segunda-feira, 23 de março de 2015

Reflexões sobre a crise hidrológica no Sudeste

As regiões Sudeste e Sul deveriam ser regiões com clima semiárido, se não desértico, a exemplo de outras partes do planeta em mesma latitude. No entanto elas são irrigadas sazonalmente pela evapotranspiração da floresta amazônica. O site “Rios Voadores” caracteriza muito bem como o vapor de água se distribui pelo país. De forma sintética, a umidade do oceano avança pela planície amazônica e provoca chuvas, ao mesmo tempo em que a própria evapotranspiração das árvores suga água do solo e a devolve para a atmosfera. Porque a Amazônia brasileira tem relevo muito baixo, o movimento de rotação da Terra arrasta a umidade até os contrafortes da Cordilheira dos Andes, onde se acumulam. Não é à toa que a Amazônia colombiana é uma das regiões mais chuvosas do planeta.
Na região da Bolívia, durante o verão, forma-se um anticiclone na alta troposfera, chamado de Alta da Bolívia, cujos movimentos capturam o vapor de água amazônico e o arremessam em direção ao Centro-Oeste e Sudeste. Em suma, três são os principais fatores responsáveis pelas chuvas na região Sudeste: a evaporação da floresta, a barreira dos Andes e a Alta da Bolívia.
A Cordilheira dos Andes é um elemento permanente na natureza, mas os dois outros fatores não. O que acontece se um deles tiver seu funcionamento alterado?
No verão de 2013 as chuvas não chegaram ao Sudeste. Todos os alertas foram acionados e o nível dos reservatórios de hidrelétricas e de abastecimento de água continuaram baixando, quando essa tendência deveria ter sido revertida em meados de dezembro. A falta de chuvas não repôs as águas consumidas para geração de energia e pelas cidades. Apesar de todas as hipóteses apresentadas na época (desmatamento em São Paulo, mudanças climáticas, etc) parece que poucos se atentaram para o fenômeno oposto e concomitante: as grandes enchentes nos rios amazônicos, principalmente Madeira e Tapajós. O rio Madeira, por exemplo, que tem vazões de cheia próximas de 40.000 m3/s em anos normais, teve mais de 65.000 m3/s na região de Porto Velho. Outros críticos apontaram as hidrelétricas como causa de tamanha enchente, mas hidrelétricas não produzem água, e aquelas construídas no rio Madeira não acumulam volume de água. Aliás, o acúmulo de água ocorreria na cheia, para que fosse liberada durante a seca. Essa operação de um reservatório de regulação atenuaria o impacto da cheia na cidade de Porto Velho, por reter volume, não o contrário.
Então, de onde teria vindo tanta chuva na região amazônica? Na verdade, ela foi resultado da evapotranspiração da floresta, mas não saiu de lá. Por algum motivo – cabe aos climatologistas investigarem esse ponto – a Alta da Bolívia não foi eficiente naquele verão e não conseguiu nos enviar as chuvas tão necessárias. Retidas no paredão dos Andes, precipitaram ali mesmo, enquanto outras massas úmidas de ar estagnadas precipitaram nas bacias do Tapajós e do Xingu.
O mecanismo atmosférico falhou em 2013/2014 e voltará a falhar em 2014/2015. Um ano chuvoso tem as chuvas retornando em setembro; uma estação chuvosa regular tem chuvas a partir de outubro e, num ano mais seco, elas caem no final de novembro. Entramos em dezembro e nada de chuvas, estamos quase em final de janeiro e o déficit hídrico está imenso. Enquanto isso, a vazão do rio Madeira sobe assustadoramente e hoje está próximo dos 30.000 m3/s, na fase de enchente. Essa vazão é semelhante à vazão do mesmo período no período chuvoso passado, de 2013/2014. Trata-se do alerta para a tragédia que se anuncia novamente, nas duas regiões. É grande a probabilidade de termos mais uma grande cheia na região Norte, enquanto o Sudeste mingua, seca.
Se ocorreu uma alteração na Alta da Bolívia, cabe aos climatologistas investigar. Se há risco dessa alteração ser mais frequente, em função das mudanças climáticas, é necessária uma avaliação livre de especulações baratas. Se a circulação atmosférica voltar ao seu padrão normal no próximo ciclo, vamos respirar aliviados, caso contrário haverá uma migração inversa, rumo ao Nordeste, pela mesma razão dos movimentos que caracterizaram os movimentos de população de lá para cá no passado: a seca, a falência econômica pela falta de água.
Esse cenário catastrófico pode ser apenas uma alegoria, mas há um sério risco de se transformar em dura realidade no médio ou longo prazo. De que adiantará termos o mecanismo atmosférico funcionando corretamente se não houver umidade para ser transportada? Esse é o ponto que exige uma reflexão profunda de todos os setores sociais e de governos. O desmatamento da Amazônia parece inexorável, ainda que tenha reduzido, nunca é zerado, e ninguém parece estimulado a romper esse processo e revertê-lo com a reposição de áreas florestadas. A Amazônia é que nos banha, nos lava e mata a nossa sede. Qual o valor econômico da floresta em pé? Vale o preço de cada megawatt de energia gerado pelas usinas hidrelétricas do Sudeste? Vale o preço de cada tonelada de aço produzida pelas siderúrgicas do Sudeste? Vale cada tonelada de soja ou cada tonelada de cana-de-açúcar colhida no Cerrado mato-grossense ou na terra roxa paulista? Se o vapor de água da Amazônia nos é tão caro, por que somos incapazes de remunerar os proprietários de terras na região que estejam dispostos a preservá-la?
A crise hídrica do Sudeste deveria servir para essa reflexão. Urge que olhemos para a região com outros olhos, não como o Inferno Verde dos anos 1960 e 1970. Transformar a floresta em pé em bem econômico, mesmo que nada dela se explore, é conservar a saúde econômica do Sudeste e do Sul. Sem água, a região mais populosa do país não terá condições de manter o abastecimento público, tampouco manter a qualidade de vida. O clima quente e seco exigirá a exploração dos recursos hídricos subterrâneos e também a reformulação de toda a matriz energética. Sem água, deixaremos de ter recordes de produção de grãos e passaremos a ser importadores de alimentos.
Refletir é preciso, desenvolver ideias é necessário e tomar medidas é urgente. Antes que nossa região se transforme num deserto climático, econômico e social. (ambienteenergia)

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