O impacto do carro, pago por toda a sociedade e
o modelo crescimentista ancorado no automóvel
O carro como expressão de poder, prazer, liberdade, singularidade e
individualidade faz com que todos queiram o seu. O drama, porém, é que estamos
nos dando conta de que se todos quiserem ter o seu carro, as cidades irão
colapsar. O fantástico e maravilhoso mundo prometido pelo carro tem um outro
lado menos edificante. O carro provoca o caos, confusão, barulho, estresse,
poluição, perdas econômicas e, o pior, mata. E mata muito. As estatísticas dão
conta que mata em média mais de 50 mil pessoas por ano.
O jornalista e ambientalista André Trigueiro complexifica o debate. Em
entrevista exclusiva ao IHU, afirma que “a multiplicação de carros é uma bomba
relógio”.
Diz ele: “É duro ter que dizer isso. Preciso ter cuidado ao explicar
isso para não ter uma visão elitista, mas o fato é que não é possível todo o
brasileiro ter carro, como não é possível todo o indiano, todo o chinês ter
carro. Simplesmente não dá, não é uma questão de justiça, é uma questão física.
Segundo o IBGE, 83% dos brasileiros vivem em cidades. Se todos esses tiverem um
carro, a vida se tornaria absolutamente insustentável, intolerável”.
Um dos estudos recentes do professor André Franco Montoro Filho da USP,
citado por Washington Novaes afirma “que o valor monetário de 12,5% da jornada
de trabalho perdidos com uma hora nos congestionamentos de trânsito (além de
uma hora, que seria ‘normal’) chega a R$ 62,5 bilhões anuais. E cada
trabalhador, assim como cada condutor de veículos particulares, pagaria por
esse ‘pedágio invisível’ R$ 20 por dia)”.
E a questão não é só de mobilidade ou econômica, pode ser de saúde
também, destaca Washington Novaes, citando Estudo de cardiologistas do Hospital
do Coração de São Paulo que alertam que “a tensão gerada por fatores do
cotidiano como trânsito, violência e excesso de trabalho” – todos relacionados
com a mobilidade – “causa aumento da pressão arterial e a liberação de
hormônios que podem comprometer seriamente a saúde cardíaca”.
O carro é ainda responsável por outra lógica irracional. Quem chama a
atenção é Oded Grajew, um dos idealizadores do Fórum Social Mundial. Segundo
ele, “quarenta por cento da área central das grandes cidades brasileiras é
ocupada pela malha viária. Os automóveis privados, apesar de transportarem
cerca de 20% dos passageiros, ocupam 60% das vias públicas, e os ônibus, que
transportam 70% dos passageiros, ocupam 25% do espaço”, destaca.
O tempo perdido dentro do carro ou em transportes públicos superlotados
e insuficientes, muitas vezes significa quase todo o tempo livre das pessoas,
destaca Helio Mattar do Instituto Akatu,. Soma-se a isso, diz ele, “a má
qualidade do ar e o grande número de acidentes de trânsito, que retiram energia
das pessoas e conduzem a um stress crescente”.
Não surpreende, assim, que a questão da mobilidade tenha ocupado a
segunda posição no total de reivindicações nas 35 audiências públicas para
discussão do plano de metas da atual administração da cidade de São Paulo,
comenta Washington Novaes.
É essa irracionalidade que aos poucos está fazendo com que as pessoas
comecem a mudar a sua visão do carro como meio privilegiado de mobilidade – o
paulistano gasta hoje, em média, diariamente duas horas e quinze minutos no
trânsito e 69% avaliam o trânsito da cidade ruim ou péssimo. Por isso, faixas
exclusivas de ônibus já têm o apoio de 93% da população paulistana.
O número de paulistanos dispostos a não usar o carro, caso haja uma boa
alternativa de transporte público, aumentou de 44%, em 2012, para 61% este ano,
de acordo com a sétima pesquisa sobre Mobilidade Urbana Rede Nossa São Paulo.
Uma boa notícia é a de que a geração Y – como são chamados os jovens de
18 a 34 anos – é menos dependente de carro. Dados de uma pesquisa divulgada no
início de 2013 pela empresa norte-americana de compartilhamento de carros Zipcar
revelam que o perfil das novas gerações quando se trata de uso e preferência
pelo carro como meio de transporte é bastante diferente das anteriores.
A pesquisa indica que “quando o assunto era a preocupação ambiental como
motivo para a escolha de meios alternativos ao carro, a taxa se manteve alta,
em 43%. O alto custo relacionado à posse de um automóvel também foi bastante
lembrado pela maioria dos integrantes do grupo. Chama a atenção a predisposição
dos jovens, em torno de 57%, em deixar de usar o carro caso houvesse outras
opções de transporte disponíveis em suas proximidades”.
Por outro lado, Relatório da Agência Internacional de Energia aponta que
priorizar ônibus, trens e bicicletas em vez de automóveis resultaria em ganhos
econômicos e em benefícios para a sociedade, o meio ambiente e o clima.
Modelo crescimentista ancorado no automóvel
A tragédia da ‘civilização do automóvel’ tem como um dos responsáveis as
políticas do Estado que sempre foram generosas com a indústria automotiva. No
caso brasileiro, o modelo de desenvolvimento ancorou nas montadoras a sua base
crescimentista. Desde Juscelino Kubistchek, a indústria automotiva recebe
incentivos, subsídios e isenções.
No primeiro sinal de crise, o governo reduz o IPI para carros. A redução
do IPI deve-se também ao poderoso lobby das montadoras. O problema aqui, diz
André Trigueiro, é que “a redução do IPI para carros não pode ser usado como um
medicamento de uso contínuo. Com as vias progressivamente congestionadas, o
corpo está à beira de um colapso. Está mais do que na hora dos economistas
refazerem as contas enquanto o paciente respira”.
Segundo ele, “por nosso país circulam oficialmente (dados consolidados
de fevereiro/2013) mais de 43 milhões de automóveis (43.085.340), sendo que a
maioria absoluta desses carros se concentra nas regiões metropolitanas. A
situação é mais preocupante nas três principais capitais da região Sudeste, a
mais rica e densamente povoada do país. São Paulo (4.858.630 de automóveis),
Rio de Janeiro (1.764.089) e Belo Horizonte (1.059.307) ostentam números que
devem soar como música para os economistas de plantão em Brasília, mas que
representam um gigantesco obstáculo para a mobilidade urbana e para a qualidade
de vida não apenas dessas, mas das principais cidades brasileiras”.
De acordo com o Relatório Metrópoles em números: crescimento da frota de
automóveis e motocicletas nas metrópoles brasileiras 2001/2011, do Observatório
das Metrópoles, o número de automóveis em todas as 12 metrópoles do país dobrou
de tamanho neste período (aumentou de 11,5 milhões para 20,5 milhões). Já as
motocicletas passaram de 4,5 milhões para 18,3 milhões em apenas dez anos.
Essa política de privilegiar o carro e não o transporte coletivo teve
recentemente um exemplo emblemático. Segundo Sérgio Leitão, diretor de
políticas públicas do Greenpeace e Bárbara Rubim, coordenadora da campanha de
clima e energia, “a Cide – Combustíveis, em junho de 2012, foi zerada”. Isso
significa, dizem eles, que “em outras palavras, para evitar o aumento do preço
da gasolina, beneficiando usuários de transporte individual, o governo abriu
mão de cerca de R$ 20 bilhões que poderiam ser destinados à infraestrutura de
transporte – quantia equivalente a um terço do valor disponibilizado à
mobilidade urbana por meio dos projetos da Copa e do PAC Grandes e Médias
Cidades”.
Destacam ainda que, no entanto, a Cide não é a única forma de se
financiar melhorias no transporte coletivo: “Existem outros benefícios
concedidos ao usuário do transporte individual (como IPI reduzido e estacionamento
gratuito ou quase gratuito nas vias da cidade) que precisam ser revistos e
direcionados aos outros meios de deslocamento” e concluem, “essa política,
alimentada por constantes subsídios e incentivos fiscais, levou ao modelo de
cidade que temos hoje, composta por um sistema de transporte público sucateado,
congestionamentos crescentes e a marginalização de uma parcela cada vez maior
da população, que, excluída do transporte coletivo – seja pela alta tarifa ou
pela extensão insuficiente do sistema -, não consegue ter acesso à cidade e aos
serviços essenciais que ela guarda”.
Resultado dessa opção: as cidades estão parando. (EcoDebate)
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