Mudanças climáticas. Qual parte do mundo você está preparado
para perder?
“Quando o secretário de meio ambiente da Inglaterra Owen Paterson
garante que a mudança climática “é algo a que podemos nos adaptar ao longo dos
anos” ou Simon Jenkins, que escreve no jornal Guardian, dizendo que devemos nos
mover em direção a “pensar de forma inteligente sobre como o mundo deveria se
adaptar ao que já está acontecendo”, o que eles imaginam? Cidades realocadas
para lugares mais altos? Estradas e ferrovias mudadas para o interior? Rios
desviados? Terras aráveis abandonadas? Regiões despovoadas? Será que eles fazem
ideia de quanto isso iria custar?”, escreve George Monbiot, jornalista e
ambientalista inglês, em artigo publicado por The Guardian, 31-03-2014.
Segundo ele, “a nós é dito para aceitarmos as feridas do mundo; para
vivermos com o desaparecimento, previsto no novo relatório climático, dos
recifes e do gelo marinho, da maioria das geleiras e, talvez, de algumas
florestas tropicais, rios e zonas húmidas bem como de espécies que, como muitas
pessoas, não terão condições de se adaptar”.
Compreender o que está acontecendo com o planeta, disse o grande
conservacionista Aldo Leopold, é viver “num mundo de feridas (…). Um ecologista
deve endurecer seu casco e fazer de conta que as consequências da ciência não
lhes dizem respeito, ou ser o médico que vê as marcas da morte numa comunidade
que acredita estar bem e que não quer ser contraditada”.
A metáfora sugere que Leopold tenha visto a peça de teatro de Henrik
Ibsen, chamada “Na Enemy of the People” [Um inimigo do povo]. Thomas Stockmann
é um médico numa pequena cidade norueguesa e funcionário dos banhos públicos
cuja construção tem sido supervisionada pelo seu irmão, o prefeito. Os banhos,
orgulha-se o prefeito, “tornar-se-ão o foco de nossa vida municipal! (…) Casas
e propriedades fundiárias têm seus valores aumentando a cada dia”.
Mas Stockmann descobre que as tubulações foram construídas no lugar
errado, onde a água que alimenta os banhos está contaminada. “A fonte está
envenenada (…). Estamos ganhando a nossa vida revendendo sujeira e corrupção! O
todo de nossa vida municipal que floresce deriva o seu sustento a partir de uma
mentira!” As pessoas que se banham nesta água para melhorarem sua saúde estão,
ao invés, ficando doentes.
Stockmann espera ser tratado como um herói por expor esta ameaça mortal.
Depois que o prefeito descobre que recolocar as tubulações iria custar uma
fortuna e provavelmente iria pôr fim a todo o projeto, decide que o relatório
do irmão “não me convenceu de que a condição da água dos banhos é tão ruim como
parece ser”.
O prefeito propõe ignorar o problema, faz alguns ajustes cosméticos e
continua como se nada tivesse acontecido. Afinal, a questão em jogo não é
simplesmente científica. Trata-se de um assunto complicado, e tem seu lado
econômico bem como o aspecto técnico. O jornal local, a comissão dos banhos e
os empresários ficam ao lado do prefeito e contra os “relatos não confiáveis e
exagerados” do médico.
Espantado e enfurecido, Stockmann insulta enfurecidamente a todos. Ele
ataca a cidade como um ninho de imbecis e, em troca, encontra-se denunciado
como um inimigo do povo. Suas janelas são quebradas, suas roupas são rasgadas,
ele é expulso e arruinado.
O editorial de hoje do jornal Daily Telegraph, que de forma alguma
significa o pior dos recentes comentários sobre o tema, segue os três primeiros
atos da peça teatral.
Considerando a nova avaliação do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas, o jornal fica ao lado do prefeito. Primeiramente, ele
sugere que não se pode confinar no painel, em parte porque seus relatos não são
confiáveis e são exagerados e em parte porque ele usa “suposições baseadas no
modelo” para prever tendências futuras. Em seguida, sugere que tentar parar as
mudanças climáticas impulsionadas pelo homem seria muito caro. Então passa a
propor fazer alguns ajustes cosméticos e continuar como era antes. (“Talvez, em
lugar de um conformismo fatalista, um aprofundamento precisa ser dado sobre
como a humanidade poderá se adaptar às realidades climáticas”.)
Mas ao menos o Daily Telegraph aceitou que a questão mereceu algum
destaque.
No sítio do Daily Mail, as alterações climáticas ganharam quase nada de
destaque: “ Kim Kardashian se mostra mis confiante do que nunca na medida em
que mostra suas curvas tonificadas” e “Little George é a cara de Kate”.
Por debaixo destas reportagens indispensáveis encontrava-se uma história
que celebrava a descoberta de “vastos depósitos de carvão sob o Mar do Norte,
que podem fornecer energia o suficiente para abastecer a Inglaterra durante
séculos”. Nenhuma relação com a divulgação do novo relatório sobre mudanças
climáticas foi feita. Como bebês reais, as curvas de Kim e os banhos municipais
de Ibsen, o carvão é bom para os negócios. O aquecimento global, como os
contaminantes de Stockmann, é o espectro na festa.
A todos nós foi dito que é mais fácil se adaptar ao aquecimento global
do que parar o que é a sua causa. Isso sugere que não é apenas o “Relatório
Stern” sobre a economia das mudanças climáticas (mostrando que é muito mais
barato evitar alterações climáticas do que tentar viver com elas) que tem sido
esquecido, mas também as inundações que, recentemente, ocorreram.
Se um país pequeno, rico, bem-organizado não pode proteger seu povo de
um inverno com chuvas excepcionais – que podem ser causadas por menos de um
grau do aquecimento global –, quais as esperanças que outros países têm quando
confrontados com 4 graus ou mais?
Quando o nosso secretário de meio ambiente Owen Paterson nos garante que
a mudança climática “é algo a que podemos nos adaptar ao longo dos anos” ou
Simon Jenkins, que escreve no jornal Guardian, hoje, dizendo que devemos nos
mover em direção a “pensar de forma inteligente sobre como o mundo deveria se
adaptar ao que já está acontecendo”, o que eles imaginam? Cidades realocadas
para lugares mais altos? Estradas e ferrovias mudadas para o interior? Rios
desviados? Terras aráveis abandonadas? Regiões despovoadas? Será que eles fazem
ideia de quanto isso iria custar?
Minha opinião é que eles não sabem nada: eles não têm nenhuma ideia do
que querem dizer quando falam de adaptação. Se eles pensaram sobre isso,
provavelmente imaginaram um aumento constante nas temperaturas, seguido por um
aumento constante nos impactos, aos quais deveríamos nos adaptar. Mas, como
devemos saber a partir de nossa própria experiência recente, não é assim que as
coisas acontecem. A mudança climática acontece aos trancos e barrancos, com
mudanças repentinas contra as quais, como descobrimos numa pequena escala em
janeiro, preparativos não podem ser facilmente feitos.
As seguradoras envolvidas quando um desastre ocorre usam um processo
chamado regulação de sinistros. Isso descreve o que todos nós que amamos este
mundo irão passar na medida em que começamos a reconhecer que os governos, os
meios de comunicação e a maioria das empresas não têm a intenção de buscar
prevenir as próximas tragédias.
A nós é dito para aceitarmos as feridas do mundo; para vivermos com o
desaparecimento, previsto no novo relatório climático, dos recifes e do gelo
marinho, da maioria das geleiras e, talvez, de algumas florestas tropicais,
rios e zonas úmidas bem como de espécies que, como muitas pessoas, não terão
condições de se adaptar.
Na medida em que a perda à qual devemos nos ajustar se torna mais clara,
tristeza e raiva são, às vezes, esmagadoras. A gente se vê, como fiz nesta
coluna, insultando a cidade inteira. (ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário