No curto prazo, nada pode ser feito pela seca no sudeste,
afirma futuro relator da ONU para o Direito à Água.
Para o mineiro Léo
Heller, futuro relator das Nações Unidas para o Direito à Água e ao Saneamento
Básico, crise hídrica não tem solução imediata a não ser chuva e redução do
consumo.
A crise hídrica no Sudeste não tem solução a curto prazo a não ser chuva
e redução do consumo, afirma Léo Heller, futuro relator das Nações Unidas para
o Direito à Água e ao Saneamento Básico. A partir de 01/12/14 o
pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) vai
substituir a portuguesa Catarina de Albuquerque na ONU. O mandato dura três
anos e pode ser renovado pelo mesmo período.
“Já estão adotando todas as
medidas necessárias e usando o volume morto do reservatório. No curto prazo, é
muito difícil pensar em outras soluções”, afirmou Heller, em entrevista à DW
Brasil.
Caso não chova nos próximos
meses, alerta o engenheiro, a situação pode ficar “dramática”.
Ele considera que o volume de
água desperdiçada ao longo do sistema de abastecimento brasileiro “não é
admissível”. “Ao invés de buscar novos mananciais, é mais ético trabalhar na
redução dessas perdas.”
Heller é cauteloso ao falar
do tratamento do esgoto para transformação em água de reuso. Recentemente, o governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin, anunciou a construção de uma estação que irá empregar a técnica, com o
objetivo de aumentar a oferta de água.
DW Brasil: O que o senhor
acha que poderia ter sido feito para minorar a seca no Sudeste?
Léo
Heller: Deveria
ter tido um planejamento mais adequado, que levasse em conta a possibilidade de
estiagem, que é um fenômeno natural e sazonal. Esses momentos precisam ser
incluídos no planejamento. Os atuais mananciais e captações de água têm sido
insuficientes para atender a demanda, isso requer aumentar e diversificar as
fontes de água, não só quantitativamente, mas qualitativamente. Isso inclui
água subterrânea e de chuva, por exemplo.
E do ponto de vista da
demanda?
É preciso reduzir as perdas
no sistema de abastecimento de água. Além disso, poderíamos consumir menos água
com mudanças nos hábitos da população e com equipamentos mais econômicos, como
a descarga dual (com dois botões, um para resíduos sólidos e outro para
líquidos). Algumas cidades estão incentivando a captação da água da chuva no
nível domiciliar para alimentar a descarga dos vasos sanitários. É uma solução
muito inteligente, porque usamos uma água de altíssimo padrão, sem necessidade.
E é onde mais se consome água nos domicílios.
O que pode acontecer caso não
chova nos próximos meses no Sudeste?
A situação ficaria dramática
e precisaríamos intensificar o racionamento. Eu prefiro pensar no longo prazo,
que os gestores tomem as providencias necessárias para que, no próximo verão,
isso não volte a acontecer.
Então, no curto prazo, não
tem muito o que possa ser feito…
Não, não tem. Exceto
campanhas para que as pessoas economizem. Já estão adotando todas as medidas
necessárias e usando o volume morto do reservatório. No curto prazo, é muito
difícil pensar em outras soluções.
Que medidas preventivas
poderiam ter sido tomadas para economizar água?
Deveríamos ter feito gestão
da demanda, trabalhado para diminuir o consumo de água, com campanhas contra o
desperdício e combate às perdas. A redução da pressão também ajuda a diminuir o
consumo. Todas essas medidas deveriam ter sido tomadas preventivamente.
Como o senhor vê a tentativa
transferir água do Rio Paraíba do Sul para o Cantareira?
A transferência de água de
uma bacia para alimentar a captação de outra, se for realizada e gerenciada de
forma inteligente, pode ser uma solução. Desde que, obviamente, essa
transferência não comprometa a água da bacia doadora. Aparentemente, estudos
desenvolvidos pela própria ANA [Agência Nacional de Águas] mostram que isso não
colocaria em risco o abastecimento dos outros estados. Mas isso precisa ser
feito com muito cuidado.
Há uma mentalidade de que a
água é um recurso infinito. Essa crise hídrica pode mudar isso?
A crise no Sudeste alerta
para a necessidade de uma mudança de paradigma da gestão de água. Ela não é
infinita e ela não tem um volume constante ao longo do ano e das décadas.
Alguns autores falam que o abastecimento de água deve mudar de uma lógica
linear – captação, uso e descarte – para uma lógica mais circular, com o reúso
e outras fontes. Precisamos sair de uma acomodação e investir não só em novas
obras, mas na modernização da gestão. É muito possível que uma parte do
problema atual tenha origem nas mudanças climáticas globais, o que sinaliza que
esse fenômeno pode ocorrer com mais frequência.
O que o senhor acha da
proposta de multar pessoas que, por exemplo, seguem lavando carros e calçadas
com mangueira, apesar da seca?
Associada a um conjunto de
medidas, a multa pode ter efeito. Isoladamente é quase uma transferência de
responsabilidade, como se os culpados fossem os usuários e o gestor não tivesse
nenhuma responsabilidade. Isso não é correto. De certa forma, os modelos de
tarifação de água hoje já incluem essa lógica, porque quem consome muito paga
mais pelo metro cúbico. Só que esse modelo tarifário se demonstrou incapaz de
coibir esse tipo de desperdício. Mas nós não temos ainda condições empíricas
para dizer que as multas contribuiriam a redução do consumo. Pode ser que um
proprietário muito rico concorde em pagar mais para continuar desperdiçando.
Estudiosos têm alertado para
o desmatamento ao redor de represas, como o Cantareira, e mesmo na Amazônia,
como um dos agravantes da seca. O senhor concorda que se dá pouca importância a
esse fator no gerenciamento da água?
Sem dúvida. Os profissionais
da hidrologia sabem muito bem disso. Não é apenas o desmatamento ao redor das
represas que tem impacto, mas nas bacias hidrográficas inteiras. Quando há
alterações importantes, no sentido de remover vegetação, ampliar a urbanização
e iniciar práticas agropecuárias, a bacia perde sua capacidade de armazenar
água. Ou seja, em época de estiagem, a vazão dos rios vai ser cada vez menor.
As bacias no Sudeste são muito afetadas pela ação do homem, isso certamente
explica parte do que está ocorrendo. Em relação à Amazônia, esse impacto ainda
carece de uma comprovação mais firme.
Recentemente, o governo de
São Paulo anunciou a construção de uma estação que para fazer o reuso do esgoto. O Brasil está avançado em relação ao
reaproveitamento da água em comparação com outros países?
Nós estamos muito atrasados. Há
várias formas de reuso, como reaproveitar a água
para a irrigação ou para o vaso sanitário. Essa de transformar o esgoto em água
potável é a mais radical. Existem tecnologias para isso, sim, mas são mais
sofisticadas e nós estamos menos habituados a operá-las. É preciso muito
cuidado, porque qualquer falha no processo pode levar a uma insegurança
sanitária da população. E as falhas são possíveis em um processo novo, quando
não temos mão de obra qualificada para isso. Tem que ter um controle muito fino
ou podemos trazer risco para a população.
O senhor mencionou o reuso domiciliar, mas o que poderia ser feito em larga
escala?
É possível pensar em grandes
reservatórios de água de chuva para usos menos nobres. O problema é que muitas
vezes esse reuso implica uma grande
reformulação dos sistemas, tanto públicos, quanto domiciliares. Alguns países
têm rede dupla na rua, uma para água mais pura e outra mais impura. Em uma
cidade que já esteja totalmente consolidada, essa transformação é muito penosa.
O que parece mais viável são pequenas mudanças em nível domiciliar, mais do que
municipal. A tecnologia existe para qualquer tipo de reuso, mas precisamos observar a segurança sanitária, a
viabilidade técnica e econômica.
O Brasil tem uma taxa alta de
perda de água ao longo do sistema. O que pode ser feito em relação a isso?
Temos uma taxa média nacional
de perdas na distribuição de 37%, segundo o SNIS [Sistema Nacional de
Informações sobre Saneamento]. É bem alta. Dificilmente chegaria a zero, mas os
engenheiros trabalham com uma meta de 25%. Abaixo disso, costuma ser pouco
viável economicamente. Ao invés de buscar novos mananciais, é mais ético
trabalhar na redução desse desperdício. Para isso, faltam investimentos
públicos e um programa de controle de perdas mais efetivo. Existem incentivos
do governo federal, mas muitas vezes os gestores se acomodam e preferem fazer
novas obras de infraestrutura do que trabalhar nesse ajuste fino, que requer um
trabalho de detetive e dá pouca visibilidade. Do ponto de vista ético, não é
admissível perder tanta água no sistema.
O que o senhor, como
brasileiro, acha que o nosso país pode contribuir nesse debate sobre água e
esgoto no mundo?
O Brasil avançou muito nos
seus marcos legais e institucionais, isso pode ser um exemplo interessante. Nós
temos agora uma lei nacional que estabelece a regulação da prestação do serviço
de água e esgoto, além de um plano nacional e uma estrutura no governo que
cuida disso. Também tem havido certa estabilidade nos financiamentos públicos
federais para a área. Esse conjunto de medidas terá efeitos de longo prazo,
elas prepararam o país para avançar muito na ampliação do acesso ao saneamento.
A maior parte dos brasileiros
não tem acesso a tratamento de esgoto. Quais são os desafios para a
universalização desse serviço?
Sem dúvida isso tem avançado
lentamente, mas tem avançado. O Plano Nacional de Saneamento Básico dá
prioridade a isso. A ideia hoje é não implantar nenhum sistema de coleta de
esgoto sanitário que não tenha tratamento. Isso já vem sendo feito, mas nós
temos um passivo muito grande e superá-lo é um desafio enorme. (ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário