Atuação no mercado de commodities coloca em pauta a
exportação indireta de recursos hídricos. Brasil exporta cerca de 112 trilhões de
litros de água doce por ano.
Contêineres saem diariamente de portos na costa brasileira
abarrotados de carne bovina, soja, açúcar, café, entre outros produtos
agrícolas exportados para o mundo. Mas dentro deles há um insumo invisível,
cujo valor ultrapassa cálculos estritamente econômicos. Ao longo do ano, o
Brasil envia ao exterior cerca de 112 trilhões de litros de água doce, segundo
dados da Unesco – o equivalente a quase 45 milhões de piscinas olímpicas ou
mais de 17 mil lagoas do tamanho da Rodrigo de Freitas. Tantos litros são o
total dos recursos hídricos necessários para produzir essas commodities. E
colocam o País como o quarto maior exportador de “água virtual”, atrás apenas
de Estados Unidos (314 trilhões litros/ano), China (143 trilhões litros/ano) e
Índia (125 trilhões litros/ano).
A exportação desse recurso, ainda que indiretamente, tende a
crescer num cenário de escassez global, pressionando o país a pensar em
políticas públicas voltadas à gestão hídrica. A posição do Brasil no alto do
ranking não se deve tanto ao desperdício da água ou à falta de produtividade
nas atividades agropecuárias do país, mas principalmente a um fenômeno global
de escassez dos recursos hídricos. Num momento em que países como Malta e
Kuwait têm 92% e 90%, respectivamente, de “água virtual” importada em seus
produtos, o Brasil, com disponibilidade hídrica e territorial, tende a ganhar
relevância. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
entre 2007 e 2010, as commodities avançaram de 41% para 51% no total de
produtos vendidos pelo País ao exterior.
As Nações Unidas (ONU) estimam que, até 2025, cerca de dois
terços da população mundial estarão carentes de recursos hídricos, sendo que
cerca de 1,8 bilhão enfrentarão severa escassez de água. Na metade do século,
quando já seremos 9 bilhões de habitantes do mundo, 7 bilhões enfrentarão a
falta do recurso em 60 países. A água, portanto, já é motivo de conflitos em
várias regiões do mundo.
“A alocação dos recursos hídricos, além de ambiental, é uma questão
econômica, porque quando a água é escassa é preciso destiná-la para onde haverá
maiores benefícios para a sociedade. Mas sendo a água um bem público, o mercado
não é o único determinante. A água deve ser usada para produzir alimentos para
a população, para culturas ligadas a biocombustíveis ou para plantações de
commodities para exportação? Isso é uma escolha política”, aponta Arjen
Hoekstra, criador do conceito de “pegada hídrica” (water footprint) e autor de
diversos estudos sobre água virtual numa parceria entre Unesco e a Universidade
de Twente.
Recursos Hídricos sem preço
Um dos principais parceiros comerciais do Brasil, a China
possui 6% da água doce do planeta e já sofre com uma escassez do recurso,
aliada a uma redução das terras agricultáveis – desde 1997, o país já perdeu 6%
de sua área cultivável devido à erosão e urbanização. No Brasil, o cenário é
outro: o País dispõe 40% de terras aráveis, abriga 12% da água doce do planeta
e recebe chuvas abundantes durante o ano em mais de 90% do território – ainda
que numa distribuição hídrica desigual, com um semiárido de água escassa.
“O Brasil não tem dependência de irrigação, precisa apenas
administrar a água da chuva. Não há também a questão populacional, com uma
competição entre agricultura e cidades. E enquanto na China há 250 mil unidades
agrícolas, no Brasil são apenas 5 mil”, enumera Marcos Jank, professor da
Esalq-USP e especialista em agronegócio.
“Atualmente, ninguém paga o preço total pelo consumo de
água. A escassez e a poluição precisam ser incluídas no preço das commodities.
Isso criaria um incentivo para consumir e poluir menos. Mas as legislações
também podem ser melhoradas e em alguns produtos pode ser útil incluir o uso de
água sustentável no rótulo”, sugere Hoekstra.
Escolhas políticas
A escassez de água em alguns países, de fato, pode levar a
escolhas políticas para restringir a exportação de alimentos. O governo de
Israel, por exemplo, desencoraja a exportação de laranjas – tradicionalmente
cultivadas com um sistema de irrigação pesado -, para evitar que grandes
quantidades de água virtual sejam exportadas para diferentes partes do mundo.
Mesmo no Brasil, abundante de recursos hídricos, precisa
levar em conta o uso de água nas culturas diante de uma distribuição desigual
em seu território. Menos povoada, a Região Amazônica concentra a maior parte da
água superficial do País, enquanto a populosa Região Sudeste tem disponível 6%
do total da água doce. No semiárido nordestino, os rios são pobres e
temporários, o que acaba criando uma pluviosidade baixa.
“A pegada hídrica tem que ter relação com o local onde é
produzida a cultura agrícola. Produzir uma pecuária leiteira no Agreste
Nordestino vai demandar muito mais água do que fazer o mesmo no Centro-Oeste,
onde a pluviosidade é muito maior”, afirma o engenheiro ambiental Michael
Becker, coordenador do Programa Cerrado da WWF Brasil. “Mas além do viés da
localização é preciso ter em conta a própria produção, buscando gastar cada vez
menos água bruta para fabricar o mesmo produto”.
Apesar de a produtividade agrícola no Brasil ter apresentado
grandes avanços – com um crescimento de 3,6 % ao ano, segundo estudo da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2011-,
especialistas afirmam que é preciso melhorar o diálogo com o setor. A
conturbada discussão do Código Florestal no Congresso dá indícios deste
desafio.
“Ainda não avançamos o suficiente na discussão entre o setor
ambiental e agrícola para que se possa ter um entendimento comum de que um necessita
do outro. Precisamos produzir, mas para realmente tirar proveito da exportação
de commodities precisamos entender a água como um insumo de produção. O Brasil
quer ter no futuro a seca de um Centro-Oeste americano ou preservar este
recurso no aspecto de insumo para produção? Essa é uma pergunta que veio para
ficar e que vai se tornar cada vez mais frequente daqui para frente”, aposta
Becker. (amanari)
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