Impõe-se a proibição do rebaixamento forçado do lençol
freático em determinados contextos geológicos urbanos
O problema
São velhos conhecidos das ciências
geotécnicas os graves problemas decorrentes de operações de rebaixamento
forçado do lençol freático em áreas urbanas. Esses rebaixamentos são via de
regra executados com o objetivo de viabilizar ou facilitar ações construtivas
associadas a estruturas subterrâneas situadas abaixo do nível natural do lençol
freático.
Esses problemas são especialmente
comuns em terrenos de características geológicas aluvionares com presença de
camadas de solos compressíveis mais argilosos e nível freático próximo à
superfície. Com a retirada da água dos interstícios existentes entre os grãos
que compõem o solo, o que implica uma redução das poro-pressões e aumento das
tensões efetivas, há um natural reacomodamento interno dos constituintes
granulométricos dos solos, o que leva inexoravelmente à redução de seu volume e
consequentes recalques em superfície e sub-superfície. Como o rebaixamento do
lençol estende-se para as áreas circunvizinhas do canteiro de obras, as
edificações e empreendimentos que aí se situam sofrem as consequências da
adaptação do terreno às novas condições hidrogeológicas.
Outro fenômeno também bastante
comum decorrente de operações de rebaixamento do lençol freático diz respeito
ao comprometimento estrutural de edificações causado pelo apodrecimento de
estacas de madeira. As estacas de madeira tratada, hoje ainda em uso, foram já
muito utilizadas pela engenharia como elementos de fundação de residências de
maior porte em áreas de solos moles e alagadiços. Quando abaixo do nível
freático, ou seja, em ambiente quimicamente redutor de solo saturado, essas
estacas apresentam grande durabilidade devido à enorme resistência ao
apodrecimento por ataque biológico. Com o rebaixamento do lençol ficam, ao
menos em seu trecho superior, expostas à presença de oxigênio, condição em que
entram em acelerada decomposição promovida pela ação de fungos e demais
micro-organismos.
Por ocorrerem em situações
hidrogeológicas análogas, não são raras as situações onde os dois fenômenos,
recalques e apodrecimento de estacas de madeira, se sobrepõem, o que leva à
potencialização dos problemas decorrentes.
Poder-se-ia dizer que com a
execução esmerada de paredes e pisos subterrâneos totalmente estanques, como
sugere a norma técnica brasileira NBR-6122-1996 “Projeto e execução de fundações”,
as consequências geotécnicas do rebaixamento do lençol na execução de
pavimentos subterrâneos seriam reduzidas; porém, a prática mostra que esta
opção, além de encarecer brutalmente o processo executivo, dificilmente
consegue a total estanqueidade almejada, pelo que muitos edifícios que
utilizaram o rebaixamento são inclusive levados a manter esse rebaixamento
indefinidamente, ao longo de toda sua vida útil, através da instalação de
sistemas permanentes de bombas submersas.
Há que se considerar também que
nas áreas urbanas as intervenções diretas e indiretas sobre a água subterrânea
– redução drástica da recarga devido à impermeabilização generalizada da
superfície urbana, poluição, extração para uso e consumo, rebaixamentos
forçados – têm atingido níveis alarmantes, com consequências gravíssimas para a
disponibilidade desse recurso hídrico como manancial estratégico de boa água
para a sociedade.
Para ter-se uma ideia da
importância do manancial subterrâneo para o fornecimento de água potável aos habitantes
da cidade de São Paulo, estima-se hoje a participação da água subterrânea no
abastecimento da metrópole paulista em algo próximo a 10 m³/s, um volume
considerável em relação ao montante da água produzida e distribuída pela
SABESP, em torno de 67 m³/s, que já não atende uma demanda firme de mais de 73
m³/s. Esse quadro tenderá a se agravar na medida que a SABESP consiga reduzir
os vazamentos crônicos de sua rede de adução e distribuição de água potável, já
que esses vazamentos, de forma um tanto surrealista, atuam hoje como fonte
alimentadora dos aquíferos subterrâneos.
As operações de rebaixamento
forçado do lençol freático, ao lado da impermeabilização do solo nas áreas
naturais de recarga do aquífero, vêm se constituindo nos principais fatores
causadores de depleções do lençol freático em algumas regiões da metrópole, com
bairros já registrando rebaixamentos em torno de 4 metros.
Em regiões aluvionares baixas,
situações em que o lençol está bem próximo à superfície, certamente um
rebaixamento forçado do lençol, se de caráter temporário, seria naturalmente
compensado pela migração de águas subterrâneas laterais. Porém, há que se
considerar que esse reequilíbrio hidráulico seria obtido com a migração de
águas subterrâneas de caráter regional, envolvendo áreas mais altas das
vertentes dos vales, com maior dificuldade de serem compensadas por águas
pluviais de recarga.
Os métodos utilizados para
promover o rebaixamento do lençol são escolhidos em função da constituição, da
permeabilidade dos materiais geológicos presentes e da profundidade da
escavação que se pretende executar. No sentido de solos mais permeáveis para
solos menos permeáveis, destacam-se entre esses métodos: bombeamento direto das
águas recolhidas em poços ou trincheiras, ponteiras filtrantes, poços profundos
gravitacionais, poços profundos com vácuo, eletrosmose.
O quadro atual na cidade de São
Paulo
Com o crescimento das cidades e
em resposta à tendência de utilização funcional de espaços subterrâneos urbanos
vem se tornando extremamente frequentes no país casos de conflitos de
interesses associados a danos estruturais decorrentes de operações de
rebaixamento forçado do lençol freático. Complexas e onerosas ações judiciais
tem acompanhado via de regra essas situações.
A cidade de São Paulo, pelas
características geológicas e hidrogeológicas da região ocupada, tem se
destacado como um polo de crescente incidência desses problemas.
De uma forma geral, todos os
terrenos correspondentes às planícies aluvionares quaternárias vinculadas a
seus principais rios, Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, Aricanduva, Cabuçu de Cima
e outros, mostram clara suscetibilidade para a ocorrência de recalques
localizados sob a ação de rebaixamentos forçados do lençol.
São, nesse sentido, didáticos e
conhecidos os casos de edificações vizinhas afetadas estruturalmente por
recalques advindos de rebaixamentos associados a obras lineares subterrâneas
(metrô, obras de saneamento…) e à construção de novos edifícios, como está a
ocorrer com relativa frequência nos bairros paulistanos de Pinheiros, Itaim
Bibi, Moema, Ibirapuera, Água Branca, Barra Funda, Vila Olímpia, Brooklin e
outros, historicamente assentados sobre terrenos aluvionares de baixa
consistência.
Nessas condições, um rebaixamento
de apenas poucos metros no lençol freático é suficiente para provocar recalques
capazes de comprometer várias edificações do entorno.
Sem dúvida, diante do histórico
acumulado de inúmeros casos de acidentes e intercorrências geotécnicas dessa
natureza, certamente é de todo o interesse da PMSP resolver adequada e
definitivamente essa questão.
A própria CEUSO – Comissão de
Edificações e Uso do Solo, da Secretaria Municipal de Licenciamento, órgão
normativo e consultivo sobre a legislação de obras, de edificações e de
parcelamento do solo, tem sido testemunha e partícipe do grande número de casos
conflitivos associados a operações de rebaixamento forçado do lençol freático
que lhe tem sido levados à análise e solução. Certamente é chegado o momento de
dar uma boa e virtuosa solução para o problema.
Mapa
geológico da cidade de São Paulo mostrando em cor bege clara as extensas
planícies aluvionares associadas às várzeas dos rios Tietê, Pinheiros,
Tamanduateí e outros, regiões naturalmente suscetíveis a casos de recalques e
adensamentos de terrenos provocados por rebaixamento forçado do lençol
freático.
A solução
Do ponto de vista geotécnico não
há controvérsias, impõe-se, por princípio e lógica elementar, a proibição de
operações de rebaixamento forçado do lençol freático nas áreas geológicas de
maior suscetibilidade ao fenômeno de recalques associados. Essas áreas, como já
foi referido, coincidem exatamente com as zonas aluvionares quaternárias, pelo
que, do ponto de vista cartográfico e geológico, todos os territórios de
bairros que se estendem sobre essa planície aluvionar associada aos eixos dos
principais rios e córregos da região devem ser objeto de proibição absoluta de
operações de rebaixamento do lençol. O mapa reproduzido adiante, em que estão
representados os mais diversos bairros da capital e as áreas aluvionares
quaternárias, constituiria então a referência básica para o regramento
territorial dessa proibição.
A própria Carta Geotécnica do
município de São Paulo, elaborada na escala 1:25.000 e detalhada na escala
1:10.000 por profissionais da própria Prefeitura Municipal de São Paulo, já
caracteriza claramente os compartimentos geológicos definidos pelas planícies
aluvionares quaternárias como geotecnicamente críticas para a construção civil,
dadas sua constituição geológica por solos moles quaternários de extrema
compressibilidade e nível freático muito próximo à superfície, além de muitas
vezes apresentarem-se como terrenos sujeitos a inundações periódicas. Seria
somente o caso de agregar a proibição de operações de rebaixamento do lençol
freático às determinações técnicas dessa Carta relativas a esse compartimento
geológico, ou seja, às planícies aluvionares quaternárias.
O rebatimento da solução técnica
no contexto da legislação urbana de uso do solo
De certa forma a rigidez com que
vem sendo aplicada a lei municipal de zoneamento, no que se refere aos
gabaritos prediais (altura máxima das edificações, instalações e estruturas)
vem induzindo o construtor a se valer de pavimentos subterrâneos para, em
especial, ganhar espaços de garagem não computáveis no gabarito legalmente
definido para a zona urbana considerada. Esclarecendo melhor, caso optasse por
garagens aéreas o construtor seria obrigado a computar os pavimentos para tanto
destinados no cálculo da altura predial, o que implicaria em deixar de
comercializar o espaço correspondente (salas, apartamentos…).
Ou seja, mesmo para as áreas
urbanas geotecnicamente críticas para os fenômenos de recalques os construtores
estão sendo induzidos pela lei em vigor a optar por escavações profundas com a
utilização de operações de rebaixamento forçado do lençol freático.
Pois bem, caso nas áreas
geologicamente críticas consideradas (e somente e exclusivamente para essas
áreas) seja acordado que os pavimentos garagem aéreos não sejam computados no
cálculo do gabarito predial (altura máxima do prédio), e que o projeto
arquitetônico obrigue-se a dar boa solução estética para essa alternativa, o
problema estaria virtuosamente resolvido.
A Lei n° 13.885, de 25 de agosto
de 2004, conhecida como Lei de Parcelamento e Uso do Solo urbano, que tem por objetivo
explicitado estabelecer normas complementares ao Plano Diretor Estratégico,
dispor sobre o parcelamento e disciplinar e ordenar o Uso e Ocupação do Solo do
Município de São Paulo, em seu Art. 2º, item XXV, define gabarito de altura
máxima de uma edificação como a distância entre o piso do pavimento térreo e o
ponto mais alto da cobertura, excluídos o ático e a caixa d’água.
Por essa legislação os gabaritos
são estipulados de acordo com o zoneamento urbano contido nas Macrozonas
definidas em seu Art. 98: Macrozona de Proteção Ambiental e Macrozona de Estruturação
e Qualificação Urbana.
Do ponto de vista do amparo legal
à boa solução acima descrita bastaria apenas a inclusão de um parágrafo neste
mesmo artigo, ou outro que melhor se indique, estabelecendo a especificidade
referida para a computação do gabarito predial nas áreas geológicas críticas
definidas nos documentos cartográficos já referidos. (ecodebate)
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