domingo, 13 de abril de 2014

Seca atual não é culpa das mudanças climáticas

‘Seca atual não é culpa das mudanças climáticas, mas vai ser comum no futuro mais quente’
Um dos principais climatologistas do País lembra que hoje já temos conhecimento científico sobre como seremos impactados, mas ainda não temos obras de adaptação.
O relatório do IPCC (o painel de cientistas da ONU) deve reforçar algumas noções dos impactos das mudanças climáticas no Brasil que os cientistas nacionais já conhecem bem: o clima vai ficar mais instável, com uma alternância cada vez mais frequente de extremos climáticos - do muito quente para o muito frio; e do muito seco para o muito chuvoso. Cenários mais ou menos parecidos com os que estamos vendo hoje no Sudeste e no Norte do País.
"O alerta é claro: temos de incorporar essa dimensão da variabilidade climática se quisermos evitar o colapso dos sistemas", afirma o climatologista Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
Há sete anos, quando o IPCC lançou seu quarto relatório, Nobre falou em entrevista ao Estado que o Brasil ainda nem tinha condições de começar a se adaptar, porque nem sequer conhecia suas vulnerabilidades ou como poderia ser impactado pela mudança do clima. Agora, por ocasião do quinto relatório, ele afirma que o conhecimento científico avançou consideravelmente, mas ainda não estamos preparados para o que vem pela frente. E a crise da água que São Paulo está passando é o melhor exemplo disso.
Em 2007, quando saiu o relatório 4 do IPCC, o sr. disse: “vai adaptar o quê, se não sabe qual é o impacto”. Hoje já temos conhecimento suficiente dos impactos e das nossas vulnerabilidades?
Houve um enorme avanço do conhecimento científico. Isso se deve especialmente a investimentos de pesquisa por organismos federais e estaduais. No final de 2007 o governo federal criou a rede clima, financiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que focou muito em impactos e vulnerabilidades em todos os setores: agricultura, saúde, cidades, zona costeiras, biodiversidade, energia, no desenvolvimento regional, na economia. Ela começou a trabalhar para valer em 2009 e nos últimos cinco anos produziu muito conhecimento. Além disso, agências estaduais de fomento à pesquisa, com a Fapesp sendo a pioneira, também lançaram programas específicos de pesquisas sobre mudanças climáticas. Hoje temos um raio x panorâmico do que o Brasil deve enfrentar com as mudanças climáticas em cada um dos setores.
Sabendo tudo isso agora, já estamos agindo para nos adaptar?
Aí é mais difícil. O conhecimento precede uma boa política pública. Esse é o caminho natural. Mas para ela ser implementada entramos em uma outra seara de discussão. No avanço da percepção do risco climático que as emissões do efeito estufa causam, sempre se deu muito mais peso para a redução dessas emissões - ou seja, para a mitigação - em vez da adaptação. Esse assunto contagiou a discussão global dentro da Convenção do Clima (da ONU) e avançou mais. Infelizmente ainda com poucos resultados práticos - porque as emissões globais continuam a aumentar. Mas de todo modo a questão da mitigação se tornou mais central e, mesmo sem um acordo global para redução das emissões em todo o mundo, vários países vêm tomando medidas de redução, inclusive o Brasil. Já a adaptação, ainda que seja um assunto que existe desde que a discussão sobre as mudanças climáticas começou, adquiriu uma dimensão menor.
Por que isso?
O motivo é que a adaptação está intimamente ligada com a vida, o uso dos recursos, a infraestrutura local de cada país. Às vezes não é nem a infra nacional, mas como uma cidade funciona, como ela vai se adaptar. E uma solução para São Paulo é diferente da solução para Nova York, Paris, Londres. Ao contrário do que ocorre com uma tecnologia para gerar energia de modo mais eficiente e menor emissão. Ela pode ser aplicada localmente, globalmente. Mas o impacto das mudanças climáticas em uma cidade ou na agricultura de um país é muito específica. Ainda que se possa pensar em ações e tecnologias para serem aplicadas em qualquer lugar, medidas de adaptação são por definição locais. Além disso, há uma diferença fundamental entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os primeiros já há várias décadas criaram mecanismos para adaptar suas atividades econômicas, a agricultura e a defesa civil aos desastres naturais do presente. Para os países desenvolvidos, colocar a dimensão das mudanças climáticas dentro desses sistemas a fim de aumentar a resiliência da sociedade foi só uma coisa a mais. Não é algo trivial, não é fácil, mas é uma coisa a mais a algo que já existia. Já a grande maioria dos países em desenvolvimento ainda é muito mal equipada para conviver com a variabilidade climática existente hoje. Agora, imagine que em cima dessa variabilidade, vamos ter as mudanças climáticas com mais extremos.
É o que vemos, por exemplo, em São Paulo, que até hoje não encontrou uma solução para as frequentes inundações no verão?
A verdade é que conviver com os extremos nunca foi uma agenda que de fato obteve prioridade. E isso vale para a maioria dos países em desenvolvimento. Temos o exemplo clássico da convivência com a seca no Nordeste. Cada vez que tem uma grave é ainda um grande drama social. Lógico que hoje a situação está melhor que há 50 anos, mas é fato que ainda não resolvemos essa questão. Não temos um modelo sustentável de desenvolvimento do semiárido do Nordeste que consiga equacionar a questão das grandes secas de forma permanente. Então o problema da pouca adaptação passa por isso. Adaptar a infraestrutura urbana de uma grande cidade para as mudanças climáticas passa necessariamente por resolver grandes questões que vão muito além das mudanças climáticas. Que é a forma como a cidade se desenvolveu, a política de transporte público versus o automóvel, por exemplo. Falar em adaptar a mobilidade de São Paulo para as chuvas mais intensas… Bom, isso não é aquecimento global, é um problema da urbanização de São Paulo. Para lidar com o aumento das chuvas é preciso mudar completamente a política de mobilidade urbana para incentivar o transporte público. É uma ladainha que todo mundo sabe e repete. Isso não é só para se adaptar às mudanças climáticas. É uma questão de sobrevivência, eficiência e qualidade de vida. Se a cidade já fosse mais funcional no aspecto de mobilidade urbana, seria muito mais fácil se adaptar ao aumento da temperatura e da intensidade das chuvas e às inundações, os alagamentos. Quando já existe um problema de infraestrutura muito grave, com 'n' dimensões, e vem mais um estresse das mudanças climáticas, é muito mais difícil resolver. Por isso a agenda da adaptação está sendo incorporada de maneira de mais lenta. Mas é inevitável. Países que não acordarem vão sofrer um custo econômico, social, ambiental gigantesco.
Ainda dá tempo de agir?
É uma frase que já virou chavão, mas um grande grau de mudanças climáticas já se tornou inevitável. Não há o que fazer. É uma constatação que a ciência coloca com muita propriedade e robustez. Algumas coisas não teremos como reverter. Já vamos conviver no futuro com pelo menos mais 2°C de temperatura, isso se houver muito trabalho para estabilizar as emissões de gases. Hoje, no entanto parece que serão mais que dois graus. Mas mesmo se ficar nisso já demanda uma grande adaptação. Mais 2°C no Brasil, com mais eventos extremos climáticos, mais episódios de secas e chuvas intensas prolongadas no Nordeste, no Sudeste significam que toda a economia do País precisa ser adaptada, toda a geração de energia. Nas zonas costeiras, mesmo se ficar nos 2°C, no horizonte de alguns séculos teremos aumento de mais de 1 metro do nível do mar. Em 200 anos estamos falando de 1,5 metro, 2. E três metros de aumento de nível do mar, mesmo que seja em 300 anos, vai significar outra configuração da costa. Vai ter de ter outro uso. A costa vai regredir. Tudo isso são coisas que temos de pensar.
Algum setor está mais avançado?
O da agricultura com certeza. Tem a ver com o trabalho da ciência e a importância da Embrapa como esteira condutora do conhecimento científico aplicado em políticas públicas na agricultura. A Embrapa adotou uma agenda de pesquisa de redução das emissões na agricultura e adaptação para mudanças climáticas há uns 10 anos. Não significa que todo o setor esteja preparado, mas já se entende que é necessário desenhar uma nova agricultura, com novo zoneamento, incorporação de novas tecnologias para fazer frente às mudanças climáticas.
A crise atual de água em São Paulo nos ensina algo nesse sentido?
Esse é um setor que ainda está reagindo mais na emergência. E a dimensão que precisa ser rapidamente incorporada nas políticas públicas do uso do recurso hídrico é a de longo prazo das mudanças climáticas. No planejamento de recursos hídricos já há muito tempo se considera a mudança do uso da terra. Ao mudar a vegetação, o ciclo hidrológico e o aproveitamento do recurso hídrico também mudam. Mas a dimensão das mudanças climáticas raramente é incorporada. É o momento de fazer isso. Restam poucas dúvidas de que a variabilidade climática -- os extremos do clima -- vão mudar. Não é mais uma coisa estacionária, como era há algumas décadas quando, ao planejar um reservatório de uma cidade, os hidrólogos usavam a série histórica de chuvas, secas, inundações para prever a segurança dos reservatórios, e isso era perfeito. Era uma ciência muito bem conhecida desde os romanos. Só que as séries não são mais estacionárias. Então é importante que essa dimensão seja acrescentada ao planejamento. É a única maneira de fazer frente. Porque só responder na emergência não elimina todos os prejuízos econômicos, sociais e ambientais nem evita colapsos no longo prazo. E não estou dizendo que essa seca atual é uma decorrência das mudanças climáticas. Mas que no futuro, a variabilidade climática, que é prevista por todos os cenários climáticos, tem de ser levada em consideração. As séries não são mais estacionárias. Os cenários que temos hoje não mostram para o futuro uma redução do volume anual de chuva para o Sudeste e o Sul do País, mas eles mostram o aumento da variabilidade para esses locais. Ou seja, altos e baixos vão acontecer mais vezes. O sistema tem de estar preparado para isso. A mensagem é que o aumento da presença dos extremos têm de entrar no planejamento de longo prazo. E finalmente o conhecimento científico está disponível para ajudar que essa dimensão seja incorporada. (OESP)

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