Civilização do automóvel dá sinais de esgotamento – A
nefasta cultura do carrocentrismo
Muito se falou e se
comentou do caráter fragmentário e da ausência de bandeiras claras nas grandes
manifestações de junho de 2013. Uma delas, entretanto, funcionou como um forte
elemento agregador: a mobilidade urbana – ninguém aguenta mais a dificuldade de
ir e vir nas grandes cidades, particularmente aqueles que dependem do
transporte coletivo.
O estopim do vagalhão
das manifestações que explodiram em todo país teve a sua origem na violenta
repressão contra a manifestação convocada pelo Movimento do Passe Livre – MPL
no dia 13 de junho em São Paulo. A manifestação do MPL tinha uma reivindicação
clara, concreta e objetiva: revogar o aumento da tarifa do transporte coletivo
na capital paulista.
A consigna do MPL
“Por uma vida sem catracas” que anuncia a reivindicação da bandeira “Tarifa
Zero” se transformou ao longo das manifestações na consigna “Muito mais do que
0,20 centavos” – da luta pelo transporte acessível a todas e todos e como um
direito universal derivou para inúmeras outras bandeiras.
O tema da mobilidade,
porém, ganhou centralidade e visibilidade jamais alcançada. Ao ponto de que nos
cinco pactos proposto pela presidente Dilma Rousseff para aplacar o furor das
ruas, encontra-se em destaque o anúncio do “investimento de 50 bilhões de reais
em mobilidade urbana para transportes, com metrô e ônibus”.
Nos dias subsequentes
às grandes manifestações e como que num efeito dominó, dezenas de cidades
anunciaram a redução nas tarifas e investimentos no transporte coletivo. Muitas
CPIs foram abertas nas Câmaras Municipais de diversas cidades com a promessa de
devassa na ‘caixa preta’ das planilhas que definem o valor da tarifa.
O maior ganho,
entretanto, é o fato incontestável de que a agenda da mobilidade urbana entrou
em cheio na agenda do debate do país e deverá ganhar destaque nas eleições de
2014. Ainda mais: há um cansaço com o discurso demagógico dos políticos sobre o
tema da mobilidade, exige-se menos retórica e iniciativas concretas.
É sintomático que um
dos alvos da ira popular nas manifestações tenham sido as megas arenas para a
Copa do Mundo como simbologia do dinheiro público gasto de forma desmedida sem
a efetiva contrapartida em obras de mobilidade. O legado da Copa – a promessa
de uma cidade melhor que ameaçava se esfumaçar, pode retornar pela pressão das
ruas.
A grande novidade das
jornadas de junho de 2013 é o anúncio de que outra cidade é possível. Uma
cidade que privilegie a mobilidade coletiva em detrimento da mobilidade
individual.
Uma cidade moderna
destaca Uirá Felipe Lourenço, presidente da ONG Rodas da Paz, entrevistado pelo
em entrevista ao IHU é aquela que “investe em transporte coletivo e no
transporte não motorizado, investe em corredores exclusivos de ônibus, em
integração, em moderação de tráfego, em ciclovias, ciclofaixas e calçadas
contínuas e de boa qualidade”.
O grande desafio é
superar a cultura carrocentrista – que tem deixado um rastro desolador:
poluição, congestionamentos, acidentes de trânsito, mortes, perda de
produtividade, tensão, estresse, barulho, desigualdade no uso do espaço urbano
e isolamento social – o carro apartando um dos outros.
A superação da
cultura carrocentrista exige nova mentalidade e políticas públicas ousadas.
A nefasta cultura
carrocentrismo
Há exatos 40 anos
atrás, num ensaio considerado visionário André Gorz publicou um texto
intitulado ‘Le Sauvage’ [O Selvagem]. O ensaio, datado de 1973, é considerado
pelos ambientalistas como o ‘Manifesto contra o carro’ por antecipar a tragédia
da civilização do automóvel. No texto, Gorz afirma que “o carro fez a cidade
grande inabitável, a fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada,
congestionada”.
O carro instaurou uma
lógica e um estilo de vida que promete liberdade, mas no lugar de ir e vir se
tornou uma espécie de cárcere privado. Paradoxalmente, promete agilidade, mas proporciona
a lentidão dos tempos pré-industriais. Promete ganhar tempo, mas na realidade
faz perder tempo.
Eles entopem os
estacionamentos das universidades privadas e públicas, dos aeroportos, dos
shoppings, dos supermercados. Estacionar já se tornou um drama. Ter uma vaga
cativa – e gratuita – é um privilégio que se assemelha ao da casa própria. Nos
grandes centros já é mais caro estacionar do que almoçar.
O estresse no
trânsito é alto, os engarrafamentos enormes, a irritação é grande, mas ninguém
quer abrir mão do carro. E ainda tem mais: quanto mais potente, belo e
equipado, melhor. Uma das novidades é o GPS a bordo. Todos querem. Agora,
destaca um twitter de Ricardo Abramovay, as montadoras estão experimentando uma
nova fórmula, num esforço de gerar novas fontes de vendas com os SUVs: “Os
assentos estão em uma posição mais elevada, de comando, que faz você se sentir
superior”, diz J Mays, vice-presidente do grupo de design da Ford Motor Co.,
empresa que liderou o boom dos SUVs nos EUA na década de 90, com seus modelos
relativamente grandes.
A ideia subliminar é
que dirigir um SUV oferece a sensação de prazer e poder que um popular não
oferece.
O sociólogo Richard
Sennett, em seu livro A nova cultura do capitalismo, afirma que as pessoas se
movem pela “paixão consumptiva” que assume as formas de “envolvimento em
imagística e incitação pela potência”, ou seja, as pessoas quando consomem não
compram apenas produtos, mas prazer e poder.
O carro exerce esse
fascínio. Segundo Guillermo Giucci em entrevista à IHU On-line, “o objeto
automóvel ultrapassou o valor de uso” e se transformou “numa extensão protética
do ser”. O psicanalista Jorge Forbes, na mesma perspectiva, afirma que o carro
se transforma em “prótese que possibilita a pessoa humana estender o corpo biológico
às dimensões do seu desejo”. “O carro é mais ou menos como a roupa. É a forma
como o dono se apresenta para a sociedade. Está presente no dia a dia e revela
um pouco da personalidade do proprietário”, analisa Carlos Campos, consultor de
montadoras.
O carro está entre os
principais ícones do capitalismo que oferece ao usuário um valor distintivo. Ao
volante de um deles muitos se transformam, elevam a autoestima, sentem-se mais
poderosos e livres. O “novo capitalismo”, segundo Sennett, vende a ideia de que
dependendo do carro, o mundo – visto pela janela – passa a ser diferente.
O desejo de consumo
associa-se, portanto, a produtos que imagisticamente vendem essa sensação,
mesmo que os diferentes modelos sob a perspectiva da estrutura – o chassi –
sejam semelhantes. Segundo Sennett, na fabricação de automóveis – o DNA do
carro é o mesmo, mas pequenas mudanças justificam preços diferenciados: “Uma
diferença de 10% no conteúdo é transformada numa diferença de 100% no preço”. A
“magia” do capitalismo é fazer com que um produto básico vendido em todo o
planeta se pareça único, obscurecendo a homogeneidade. As pessoas pagam mais
para acessarem essa “experiência” e sensação.
O culto ao carro,
portanto, é resultante dessa paixão consumptiva. O automóvel funciona como
“cartão de visita – diz Guillermo Giucci –, seja para eventos sociais, seja
para negócios, seja para paqueras, especialmente em sociedades periféricas. O
carro também preservou a sua função de proporcionar ao proprietário uma elevada
autoestima. o automóvel exacerbou o individualismo”, destaca. (EcoDebate)
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