País precisa restaurar o ‘ciclo das águas’ para enfrentar crise de
dimensão nacional
“A crise não é produto de um só fator, mas resulta de um processo
histórico de destruição dos elementos fundamentais que garantiam o ciclo das
águas”
Crise hídrica como a de São Paulo tende a se agravar, resultado de sucessivas ações humanas contra ciclos da natureza.
Crise hídrica como a de São Paulo tende a se agravar, resultado de sucessivas ações humanas contra ciclos da natureza.
A crise de abastecimento de água vivida hoje pelo país, que também afeta
a produção de energia hidrelétrica, tem um horizonte que vai além da seca
histórica pela qual o país passa. “A crise não é produto de um só fator, mas
resulta de um processo histórico de destruição dos elementos fundamentais que
garantiam o ciclo das águas”, avalia Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), em Juazeiro, na Bahia.
Nascido no interior de São Paulo e formado em Filosofia, Estudos Sociais
e Teologia, Malvezzi luta em defesa do direito à água desde os anos 1980,
quando se mudou para a região das comunidades rurais de Campo Alegre de
Lourdes, na divisa da Bahia com o Piauí, área em que a única água disponível
era o líquido barrento dos açudes, em que o uso humano e para animais era
partilhado.
Desde então, Malvezzi lutou contra a ditadura e defendeu as populações
realocadas pela barragem de Sobradinho. Tudo isso convivendo com amebas da água
barrenta durante 20 anos. Ele foi também coordenador nacional da CPT por mais
de seis anos. Atualmente, Malvezzi vê entre os principais resultados de luta
pela água no semiárido nordestino a consolidação de cerca de 1 milhão de
cisternas, que mudou a realidade das populações rurais difusas do sertão,
extinguindo processos como os de migrações, de saques e também de mortalidade
infantil. Mas isso é um dado positivo resultado da mobilização, frente ao
modelo econômico de exploração que está afetando a produtividade dos rios do
país.
“A impressão que eu tenho é que o governo e o poder econômico
abandonaram totalmente a ideia da revitalização”, afirma, ao referir-se ao rio
São Francisco, que de uma vazão histórica de 3 mil m3 por segundo,
hoje conta com apenas 900 m3 por segundo. “Em Juazeiro e Petrolina,
a mídia local está defendendo a transposição do Rio Tocantins para o Rio São
Francisco. Esse é a pauta da mídia aqui no momento”, afirma o ativista,
atualmente morador de Juazeiro, na Bahia, e para quem o sucesso das obras de
transposição do rio São Francisco depende também de sua revitalização.
Nesta entrevista à RBA, Malvezzi traça um panorama da crise das águas no
país, e arrisca o prognóstico de que somente uma mudança de modelo, e, portanto
de mentalidade, poderá resgatar a preservação de recursos hídricos. Ele também
critica a insistência dos neoliberais em defender o mercado de outorgas, que
transformaria definitivamente a água em um produto fundamentalmente voltado ao
lucro, e lamenta a morte do Rio Doce, com a ruptura das barragens de rejeitos
em Mariana. “O modelo econômico parece que tem ódio, eu diria, um ódio entre
aspas, de florestas e rios. Não se sabe conviver”, afirma.
Como o sr avalia de forma geral a situação das águas no país hoje?
A crise não é produto de um só fator, mas resulta de um processo
histórico de destruição dos elementos fundamentais que garantiam o ciclo das
águas. Com o desmatamento da Floresta Amazônica, segundo cientistas como o
Antonio Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a
Amazônia está perdendo o poder de injetar água na atmosfera, o tal rio aéreo,
que leva a umidade para a região dos Andes, de São Paulo, Buenos Aires, e até a
Patagônia. Então, essa é uma consideração interessante.
O segundo fator é a destruição do cerrado, porque grande parte das
origens das nossas águas está na Amazônia, mas o grande depósito que reserva as
águas provenientes da Amazônia é o cerrado, pelas próprias características do
bioma de solo poroso, e muitos rios que nascem ali na bacia dos rios Araguaia e
Tocantins, rios que vão na direção da Bacia do Pantanal, do Paraná, inclusive
rios e aquíferos que abastecem o Rio São Francisco. Então, é interessante
perceber que a água que a gente bebe do Rio São Francisco de alguma forma tem
origem na própria Amazônia.
E no ciclo geral das águas, no processo de evapotranspiração,
pluviosidade e armazenamento essas águas alcançam o resto do Brasil. Não vêm
apenas daí, tem algumas águas que vêm diretamente dos oceanos, mas grande parte
vem desse processo na Amazônia. Com a destruição da Amazônia e do cerrado nós
temos a fragilização, pelo menos até agora, com o risco da ruptura do ciclo das
águas brasileiras. O desmatamento basicamente atende às madeireiras, a
agricultura e o ciclo do gado.
E a seca histórica que se abateu no país nos últimos tempos? Isso não
seria um fator a ponderar nessa análise?
Há mais fatores além desse processo de fragilização do ciclo das águas.
Nós temos essa seca, que se espalha por todo o território nacional, mas a
dúvida que vai ficando é se as mudanças climáticas estão fazendo com que essa
seca seja uma parte do ciclo histórico das águas, ou se as mudanças climáticas
vão tornar isso cada vez mais constante e mais frequente. Esta última hipótese
é a opinião de muitos especialistas. Aí você tem três fatores: o desmatamento,
com tudo o que acarreta no cerrado e na Amazônia para o ciclo das águas; o
segundo é uma coincidência de uma seca histórica, mas que pode estar sendo
agravada pela própria mudança climática, que é o terceiro fator, que pesa sobre
todo o globo terrestre e que vai ter efeitos diferenciados em cada região do
planeta…
E não dá para saber quanto essa seca é agravada pela mudança
climática...
Não temos noção exata, mas uma coisa é certa. O El Niño, esse fenômeno
que aquece as águas do Pacífico e faz com que chova muito no Sul e Sudeste está
mais severo. A temperatura é mais alta e também as águas do Pacífico estão mais
quentes. É um fenômeno grave que pode ser acelerado e intensificado pelo
aquecimento global.
Por que o sr. Defende que estamos em uma crise civilizatória, se
considerarmos o ponto de vista da questão das águas?
A crise hídrica é uma das expressões de uma crise de civilização. É uma
civilização que demanda mais da natureza do que ela é capaz de repor. O consumo
é muito mais rápido do que o tempo que a natureza precisa para se recompor.
Esse processo é global, de consumo intenso dos combustíveis fósseis, que
provocam o aquecimento global. A derrubada das florestas e das matas no mundo
inteiro também contribui para a liberação de CO2 na atmosfera,
todo esse processo também resulta na mudança e nas alterações do ciclo das
águas.
É o que está acontecendo na Amazônia. Você tem um processo de destruição
da floresta para a entrada do gado, das madeireiras, então, você tem também o
uso intenso da água de uma forma que nós não tínhamos, sobretudo na irrigação,
o uso múltiplo da água, como no Rio São Francisco. É um modelo que está sendo
estendido agora aos territórios do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia, em que o
agronegócio pretende intensificar o cultivo de grãos, e para isso precisa
devastar mais ainda o cerrado – fala-se em mais 160 milhões de hectares. Quando
você devasta o cerrado, você compacta o solo e as águas da chuva já não
penetram no solo, não abastecendo os aquíferos. A crise hídrica não é isolada
da crise climática, do empobrecimento dos solos, nem da erosão da biodiversidade.
Ela faz parte desse processo destrutivo que o modelo civilizatório causa sobre
a natureza.
Quando o modelo de gestão das águas criado por Fernando Henrique Cardoso
tem a ver com a crise que estamos vivendo?
Quando o Fernando Henrique era presidente, ele criou as chamadas
agências reguladoras, entre elas, a das águas. Mas nós já tínhamos uma
legislação, feita inclusive no governo dele. É a Lei 9.433, de 1997, que criou
o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e também criou a
política de águas brasileiras. Depois, por influência dos organismos
internacionais, como do Banco Mundial e do FMI, eles criaram a agência (Agência
Nacional de Águas). Essa agência não estava no sistema, ela foi introduzida
posteriormente. A ideia básica que vinha do governo FHC se reproduz hoje em
dia, porque são as figuras que estão na Sabesp: Kelman (Jerson, presidente
da empresa) e outras figuras que trouxeram para o país essa ideia da
criação do mercado de águas, de as águas serem gerenciadas pelo mercado, o preço
da água, o valor da água, enfim, aquela ideia neoliberal na chamada gestão das
águas.
Só que em minha opinião, esse modelo não foi aceito totalmente, houve
resistências, a água no país continua como um bem da União na Constituição, um
bem público na lei de recursos hídricos; houve resistência porque no Brasil, na
Constituição de 1988, a água continuou como um bem público ou da União. Não
pode ser privatizada, mas houve a tentativa logo no começo de se criar o
mercado de outorgas, concedendo determinado volume para uma empresa, ou para
determinado usuário, e depois se essa água não é utilizada ela volta para o
Estado.
Eles tentaram criar a possibilidade de quem receber uma outorga pudesse
transferir essa outorga para outro usuário, inclusive vendendo. Mas não
conseguiram isso até hoje. A gente vive essa ambiguidade, essa tensão entre a
água como um bem público e a água como um bem privado, com valor econômico,
preço. A gente vive no Brasil essa tensão, e não perdemos totalmente essa
batalha – e eu me coloco do lado da água como bem público –, mas também
corremos o risco constante de que esse viés de interpretação seja viabilizado
por meio de algum mecanismo meio que escuso.
Como se dá a resistência à criação ao mercado de outorgas?
A resistência tem a sociedade organizada, sobretudo, igrejas, ONGs,
sindicatos; e favorável a isso você tem o setor empresarial, que tem os seus
intelectuais orgânicos a serviço dessa ideia. Só que essa experiência deu
errado no mundo inteiro: na Bolívia, Argentina e França.
Em Paris, o serviço de água foi privatizado e depois voltou para o
controle público. Hoje em dia, essa legislação não dá mais conta da realidade,
porque atualmente na questão da crise hídrica você tem a exigência de ter
outros especialistas, você teria de ter gente da climatologia e o modelo que
nós temos, com a Agência Nacional de Águas e o sistema nacional de
gerenciamento de recursos hídricos, eles não trabalham, por exemplo, com a
questão das florestas, dos mananciais, no sentido do ciclo das águas, onde a água
se origina; eles simplesmente pegam aquele manancial que está diante dos olhos,
criam um comitê de bacia, os poderes econômicos disputam aquela água, e depois
se as águas forem federais é a ANA que vai carimbar essa outorga.
Sem ela, as águas federais não podem ser outorgadas. E as águas
estaduais dependem das secretarias de Recursos Hídricos dos estados ou do órgão
correspondente. O que está acontecendo no Brasil hoje é que nós não temos uma
chamada governança hídrica. Os elementos necessários, os especialistas
necessários, inclusive, o poder de decisão necessário para preservar o ciclo
das águas, os mananciais e as áreas que deveriam ter florestas e matas, tudo
isso foi profundamente alterado com o Código Florestal, que destruiu a proteção
aos mananciais. O código necessariamente alterou o regime de proteção do ciclo
das águas brasileiras. Nós estamos pagando o preço por isso e cada vez mais
nessa lógica não há salvação para os rios brasileiros.
A experiência da Sabesp, com gestão voltada à rentabilidade, que nos dá
uma dimensão de como funcionaria o mercado de outorgas, ou sr. não vê relação?
O que foi criado na Sabesp é certa privatização. Embora a empresa ainda
tenha o poder público como acionista, e o restante de capital privado, o fato é
que a empresa começou a distribuir dividendos aos seus acionistas.
Mas essa distribuição de dividendos estaria presente também no mercado
de outorgas?
No caso do mercado de outorgas, vamos supor que na Sabesp em determinado
momento tenha água sobrando em alguns reservatórios. Então, alguma empresa,
algum irrigante ou alguma fábrica diz ‘venda para mim parte de sua outorga, que
vocês estão com água sobrando’. A Sabesp poderia vender essa parcela – ou seja,
trata-se de outro sistema de mercado em que se faz a tentativa da privatização
do serviço de água. Você passa os serviços de água, que às vezes são municipais
e outras estaduais, para empresas privadas que vão gerenciar isso como um
produto qualquer, segundo as leis do mercado.
O sr. é crítico do projetos de transposição do Rio São Francisco. Qual o
maior problema do projeto em sua opinião?
A gente sempre foi crítico desse projeto de transposição, mas ao mesmo
tempo também é favorável que a água seja distribuída para as populações
necessitadas como prioridade, como está na lei brasileira, e nas convenções
internacionais, que é questão de bom senso, que a pessoa e os animais têm
prioridade sobre os demais usos. Então, desde o começo a gente defendia que em
vez de fazer uma grande obra fossem feitas adutoras de médios e pequenos portes
captando água também do São Francisco, mas não precisava ser só dele, por
tubulação e não por imensos canais. Isso já estava no chamado Atlas do
Nordeste, da Agência Nacional de Águas.
Então, em vez de uma megaobra seriam cerca de 500 obras fazendo essa
distribuição. Mas prevaleceu o projeto grande com finalidade duvidosa, porque
ninguém vai fazer uma obra desse porte para o abastecimento humano, e no
próprio projeto dizia que a maior parte era para uso dos setores de irrigação,
com 70% para irrigação, 26% para o meio urbano (e aí leia-se empresas, comércio
e serviços, além do abastecimento humano) e só 4% para a população rural
difusa, que era a mais necessitada no semiárido nordestino – hoje a realidade
dessa população está bastante mudada, com a questão da captação de água de
chuva.
A nossa oposição à obra se dá por conta de seu gigantismo e porque sua
finalidade com certeza não é o abastecimento humano. Se você perguntar para o
governo ele vai dizer que não, mas estava escrito no projeto que a maior parte
é para irrigação. Nossa preferência seria por obras mais simples, com menos
impacto ambiental, com menos perda de água, e com o abastecimento humano como
prioridade. Mas prevaleceu a grande obra e dizem atualmente que estão mais ou
menos 70% da transposição concluída.
Esses são os dados oficiais. A gente acha que esse número não é
verdadeiro, mas eles estão falando que vão colocar essa água em 2017 pelo menos
na Paraíba, que é o chamado eixo Leste, e nós achamos que há uma coincidência
eleitoral nisso, só que agora, do jeito que estamos com a situação do Rio São
Francisco, está faltando água em Juazeiro e Petrolina, na Bahia, para irrigação
local. A Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) deixou de
gerar energia elétrica na barragem de Sobradinho, porque não tem água e nós estamos
propondo um plano de emergência do rio por um ano, junto com o Ministério
Público e estamos propondo que se cancele a geração de energia e grande parte
da irrigação para poder ter água para o abastecimento humano.
A viabilidade da transposição depende muito da situação real do São
Francisco, além do que a obra depende também da tecnologia de elevação dessa
água a 360 metros de altura, do consumo de energia, do preço que essa água vai
chegar do lado de lá e de como será feita a distribuição dessa água. Então, a
obra é questionável, mas é o que está sendo feito, embora o governo tenha feito
depois várias adutoras porque a obra não contempla: teve emergência em Irecê,
na Bahia, onde fizeram uma adutora, e em Guanambi (BA), Ouricuri, no
Pernambuco, e na região de Serra Talhada.
Na prática, foram dando razão ao que a gente defendia e que a Agência
Nacional de Águas tinha proposto. Mas evidentemente a transposição é algo
emblemático, simbólico, e depois que surgiram todas essas questões com
empreiteiras (na Operação Lava Jato) evidentemente ficou muito mais
claro o porquê da opção pela megaobra e não por obras práticas de pequeno e
médio portes, o que resolveria a demanda das populações e o abastecimento
humano.
Bem, de qualquer modo, a obra já está em sua maior parte concretizada e
é agora um dado da realidade. Essa obra para ser eficiente precisa também da
revitalização do São Francisco, pois existe um projeto para isso?
A informação que eu tive do Ministério Público da Bahia é que este ano
foram reservados R$ 500 mil para a revitalização do rio. Ou seja, você está
expandindo o uso do rio, mas a revitalização na prática não existe, a não ser
obras de saneamento, isso pode melhorar a qualidade da água, mas não a
quantidade que seria necessária na bacia. A impressão que eu tenho é que o
governo e o poder econômico abandonaram totalmente a ideia da revitalização. Em
Juazeiro e Petrolina, a mídia local está defendendo a transposição do Rio
Tocantins para o Rio São Francisco. Esse é a pauta da mídia aqui no momento. E
aí a gente diz: ‘De quê adianta?’ Você era um rio que tinha 3 mil metros de
água por segundo e hoje só tem 900. De quê adianta buscar cem ou duzentos
metros de água no Tocantins, se é que isso é viável, quando você perdeu 2 mil
metros cúbicos no São Francisco. Então, você vai de loucura em loucura nesse
modelo que não se sustenta, e agrava cada vez mais a situação da crise hídrica
brasileira.
Mas haverá um momento em que a revitalização do rio São Francisco vai se
impor...
O problema é que para alguns especialistas, inclusive da Universidade do
Vale do São Francisco, como o professor José Alves, e também da Universidade de
Goiás, como o professor Aldair Sales, o rio está esgotado. Eles foram
coordenadores de uma obra monumental chamada Flora das Caatingas do Rio São
Francisco, feita por encomenda do Ministério da Integração Nacional sobre o
impacto dos canais de transposição na biodiversidade das caatingas. E a
conclusão deles, que fizeram percursos de pesquisa diferentes, um sem saber do
outro, é que o São Francisco não tem mais retorno.
A frase que eles usam é que ‘o São Francisco está inexoravelmente
condenado à morte’. E por quê? Porque se trata de um rio que depende do cerrado
e uma vez devastado o cerrado não tem mais volta. Os outros biomas brasileiros
têm capacidade de regeneração, a Amazônia, a própria caatinga tem capacidade de
regeneração, mas o cerrado não, porque ele é um dos biomas mais antigos da
Terra, com cerca de 65 milhões de anos. Então, uma vez eliminado, o cerrado não
volta mais. Diante dessa situação, esses professores, por caminhos diferentes
chegaram à mesma conclusão. E se o cerrado não tem volta, os rios que dependem
do cerrado estão morrendo, não é só o São Francisco.
Em 2004, ainda, a gente tinha informação de 1.200 pequenos afluentes do
São Francisco mortos e sabemos que 90% dos afluentes do rio estão secos em
algum lugar. Corremos o risco de o São Francisco se tornar um rio como outros
do semiárido, que correm no tempo que chove, mas quando passa a chuva ficam
secos, são rios sazonais, ou intermitentes, como a gente chama aqui no
Nordeste. Parece que o destino do São Francisco, segundo esses especialistas, é
que ele se torne também um rio intermitente.
Tragédia ambiental: lama tóxica da mineradora Samarco mata o Rio Doce
Tragédia ambiental: lama tóxica da mineradora Samarco mata o Rio Doce
Como o sr. vê a situação do Rio Doce depois do rompimento das barragens
de rejeitos da mineradora Samarco?
Isso segue a mesma lógica dos outros rios. O modelo econômico parece que
tem ódio, eu diria, um ódio entre aspas, de florestas e rios. Não se sabe
conviver. Quando eu passava pelo Rio Doce, eu sempre achava ele muito mais
devastado do que o São Francisco. Ele era muito mais assoreado, com a lâmina de
água mais rasa e suas águas muito mais contaminadas. Eu já tinha passado nessas
barragens de contenção de rejeitos de mineração, mas achava que eram algumas
barragens e agora se fala em mais de 500 barragens e o cuidado como foi
mostrado ali é totalmente inexistente. Até que a barragem estourou e cumpriu
todo o percurso do Rio Doce, indo até a foz em um processo de devastação sem
precedentes.
No São Francisco você tem também muitas lagoas de rejeitos de mineração.
A pergunta que a gente faz é ‘vai saber em que situação essas barragens estão’?
Qual risco real elas oferecem para os rios brasileiros, sobretudo essas barragens
de contenção de mineração? Isso já aconteceu em outros momentos, aconteceu na
Bacia do Paraíba anos atrás e agora no Rio Doce e provavelmente, pela situação
que está sendo levantada, pode acontecer em qualquer rio, a qualquer momento,
desde que você tenha mineração na bacia do rio em questão. Vamos dizer assim,
do ponto de vista civilizacional brasileiro, eu vejo isso como perfeitamente
lógico, natural, consequente com a mentalidade que impera no trato com os
nossos rios e florestas.
O sr. defende com bastante veemência que o primeiro passo seria
restaurar o ciclo das águas, por meio de suas nascentes, reverter o
desmatamento e tudo mais. É isso mesmo, seria preciso deixar a natureza
respirar um pouco?
Isso vem inclusive dos nossos climatologistas do INPE, da USP, as
pessoas que têm uma noção de como o ciclo das águas acontece e como a natureza
cobra respeito. Uma vez ferida, machucada, ela vai tomar outros caminhos que a
gente nunca sabe exatamente quais. Quando foi feito o Código Florestal, não era
para deputado definir qual é a área de preservação de cada manancial. Isso é a
natureza que diz. Você tem no São Francisco lagoas que ficam a sete, oito
quilômetros da margem do rio, quer dizer, quando você define que o São
Francisco vai ter 100 metros de matas ciliares…
Quem é você para definir algo que é a natureza que define? Você tem de
fazer um estudo caso a caso, rio a rio, aquífero a aquífero, para saber qual é
a área de recarga de cada um desses recursos. Qual é a área de proteção
ambiental de cada nascente, em cada cabeceira de rio, trata-se de respeitar
esses processos naturais, que evidentemente não obedecem à ordem da propriedade
privada e nem à ordem decretada pelos deputados.
Os processos naturais são autônomos em relação ao que o ser humano define.
O professor Antonio Nobre diz que a gente precisaria ter uma verdadeira
economia de guerra para você poder dar um descanso para a natureza, para ela
poder se refazer. Temos de aprender a lidar com esses processos naturais de uma
forma mais respeitosa. Eu costumo lembrar que quando Pero Vaz de Caminha chegou
no Brasil e escreveu aquela carta ele disse aquela frase: ‘neste país em se
plantando tudo dá’, mas a frase não termina aí, tem um complemento: ‘neste país
em se plantando tudo dá por conta das muitas águas que ele tem’.
Esse detalhe do complemento da frase foi esquecido. Nós que já fomos o
país com mais água em termos de abundância, com a maior malha de rios do mundo,
hoje é preciso colocar em dúvida tudo isso. A NASA disse há poucos dias, e isso
me chamou a atenção, que o Sudeste perdeu cerca de 53 bilhões m3 de
água e nós aqui no Nordeste perdemos nos últimos anos cerca de 49 bilhões m3.
Em um processo devastador como esse nós vamos ter crise hídrica permanente em
muitas regiões do país. (ecodebate)
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