eficiente, barato e rápido devem ser superiores, devem suplantar os
investimentos públicos que abrem caminho para o transporte individual. Um
estudo feito recentemente por um pesquisador da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) apontou que a maior parte dos impostos pagos
pelos brasileiros é aplicada na área de transporte, mas beneficiam o transporte
individual. Isso é um desajuste, um desacerto e é injusto, porque a maioria dos
brasileiros não tem carro. Além disso, não se podem utilizar recursos públicos
majoritariamente para abrir caminho para o transporte privado.
É preciso promover
não apenas a possibilidade de a bicicleta interligar domicílio a trabalho, ou
seja, criar corredores, fluxo de bicicleta, demarcar no asfalto ou na calçada o
espaço da ciclovia, mas ter uma sinalização eficiente, fiscalização presente,
educação ostensiva para motoristas e ciclistas e punição severa e exemplar para
quem não respeita as regras. Na Europa, o motorista tem medo de “encostar” em
ciclista porque sabe que é encrenca. No Brasil, o pedestre é soberano, ninguém
pode encostar nele, mesmo que esteja atravessando a rua fora da faixa de
segurança, ou esteja em uma situação de risco. É dever do motorista parar o
carro.
É fundamental
entendermos que a bicicleta pode entrar como um elemento importante que
interliga modais de transporte. A pessoa pode sair de casa usando a bicicleta,
parar em uma grande estação de trem, de ônibus ou de metrô, onde haja
bicicletário e, de lá, seguir para outros lugares da cidade. É preciso investir
em lugares referenciais, onde o fluxo de ciclistas eventualmente seja grande. Poderiam
criar um banheiro público e cobrar R$1, R$1,50, R$2 pela
utilização. Os ciclistas poderiam tomar banho pagando uma taxa simbólica. Seria
uma forma de facilitar a vida deles.
No metrô, por
exemplo, um vagão poderia ser destinado aos ciclistas. Essas seriam
alternativas para reduzir a emissão de CO2, diminuir o ruído
das cidades e melhorar a mobilidade urbana. A frota nacional de veículos
cresceu mais de 100% em uma década, quer dizer, é um crescimento em progressão
geométrica e as artérias das cidades não crescem na mesma proporção. Não existe
mais hora do rush e isso significa perda de mobilidade.
IHU On-Line –
Segundo informações do Ipea, com a ascensão das classes C e D, deverá aumentar
a aquisição de automóveis no país. O sonho de muitas pessoas é possuir um carro
próprio. Como lidar com esse paradoxo: ascensão econômica x sustentabilidade?
André
Trigueiro – Em primeiro
lugar, a multiplicação de carros no Brasil é uma bomba relógio ambiental de
grandes proporções. O governo tem, nos impostos arrecadados, não apenas com a
venda de automóveis, mas de todos os componentes, uma importantíssima fonte de
arrecadação. Certa vez foi feita uma conta: se fosse possível somar todas as
montadoras de veículos do mundo e toda a receita auferida pelo setor automotivo
e isso fosse transformado em um número, esse número equivaleria ao sexto maior PIB
do planeta, ou seja, em um ranking de países, o setor automotivo seria o sexto
país mais rico do mundo.
Outro ponto
importante é que não se faz omelete sem quebras os ovos. É duro ter que dizer
isso. Preciso ter cuidado ao explicar isso para não ter uma visão elitista, mas
o fato é que não é possível todo o brasileiro ter carro, como não é possível
todo o indiano, todo o chinês ter carro. Simplesmente não dá, não é uma questão
de justiça, é uma questão física. Segundo o IBGE, 83% dos
brasileiros vivem em cidades. Se todos esses tiverem um carro, a vida se
tornaria absolutamente insustentável, intolerável.
O estudo do IPEA
indica que, possivelmente, o Brasil terá que replicar experiências que já
acontecem em alguns países do mundo, que são restritivas ao automóvel. Em
Cingapura, as pessoas completam 18 anos e tiram a carteira de motorista se
houver disponibilidade, pois o governo estabeleceu uma cota. Eles têm um número
definido de licenças de motoristas. Uma medida possível talvez seja restringir
o número de carteiras de habilitação, não é qualquer um que pode ser motorista,
é só quem pode, e o governo vai dizer isso em termos estritamente numéricos,
pois tem um limite, uma capacidade de suporte.
Outra opção é
sobretaxar o veículo, como fizemos com cigarros e bebidas. Na Califórnia,
existem corredores, faixas de rolamento exclusivas para motoristas que estejam
acompanhados. A maioria das pessoas, no Brasil, andam sozinhas e não poderiam
pegar a faixa seletiva.
Toda sobretaxa que o
governo poderá criar para o transporte individual deverá ser canalizada
diretamente para o transporte público. Para onde vai o dinheiro do pedágio
urbano de Londres? Para melhorias do transporte público de massa do cidadão
londrino. Não tem desvio de dinheiro e isso faz a diferença. O motorista, em
lugares onde a cidadania é valorizada, pode até ficar chateado por precisar ir
ao centro de carro, já que está sempre pagando seu imposto.
Confesso a você que
eu teria um cuidado maior na propaganda de automóveis, como se tem em relação à
bebida. Quando encerra um comercial de bebida aparece a frase: “beba com
moderação”. Poderíamos pensar o mesmo para a propaganda de veículos, uma
mensagem que vá ao encontro do uso sustentável.
Hoje em dia ter carro
é muito diferente de 20, 30 anos atrás. Por isso, a publicidade tem de lembrar,
a quem queira comprar carro, que é preciso ter cuidado, uma visão mais
encorpada de mundo.
Além dessas
possibilidades, penso que o principal seja aderir à certificação energética,
como se fosse um selo Procel, com letra A, B, C, D
e E. A letra A representa o carro mais eficiente do ponto de
vista do consumo do combustível. As montadoras tinham de ser obrigadas a ter
prazos e metas de eficiência e, de cinco em cinco anos, os carros deveriam
superar a eficiência.
IHU On-Line –
Quais seriam as estratégias para diminuir o número cada vez maior de carros nas
ruas?
Uirá Felipe
Lourenço – Oferecer boas
condições para os usuários do transporte coletivo, com um sistema eficiente e
integrado, e dar segurança e conforto aos que optam por pedalar e caminhar. Num
momento posterior, pensar em restrições ao automóvel, como taxar ou proibir a
circulação de carros na área central.
IHU On-Line –
Que implicações ambientais, sociais, de saúde e urbanas o número de carros cada
vez maior nas ruas pode trazer?
Uirá Felipe
Lourenço – Mortes e
feridos no trânsito (o Brasil tem níveis epidêmicos, são cerca de 40 mil mortes
por ano no trânsito), desigualdade no uso do espaço urbano (a minoria usuária
de carro conta com a maior parte do espaço na via), isolamento social (o carro
isola as pessoas no seu interior), fator adicional de obesidade,
congestionamentos e perda de produtividade, estresse e barulho.
IHU On-Line –
Em que consistiria um sistema integrado e inteligente de transporte?
André
Trigueiro – Através de
um bom mapeamento dos percursos, dos trajetos, corredores de deslocamentos na
cidade. É preciso entender como a população está distribuída e onde há maior demanda
de deslocamento. Segundo, um planejamento em resposta ao diagnóstico, ou seja,
como melhorar os meios de transporte onde eles se fazem mais necessários. Penso
que o ideal é priorizar, sempre, o transporte público de massa. O que é
transporte público de massa? Não é ônibus, é metrô, trem, barca.
Os modais de
transporte precisam aparecer em um grande mapa que esteja na sala do gestor
público, para que ele visualize a deficiência de transporte em determinada área
da cidade que está crescendo e precisa promover transporte.
IHU On-Line –
Como o senhor vê a proposta do governo de construir um metrô? Qual a relação custo/
benefício da obra?
André
Trigueiro – O metrô em
cidades já construídas é mais caro, porque tem o custo da desapropriação, a
linha tem que passar e quem estiver pela frente pode “pagar o pato”. Tem o
custo de ter a rede subterrânea da cidade, ou seja, são adutoras, transporte de
água, esgoto, redes pluviais.
Existem lugares em
que não precisa fazer o metrô subterrâneo, pode fazer o metrô de superfície e
bingo, pois existe uma enorme rede de trilhos, de linhas férreas sucateadas no
Brasil. Então, é possível aproveitar o que já existe dentro da região
metropolitana, como em São Gonçalo, a segunda cidade mais importante do estado
do Rio de Janeiro.
O mais importante é
que chegamos a um ponto em que não é opção ter metrô; ele é fundamental, porque
é o meio de transporte que irá reduzir, no longo prazo, a bomba relógio do
crescimento desordenado das cidades e das suas frotas automobilísticas. Metrô é
o caminho mais inteligente e urgente, seus investimentos estão demandando mais
urgência hoje nas grandes cidades brasileiras. (EcoDebate)
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