A tradicional indústria da seca permite que o sertanejo morra de sede
com água no joelho.
“Qual a explicação para no Nordeste semiárido se disponibilizar água
para irrigação durante um evento com criticidade secular? Ou se tem muita água
– ao contrário do que se propaga, ou não se tem gestão, ou as duas coisas”,
afirma o engenheiro hidráulico.
A atual seca no Nordeste – NE Setentrional brasileiro “tem posto em xeque o sistema de gestão dos recursos hídricos”, e na parte interiorana do Rio Grande do Norte “se repete o quadro de colapso generalizado do abastecimento de água retratado no semiárido brasileiro, apesar de atualmente constatarem-se reservas substanciais de água para atender plenamente o abastecimento de água de toda população do Estado”, diz João Abner Guimarães à IHU On-Line.
A atual seca no Nordeste – NE Setentrional brasileiro “tem posto em xeque o sistema de gestão dos recursos hídricos”, e na parte interiorana do Rio Grande do Norte “se repete o quadro de colapso generalizado do abastecimento de água retratado no semiárido brasileiro, apesar de atualmente constatarem-se reservas substanciais de água para atender plenamente o abastecimento de água de toda população do Estado”, diz João Abner Guimarães à IHU On-Line.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail, Guimarães
informa que a “abordagem governamental” diante da seca tem sido “a
tradicional”, ou seja, “os governos municipais e estaduais, após decreto de
emergência, se livram das suas responsabilidades, levando a uma dependência
quase que total das políticas
governamentais aplicadas na região
semiárida pelo governo federal, que se desenvolvem com dois tipos de abordagem:
as ações emergenciais precárias de abrangências locais e as macropolíticas que
pouco enxergam as diversidades regionais”. Segundo ele, entre as políticas
desenvolvidas, “contraditoriamente, assegura-se 100% de garantia” de
abastecimento “para os maiores projetos de irrigação, enquanto faltam meios
(sistemas adutores de grande porte) para assegurar essa mesma garantia ao
consumo humano das pequenas e médias cidades que são abastecidas pelos
reservatórios menores”.
Para
João Abner Guimarães, a atual gestão dos recursos hídricos na região está relacionada à história da indústria das secas, que tem “promovido o desenvolvimento insustentável
na região”. Além da prioridade da irrigação em larga escala, o pesquisador
afirma que “desde o Império a política hidráulica do governo federal permanece a mesma no NE como uma reserva de mercado do parque da indústria da
construção civil pesada do Brasil, que tem como principal interesse o
desenvolvimento de projetos de obras hídricas tradicionais, tais como a
construção de grandes açudes e canais, seguindo um plano interminável de obras
em que, com a limitação de locais para a construção de novos açudes, as
transposições dão continuidade”.
João
Abner Guimarães é doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento, professor nos
cursos de Engenharia Sanitária e Engenharia Civil da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte – UFRN. Sobre a transposição do Rio São Francisco, publicou
diversos artigos, tais como A transposição do Rio São Francisco e o Rio Grande do
Norte, O lobby da transposição e O mito da transposição.
IHU
On-Line - Qual é a
situação da seca no Rio Grande do Norte neste momento?
João
Abner Guimarães - O Rio
Grande do Norte apresenta-se em
melhor situação comparativamente aos outros estados do NE Setentrional – compreendido entre os rios São Francisco e Parnaíba -, tendo em vista que a maior parte (60%) da sua
população urbana situada no litoral leste, onde se encontra a região
metropolitana de Natal, e a região intermediária agreste é abastecida por
sistemas hídricos do litoral pouco afetado pela seca. O mesmo acontece com a
metade da população restante que é atendida por sistemas adutores de grande
porte, que captam água dos maiores e mais seguros reservatórios do interior do
Estado.
Por
outro lado, apenas na parte interiorana do Estado, que não é atendida por
sistemas adutores de maior porte, é que se repete o quadro de colapso
generalizado do abastecimento de água retratado no semiárido brasileiro, apesar
de atualmente constatarem-se reservas substanciais de água para atender plenamente
o abastecimento de água de toda população do Estado.
IHU
On-Line - O que
tem mudado na região por conta dessa seca?
João
Abner Guimarães - Infelizmente, a abordagem governamental é a tradicional, os
governos municipais e estaduais, após decreto de emergência, se livram das suas
responsabilidades, levando a uma dependência quase que total das políticas
governamentais aplicadas na região semiárida pelo governo federal, que se desenvolvem com dois tipos de abordagem:
as ações emergenciais precárias de abrangência locais e as macropolíticas que
pouco enxergam as diversidades regionais.
IHU
On-Line - Pode nos
dar um panorama de como a seca castiga os diferentes estados do Nordeste?
João
Abner Guimarães - Vou me restringir aos estados do NE Setentrional, já citado, onde a seca
atinge fortemente e generalizadamente as atividades agropecuárias de sequeiro,
dependentes das chuvas e o abastecimento humano rural difuso e das pequenas e
médias cidades, demonstrando a falência do modelo atual de abastecimento de água individualizado sustentado em reservas locais. Fato
esse comprovado pelo emprego generalizado de carros-pipas, em número recorde,
atualmente na Região.
Então,
a solução passa pela implantação de sistemas adutores de grande porte que
captem água das reservas permanentes e mais seguras disponíveis. Para isso, os
estados apresentam-se com potenciais distintos: Pernambuco
tem o rio São
Francisco correndo ao longo do seu
território; Ceará detém 50% do potencial de armazenamento de água e os
maiores reservatórios da região; no coração da seca do Rio Grande do Norte, no sertão central, é onde se concentram as maiores
reservas de água e a maior disponibilidade per capita do Estado. Portanto,
pode-se afirmar que esses três estados têm comprovada autossuficiência global
de água para distribuição em condições sustentáveis. Entretanto, o quadro da Paraíba reconhecidamente é o mais crítico da Região,
apresentando-se com o menor potencial hídrico efetivo da Região, o que, em
tese, justificaria a importação de água de outros estados notadamente para
atender as demandas concentradas na bacia do rio Paraíba decorrentes do
abastecimento de água de Campina Grande, a segunda maior cidade do Estado.
“A questão central da gestão de recursos hídricos é como assegurar o uso prioritário do consumo humano frente aos usos hidroagrícolas sustentados pelos maiores reservatórios”
“A questão central da gestão de recursos hídricos é como assegurar o uso prioritário do consumo humano frente aos usos hidroagrícolas sustentados pelos maiores reservatórios”
IHU
On-Line - Como é
feita a gestão dos recursos hídricos nos diferentes estados do Nordeste?
João
Abner Guimarães - A seca
atual tem posto em xeque o sistema de gestão dos recursos
hídricos da Região NE. As instituições diretamente responsáveis, os órgãos
gestores executivos, tanto em nível federal como estadual, têm assumido uma
postura secundária na condução e coordenação das ações emergenciais da seca
conduzidas pela defesa civil e pouco se vê o envolvimento dos comitês de bacia
no exercício do papel moderador dos conflitos em épocas extremamente críticas
como a atual. Uma outra contradição é a ausência de debates e mobilizações
populares para analisar e apontar solução para os graves problemas da seca
atual.
IHU
On-Line - Como se
dá a gestão dos recursos hídricos em períodos de seca como o que se vive hoje
na região? O modo como é feito o abastecimento de água é sustentável?
João
Abner Guimarães - A questão central da gestão de recursos hídricos é como assegurar o uso prioritário do consumo humano frente aos usos hidroagrícolas sustentados pelos
maiores reservatórios, tais como o Castanhão
(CE) e Armando
Ribeiro (RN). Hoje, a quase
totalidade dos municípios abastecidos por carro-pipa se encontram desconectados
desses maiores reservatórios.
Contraditoriamente,
assegura-se 100% de garantia para os maiores projetos de irrigação, enquanto
faltam meios (sistemas adutores de grande porte) para assegurar essa mesma
garantia ao consumo
humano das pequenas e médias
cidades que são abastecidas pelos reservatórios menores.
Uma
das principais lições dessa seca secular é a constatação da plena capacidade de
atendimento dos usos
prioritários humanos no Ceará e no Rio Grande do Norte; para isso não falta água, claro, desde que se
restrinjam os usos menos prioritários estabelecidos na Lei 9.433. Fato esse que não acontece nesses estados com
relação aos grandes irrigantes, ao contrário dos pequenos, que estão sendo
perseguidos.
Esse
quadro, por si só, aponta falência do sistema de gestão dos recursos hídricos do NE e como exemplo emblemático a experiência do Ceará se sobressai. Mesmo ameaçado pela falta d’água para o
consumo humano de Fortaleza, o governo do Ceará vinha oferecendo água em larga
escala para a irrigação, apesar da seca secular, contrariando a sua própria
política de recursos hídricos baseada no parâmetro Q90+, regulado por níveis de alerta nos açudes para
assegurar água para irrigação até que o evento com criticidade de 20 anos de
período de retorno seja atingido, no caso atual já muito superado.
Então,
qual a explicação para no NE semiárido se
disponibilizar água para irrigação durante um evento com criticidade secular?
Ou se tem muita água – ao contrário do que se propaga, ou não se tem gestão, ou
as duas coisas.
IHU
On-Line - O senhor
tem defendido em alguns debates a implementação da Lei das Águas no Nordeste.
Em que consiste sua proposta e de que modo isso ajudaria a resolver o problema
de gestão hídrica na região?
João
Abner Guimarães - Em 100 anos de história, a indústria das secas tem promovido o desenvolvimento insustentável na
Região, priorizando a irrigação em larga escala numa região semiárida bastante
populosa, como é o caso atual no CE e RN. Dessa forma, o problema não é legal, mais sim
institucional. Está em xeque o sistema gestor da Região, no caso, a Agência Nacional de Águas –
ANA, responsável pela operação dos
grandes açudes federais e os comitês de bacia.
IHU
On-Line - Que
relações o senhor estabelece entre a indústria da construção civil e a
manutenção da seca em regiões do Nordeste?
João Abner Guimarães - O tempo passa e desde o
Império a
política hidráulica do governo federal permanece a mesma no NE como uma reserva de mercado do parque da
indústria da construção civil pesada do Brasil, que tem como principal
interesse o desenvolvimento de projetos de obras hídricas tradicionais, tais
como a construção de grandes açudes e canais, seguindo um plano interminável de
obras em que, com a limitação de locais para a construção de novos açudes, as
transposições dão continuidade. Essa é a verdadeira indústria das secas no Brasil.
“Uma
das saídas para o enfrentamento da problemática das secas no NE passa pela
melhoria dos sistemas de abastecimento de água da região, investindo-se no
setor de produção, que inclui captação, tratamento e adução até as cidades”
IHU
On-Line - O senhor
é um defensor de novos sistemas de adutores. Quanto e como deveria se investir
nesse sistema para garantir o abastecimento de água em períodos de seca como
esse?
João
Abner Guimarães - No meu estado (RN) o sertanejo
morre de sede com água no joelho. A Região Central, que possui a maior
disponibilidade per capita de água, superficial e subterrânea, cerca de o dobro
da do estado, sofre um quadro generalizado de colapso dos sistemas de
abastecimento das cidades sustentados em reservatórios de porte médio locais.
Paradoxalmente,
a Companhia de
Água do Estado – CAERN encontra-se
paralisada aguardando o socorro do governo federal, apesar de a experiência
mostrar que soluções relativamente simples e baratas de sistemas adutores de
porte médio seriam perfeitamente viabilizadas pelo autofinanciamento do
consumidor local.
Creio
que uma das saídas para o enfrentamento da problemática das secas no NE passa
pela melhoria dos sistemas de abastecimento de água da região, investindo-se no
setor de produção, que inclui captação, tratamento e adução até as cidades. A
experiência atual mostra que a fragilidade do sistema se encontra nesse setor,
apesar de, em regra, não faltar água para o abastecimento humano.
Portanto,
atualmente, o grande desafio é a captação dos recursos financeiros necessários
para os investimentos urgentes na implantação dos novos sistemas produtores
e/ou adutores num ambiente de escassez de recursos governamentais cada vez
maior.
Por
outro lado, o elevado custo da água suplementar arcado pela população demonstra
grande rentabilidade e capacidade de autofinanciamento do setor, justificando a
busca de parcerias público-privadas para melhorar os serviços públicos de
abastecimento de água, fugindo-se, dessa forma, da disputa na vala comum dos
parcos recursos emergenciais disponibilizados pelo governo federal no momento
atual, sem passar necessariamente pela privatização do setor. Sendo essa,
talvez, a principal lição que poderíamos tirar dessa terrível seca que, antes
de tudo, revelou a fragilidade do setor estatal de abastecimento de água da
região. (ecodebate)
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