sábado, 23 de abril de 2016

O naufrágio do delta do Nilo e da cidade de Alexandria

O pensador grego Heródoto fez uma observação que se tornou clássica: “O Egito é uma dádiva do Nilo”. Foram as águas férteis do rio Nilo que possibilitaram o florescimento da antiga civilização egípcia que começou por volta de 3.200 a.C., com a unificação do norte e sul do país pelo faraó Narmer. As águas do rio Nilo eram utilizadas para o consumo individual, para pescar e também fertilizar as margens nas épocas de cheias, favorecendo a agricultura. Além disto o rio era utilizado como via de transporte de mercadorias e pessoas, inclusive como meio de deslocamento do material para construção das pirâmides e outros monumentos que se tornaram históricos.
Ao longo de uma extensa faixa que corta todo o Egito de Sul a Norte existe uma área verde às margens do rio Nilo que garante a produção agrícola. Mas é principalmente ao norte da cidade do Cairo que o Nilo se abre em um leque fertilizando um amplo território que é a base da produção de alimentos do país. Portanto, por mais de 5 mil anos o povo egípcio tem se beneficiado do fluxo e refluxo do seu fundamental rio e o delta do Nilo é a área mais fértil do país.
Porém, a despeito de todo este passado, a disponibilidade hídrica está ameaçada no século XXI. As mudanças climáticas e o crescimento das atividades antrópicas podem comprometer a sustentabilidade da produção agrícola e até a viabilidade de certas áreas urbanas.
O crescimento da economia e da população (atividades antrópicas) não é a única razão para o estresse hídrico, mas certamente contribuiu muito para agravar a situação. O Egito tinha uma população por volta de 10 milhões de habitantes em 1900 passou para 21,5 milhões em 1950, aumentou para 81,1 milhões em 2010, dobrando na primeira metade do século XX e quase quadruplicando de tamanho nos 60 anos seguintes. A divisão de população da ONU estima, para o ano de 2050, uma população de 123,5 milhões na hipótese média, em 2050. A economia cresceu num ritmo mais elevado, aumentando a demanda de água na agricultura, na indústria e no setor de serviços.
Mas a demanda por água do Nilo não vem apenas dos egípcios. A bacia hidrográfica do rio Nilo, abrange uma área de 3.349.000 km² e já não dá conta de abastecer as populações dos 10 países que, em maior ou menor proporção, dependem de suas águas. A população conjunta de Uganda, Tanzânia, Ruanda, Quênia, República Democrática do Congo, Burundi, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Egito era de 84,7 milhões de habitantes em 1950, passou para 411,4 milhões em 2010, devendo chegar a 877,2 milhões em 2050 e 1,3 bilhão de habitantes em 2100, segundo dados da divisão de população das Nações Unidas. Os problemas de fome, perda de biodiversidade e pobreza humana e ambiental são cada vez mais graves na região. A capacidade de carga da bacia hidrográfica do rio Nilo já não está suportando a demanda da população atual e suas necessidades econômicas. Já existem diversos conflitos pela disputa da água entre os povos e os países. Também já existem multidões de deslocados ambientais e eco refugiados decorrentes da deterioração das condições do solo, da seca, do desmatamento, da poluição e das mudanças climáticas.
A construção da represa de Assuam, no alto Egito, visava regular as enchentes e produzir energia. Planejada pelo Presidente Nasser na década de 1950 e financiada pela antiga URSS e concluída em 1970, pretendia modernizar a agricultura e possibilitar a industrialização do país. A meta era irrigar milhões de quilômetros quadrados de deserto e obter energia barata para industrialização. Mas os resultados foram desastrosos para o meio ambiente. O represamento da água mudou a composição do silte (fragmentos de rocha ou partículas detríticas menores que um grão de areia), da argila, do limo (material orgânico composto por algas) que se depositavam nas margens do rio durante as cheias. Mas ela impediu o afluxo de 120 milhões de toneladas de lama que se acumulavam no delta do Nilo e fertilizava a região mais produtiva do país. A retenção dos sedimentos na represa e o aumento da demanda por água esvaziou o fluxo hídrico que chega ao mar, afundando lentamente o delta do Nilo. Além do mais, a represa não enchia totalmente nem nas cheias, pois parte da água infiltra no subsolo. Para piorar, isso aumentou a necessidade de fertilizantes industriais importados, prejudicando a qualidade dos alimentos e afetando a balança comercial do Egito.
Para piorar a situação a Etiópia – que também tem necessidades crescentes de água – está planejando a construção de uma barragem para estocar água, produzir energia e irrigar suas plantações. A barragem de Renaissance, na Etiópia, enfrenta a oposição do Egito e do Sudão. Atualmente o Egito recebe cerca de 55 milhões de metros cúbicos de água do Nilo a cada ano através de acordos que tinha assinado com o Sudão e a Etiópia, em 1959. Mas os tempos mudaram, as populações cresceram e as necessidades de energia da região têm ultrapassou o seu desejo de manter contratos antigos. Ou seja, a guerra pela água se intensifica e deve se agravar ainda mais no futuro, enquanto os danos das barragens vão causando desastres ambientais.
De fato, o Nilo tem sofrido não só com a maior demanda de água, mas também com o péssimo manejo dos recursos hídricos e com a poluição dos esgotos e do lixo. O aumento da poluição diminuiu a disponibilidade de água potável para as populações humanas e não humanas. Vários canais do Nilo viraram esgoto e línguas negras que matam a vida fluvial.
Depois de 5 mil anos da unificação do Egito e da utilização das águas do rio Nilo para o crescimento de sucessivas civilizações, o país vive uma perigosa situação de estresse hídrico. Para piorar o quadro geral, existe o problema conjunto do naufrágio do delta e do aumento do nível do mar. Artigo de James Syvitski e coautores, “Naufrágio dos deltas devido às atividades humanas” (Sinking deltas due to human activities), publicado na Revista Nature Geoscience, em 2009, mostra como o delta de vários rios importantes do mundo estão afundando devido às atividades antrópicas. O Egito, particularmente, sofre com a diminuição das áreas férteis de seu delta.
Já o estudo de Dutton el al (2015), publicado na revista Science, mostra que mesmo se o Acordo de Paris, aprovado na COP-21, conseguir limitar o aquecimento global a 2ºC, o nível do mar pode subir pelo menos 6 metros acima de suas alturas atuais, no longo prazo, reformulando radicalmente o litoral do mundo. Estudo recente publicado na revista “Proceedings, da Academia Nacional de Ciências”, dos Estados Unidos, mostrou que os oceanos aumentaram 14 centímetros no século XX. O mar subiu mais rápido no século XX do que nos 3.000 anos anteriores. Mas até 2100, o nível dos oceanos subirá entre 28 a 131 centímetros, dependendo de quantos gases do efeito estufa serão produzidos por veículos e indústrias do planeta, como disse o coautor do estudo, Ben Horton.
A elevação do nível do mar já tem ajudado a impulsionar o aumento de inundações e os danos causados por tempestades, como o Furacão Sandy e o Tufão Haiyan, além de aumentar drasticamente os danos da maré alta na agricultura e nas áreas urbanas. As projeções mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam que o nível do mar poderá subir outros 39 cm até o final do século XXI.
Assim, a situação do Egito tende a ficar crítica com o naufrágio do delta do Nilo e o aumento do nível do mar. Este duplo desafio vai reduzir necessariamente a disponibilidade de terras para o cultivo da agricultura e a produção de alimentos. Artigo de Juan Cole (10/12/2012) mostra um aumento de um metro no nível do mar inundará uma grande parte do fértil delta do Nilo, deslocando pelo menos 10% da população do país e levando água salgada ao atual celeiro do país, como mostra a figura abaixo:
Artigo de Sterman (Julio 2009) mostra que o aumento de apenas 25 cm no nível do mar devastaria as cidades populosas que impulsionam a economia do Egito. Por exemplo, a cidade de Alexandria – que foi fundada por Alexandre, o Grande, no ano de 332 antes de Cristo – sofreria impactos devastadores, pois a cidade atualmente tem uma população em torno de 5 milhões de habitantes e concentra 40% da indústria egípcia. Um aumento de 0,25 metros no nível do mar deslocaria 60% da população de Alexandria, assim como 56,1% do setor industrial de Alexandria. Um aumento de 0,5 metros seria ainda mais desastroso, colocando 67% da população, 65,9% do setor industrial, e 75,9% do setor de serviços abaixo do nível do mar. Na mesma linha, artigo de Linn (15/11/2015), confirma as previsões acima e mostra que o comércio exterior do Egito seria abalado, pois Alexandria é o principal portão de entrada das importações e de saída das exportações.
O litoral de Alexandria já sofre com os efeitos do aquecimento global e o aumento do nível do mar. As praias da cidade, que eram utilizadas de diversas maneiras desde o tempo de Alexandre, já desapareceram e na maré alta o mar atinge as avenidas litorâneas da cidade. Nos momentos de chuva forte não há mais escoamento adequado das águas e os alagamentos se tornam rotina. Com isto vários prédios foram abandonados e muitos investimentos deixaram de ser realizados.
Cinco mil anos de história do Egito podem estar ameaçados pelo naufrágio das áreas costeiras, pelo aumento do nível do mar, pela salinização dos terrenos férteis e pela inundação das cidades costeiras. A cidade de Alexandria teve a maior e mais importante biblioteca da antiguidade. Atualmente uma nova biblioteca foi construída. Mas assim como a outra, pode desaparecer. A NASA informou que a temperatura de janeiro de 2016 ficou 1,13°C acima da média do século XX e o mês de fevereiro bateu todos os recordes ficando 1,35 grau acima da média do século XX. O gelo do Ártico atingiu o seu menor nível em 2016.
Portanto, o naufrágio dos deltas dos rios é global e deve atingir, de uma maneira ou de outra, todos os países do mundo. E são as populações mais pobres dos países mais pobres que vão sofrer os maiores impactos negativos. (ecodebate)

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