Entidades e especialistas alertam: a fome pode voltar a ser
um dos principais problemas do país.
A gente também quer comida
O diagnóstico
“Se o Brasil não conseguir retomar o crescimento econômico, gerar empregos de qualidade e ter um programa de segurança alimentar voltado especificamente para as zonas mais deprimidas, nós podemos, infelizmente, voltar a fazer parte do Mapa da Fome”. A declaração do brasileiro José Graziano, diretor-geral da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, feita em novembro em entrevista ao UOL, ecoou o alerta feito meses antes por mais de 20 entidades brasileiras da sociedade civil em um documento apresentado em julho na sede da ONU, em Nova Iorque.
O diagnóstico
“Se o Brasil não conseguir retomar o crescimento econômico, gerar empregos de qualidade e ter um programa de segurança alimentar voltado especificamente para as zonas mais deprimidas, nós podemos, infelizmente, voltar a fazer parte do Mapa da Fome”. A declaração do brasileiro José Graziano, diretor-geral da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, feita em novembro em entrevista ao UOL, ecoou o alerta feito meses antes por mais de 20 entidades brasileiras da sociedade civil em um documento apresentado em julho na sede da ONU, em Nova Iorque.
O grupo
monitora o cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030,
dentre as quais está a erradicação da fome e a diminuição da pobreza. O texto
afirma que “o país saiu da rota” com o “enfrentamento equivocado do déficit
fiscal” e o “descaso” com questões estruturais como a reforma tributária. Diz
ainda que a Emenda Constitucional 95, aprovada no fim de 2016 com o propósito
de congelar os gastos sociais por 20 anos no país, aliada às mudanças na
legislação trabalhista e à agenda da reforma previdenciária, poderão impedir o
acesso aos alimentos pelos mais pobres, agravando o cenário de insegurança
alimentar.
“O
relatório faz uma advertência. Embora não existam pesquisas oficiais
atualizadas mostrando que a fome voltou ao Brasil, os indícios são
contundentes. A crise econômica atingiu em cheio a população mais pobre. E a
correlação entre pobreza e fome é muito forte”, explica o economista Chico
Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
(Ibase) e da ActionAid, que participou da elaboração do documento. O alerta
abriu caminho para que veículos nacionais e estrangeiros fossem às periferias
de grandes cidades, constatando que é comum encontrar famílias que não sabem o
que vão comer no dia seguinte.
Todos os
anos, desde 1990, a FAO mapeia a situação da segurança alimentar da população
mundial, fazendo diagnósticos por regiões e países. O Brasil saiu pela primeira
vez da lista em 2014. O relatório se apoiou em dados da Pesquisa Nacional por
Amostras de Domicílios (Pnad), que aplica de cinco em cinco anos a Escala
Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), cujo grau mais extremo é a fome. A
última pesquisa, feita em 2013, constatou que o número de pessoas que declarou
viver em insegurança alimentar grave tinha chegado a 3,2% – ou 7,2 milhões de
habitantes. O número é a metade do resultado obtido dez anos antes (6,5%),
quando a Ebia começou a ser aplicada, em 2004. Um país com mais de 5% da população
subalimentada entra no Mapa da Fome.
Depois de
dez anos, a Ação da Cidadania, que foi responsável nos anos 1990 pela
mobilização da sociedade brasileira no enfrentamento do problema, relançou a
campanha Natal sem Fome. Procurada pela Poli, a assessoria de imprensa da ONG
explicou que a iniciativa se deve ao termômetro dos mais de 250 comitês
espalhados por 18 estados brasileiros e à própria mídia. Também pela primeira
vez na década, a fome voltou a crescer no mundo: segundo a FAO, 815 milhões de
pessoas vivem em insegurança alimentar grave. De acordo com o organismo
internacional, a piora se deve a conflitos armados e à crise econômica.
A polêmica
da distribuição da farinata, um composto feito com alimentos próximos do
vencimento ou fora dos padrões de comercialização, em São Paulo colocou de vez
os holofotes sobre o tema. Na opinião de especialistas ouvidos pela Poli, o
país corre o risco de ser incluído novamente no Mapa da Fome. O diagnóstico
parte de números, evidências empíricas e elementos da conjuntura.
Os
levantamentos oficiais sobre insegurança alimentar vão até 2015, justamente
quando, segundo diversas pesquisas, a crise econômica iniciada no ano anterior
começou a atingir em cheio a população. “Trabalhamos com os últimos dados públicos,
o que traz uma limitação nesse acompanhamento porque fica defasado no tempo.
Mas nos baseamos, de um lado, nas informações da Pnad Contínua do IBGE que
mostra que o desemprego está atingindo fortemente as camadas pobres da
população, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. E, por outro lado,
olhamos para a resposta do governo federal, que está descontinuando justamente
aquelas políticas que foram fundamentais para o Brasil sair do Mapa da Fome”,
afirma Chico Menezes.
“Desde
antirreformas, como a trabalhista, à proposta do orçamento federal para 2018, o
ajuste está reverberando nas políticas que tiveram um papel importante para o
país sair do Mapa da Fome”, concorda a socióloga Maria Emília Pacheco,
assessora nacional da Fase, a Federação de Órgãos para Assistência Social e
Educacional, entidade que desde os anos 1970 acompanha o tema. “Não temos dados
atualizados, mas se andarmos pelas ruas nas grandes cidades, mesmo nas
pequenas, temos uma evidência empírica: mais pessoas estão pedindo comida,
pedindo dinheiro. E se olharmos o que está se passando no campo, podemos
concluir que a fome está rondando novamente o país”, reforça.
Os últimos
dados da Pnad Contínua, divulgados no final de novembro, indicaram que metade
dos trabalhadores brasileiros tem renda mensal inferior a um salário mínimo.
São 44,5 milhões de pessoas que receberam em 2016, em média, R$ 747. O Nordeste
exibe o pior quadro, com um rendimento mensal médio de apenas R$ 485, muito
abaixo do mínimo, que está em R$ 937. Só no Sul a renda mensal supera o mínimo
(R$ 949). Em 2015, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, voltou a
crescer o número de famílias com rendimento per capita inferior a 25% do
salário mínimo, a chamada pobreza extrema. Isso aconteceu após quatro anos de
queda.
No início
de 2017, o país chegou a 14,2 milhões de trabalhadores desempregados, um
recorde. De lá para cá, houve melhora: em outubro, o número baixou para 12,7
milhões. Porém, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o ano
vai fechar com a maior taxa de desemprego entre jovens desde 1991. O organismo
estima que o desemprego deve atingir 30% dos jovens, mais que o dobro da média
internacional, que está na faixa dos 13%. O número brasileiro se equipara com o
da Síria (30,6%), país que está há seis anos em guerra civil. Entre 2004 e
2014, a taxa brasileira estava em torno dos 16%.
“Estamos em
um momento de crise aguda. Certamente a insegurança alimentar aumentou porque
aumentou o desemprego, caiu a renda familiar, temos três anos de recessão”,
enumera a economista Lena Lavinas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), para quem, contudo, é preciso olhar de forma crítica também para o
passado recente: “As pessoas não estão se alimentando adequadamente porque os
alimentos são caros, porque não há política social para subsidiar o transporte
e a moradia e, portanto, as pessoas gastam uma parcela importante da sua renda
com compra de alimentos. E elas vão cortar aí pois não podem deixar de pagar
aluguel, ou pegar transporte porque têm que sair em busca de emprego. Tudo está
associado. E é o perfil restritivo, focalizado, inadequado da política social
que também gerou essa realidade porque, se não, a gente fica achando que antes
estava tudo bem. Não estava tudo bem, esse é o ponto”.
Idas e vindas
Os
especialistas ouvidos pela Poli se dividem entre aqueles que consideram que
houve uma inflexão no combate à fome no país através de avanços institucionais
que estão sendo desmontados com velocidade pelo governo e pela coalizão que
apoia Michel Temer, e quem acredita que os governos do PT fizeram muito menos
do que poderiam ter feito – e que, justamente por terem sido construídas sobre
bases frágeis, as conquistas nesse plano podem não só ser perdidas como
questionadas. Todos concordam num ponto: em um país desigual como o Brasil,
ainda havia um caminho longo a ser trilhado em direção à segurança alimentar e
nutricional da população.
Para
entender o debate da fome hoje, é preciso refazer alguns desses passos. Embora
já no fim do século 19 tenham surgido estudos que se debruçaram sobre como se
alimentavam os brasileiros pobres e quais as doenças relacionadas à carestia, o
governo federal só começou a endereçar o problema nos anos 1930, sob o embalo
internacional – o termo ‘segurança alimentar’ foi criado no contexto das
preocupações sobre a soberania dos países geradas pela Primeira Guerra Mundial
– e nacional. Isso porque as pesquisas conduzidas por um médico pernambucano
chamado Josué de Castro, que viria a presidir a FAO, mostraram que as famílias
operárias gastavam muito da sua renda, cerca de 70%, para se alimentar mal e
pouco. A dieta, pobre em vitaminas e sais minerais, era uma das grandes
responsáveis pela alta mortalidade e baixa expectativa de vida da população.
Segundo o pesquisador Francisco Vasconcellos, da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), a repercussão da descoberta serviu de base para a
regulamentação da lei do salário mínimo, instituído por Getúlio Vargas.
Desde
então, muitos programas de combate à fome foram criados para, em seguida, serem
extintos pelo governo de ocasião. A ação do Estado brasileiro se materializou
em ações pontuais e emergenciais. “Temos um passado longo em que se fala no
combate à fome. Não podemos nunca esquecer o que representou a luta do Josué de
Castro. Mas se a gente for pensar do ponto de vista das políticas públicas, o
que predominou na nossa história foram medidas paliativas e assistencialistas”,
avalia Maria Emília.
Na leitura
de Chico Menezes, não se pode subestimar um fator subjetivo: “Até a década de
1990 havia uma crença generalizada de que a fome era uma fatalidade. Como se o
país estivesse condenado para sempre a ter gente passando fome. Embora autores
como Josué de Castro advertissem que a fome era o resultado de políticas
públicas, ainda persistia a ideia de que não tínhamos como lutar contra isso”.
Também no plano ideológico, durante muito tempo prevaleceu, inclusive em
organismos internacionais como a FAO, a ideia de que o problema da fome tinha
raiz na produção de alimentos. Uma vez que a agricultura desse um salto de
produtividade – que, segundo essa lógica, teria de acontecer com o uso de
insumos, agrotóxicos, sementes transgênicas, monoculturas, mecanização – a fome
no mundo teria fim.
Foi assim
que o Brasil chegou aos anos 1990 com uma população de 32 milhões de pessoas
passando fome, um número que, na época, equivalia a toda a população da
Argentina. A constatação foi feita pelo primeiro estudo amplo feito no país
sobre a questão, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 1993,
que destacou a contradição: a produção de alimentos do país era “superior às
necessidades diárias de calorias e proteínas” dos brasileiros. Logo, o problema
não estava na quantidade de alimentos produzidos, mas na sua lógica de produção
e distribuição, assim como na barreira fundamental ao seu acesso: a renda.
Novamente, a repercussão fez com que o governo se mobilizasse. Mas, desta vez,
o protagonismo foi da sociedade civil, encabeçada pela ONG Ação da Cidadania,
criada pelo sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho.
“A campanha
liderada por Betinho teve uma importância muito grande ao plantar a ideia do
direito à alimentação na sociedade brasileira. Mais do que a distribuição de
alimentos, que teve uma força grande, ter ajudado a consolidar a compreensão de
que a fome não era algo admissível e tinha que ser enfrentada foi o melhor
fruto da Ação da Cidadania”, avalia Chico Menezes, que trabalhou com Betinho.
Os
desdobramentos dessa mobilização foram a criação do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar (Consea), onde representantes da sociedade civil começaram
a debater com o governo a implementação de um plano nacional para enfrentar a
fome e a miséria. Mas, com a passagem do bastão de Itamar Franco para Fernando
Henrique Cardoso, a descontinuidade deu novamente as caras: um dos primeiros
atos do presidente eleito foi a extinção do Consea. FHC colocou no lugar o
programa Comunidade Solidária, tocado por um conselho presidido pela primeira
dama do país, Ruth Cardoso.
Contudo,
com a adoção do Plano Real e o controle da inflação, começou a surgir um outro
tipo de consenso, de que o ajuste na economia faria mais pelo combate à fome do
que programas e ações. Ficou famoso o slogan de que com R$ 1 se comprava um
frango. Lena Lavinas, que analisou o período de 1994 a 2002 em uma pesquisa
nacional também publicada pelo Ipea, conta que o que mais contribuiu para
elevar a segurança alimentar no país não foi a melhora nos altos índices de
inflação, que teve como consequência a queda dos preços. “O fator determinante
foi a elevação do rendimento das famílias”, diz. Mas pondera: “Embora tenha
aumentado a acessibilidade aos alimentos, nem por isso as pessoas começaram a
se alimentar melhor. Não basta olhar a ingestão calórica sem levar em conta o
que as pessoas estão comendo”.
Com uma
campanha marcada pela promessa de que todo brasileiro faria, no mínimo, três
refeições diárias, Lula assume o Planalto em 2003. Segundo Maria Emília Pacheco
e Chico Menezes, foi a partir daí que se constituiu um vetor que unificou
iniciativas que estavam isoladas. “Até 2002 as medidas são muito fragmentadas.
Não havia um projeto de enfrentamento dessa calamidade”, considera o
economista, para quem o fato de o combate à fome ter sido declarado como
prioridade de governo foi fundamental para que, em pouco tempo, o projeto se
transformasse em política e, depois, em direito constitucional, o que aconteceu
em 2006 e 2010 respectivamente. Esse arcabouço jurídico e institucional
representou um “salto” na avaliação de Maria Emília. “Eu considero que demos
passos muito mais arrojados a partir de 2003”, diz. “É muito importante
entender que não foram só as políticas, mas a criação de uma base institucional
capaz de operá-las”, completa Chico.
Além
disso, ele destaca que prevaleceu a ideia de que o enfrentamento à fome deveria
ser feito de forma intersetorial. “Não adiantava trabalhar pontualmente de um
lado a agricultura, do outro a saúde, de um terceiro a educação. Era preciso
estabelecer espaços de troca e de construção de políticas com todos esses setores”.
A participação popular também era considerada fundamental para impulsionar e
trazer a realidade para a prática dessas políticas, segundo os especialistas,
que destacam que a recriação do Consea, em 2003 – do qual ambos foram
presidentes – foi chave. Na avaliação deles, a base institucional aliada ao bom
momento da economia e às políticas sociais propiciaram a saída do país do Mapa
da Fome.
Programa de
Aquisição de Alimentos.
Duas visões sobre o problema
A socióloga também chama atenção para os chamados ‘desertos alimentares’, locais das cidades em que a população não tem acesso a alimentos de qualidade in natura. “A concentração vai da produção ao consumo. Tivemos uma reconfiguração no Brasil com a formação de oligopólios de redes de supermercados. Os pequenos mercados fecharam ou foram comprados por grandes empresas, transformando-se também em lugares onde são vendidos produtos alimentícios processados e ultraprocessados”, explica.
Duas visões sobre o problema
A socióloga também chama atenção para os chamados ‘desertos alimentares’, locais das cidades em que a população não tem acesso a alimentos de qualidade in natura. “A concentração vai da produção ao consumo. Tivemos uma reconfiguração no Brasil com a formação de oligopólios de redes de supermercados. Os pequenos mercados fecharam ou foram comprados por grandes empresas, transformando-se também em lugares onde são vendidos produtos alimentícios processados e ultraprocessados”, explica.
Mais uma
reviravolta
Com o
impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e a chegada de Michel Temer ao Planalto
em meio a uma crise econômica e política sem precedentes, mais reviravoltas
aconteceram nessa história cheia de idas e vindas. Uma reforma ministerial
extinguiu a pasta do Desenvolvimento Agrário, responsável por vários programas
de incentivo à agricultura familiar considerados por entidades e especialistas
parte fundamental desse quebra-cabeça do combate à fome. Já o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome perdeu, de forma simbólica, a segunda
parte do nome. No Itamaraty, a estrutura responsável pela cooperação
internacional do Brasil no tema da segurança alimentar e nutricional foi
extinta.
“No
Congresso Nacional, ganhou ainda mais fôlego a pauta ruralista da
flexibilização da legislação ambiental e sanitária, com a proposta que muda o
termo agrotóxico por produtos fitossanitários, por exemplo. É tudo muito
encadeado”, observa Maria Emília, que completa: “Na minha avaliação, esse
desmonte é muito mais grave do que o que aconteceu na década de 1990 em razão
dos passos que nós tínhamos dado”.
Os números
das duas versões apresentadas pelo governo federal para o Projeto de Lei
Orçamentária Anual (PLOA) 2018 preocupam os especialistas. Chico Menezes fez as
contas e constatou que, em alguns casos, a União reduziu tanto os recursos que
algumas ações serão extintas na prática. É o caso do programa Cisternas,
voltado para a região do semiárido, que sofreu nas duas versões da proposta
orçamentária corte de 92%. “Gera perplexidade porque o semiárido brasileiro vive
uma seca que já dura cinco anos”, diz ele, que pondera que embora a meta de
construção de 1 milhão de cisternas para abastecimento das casas tenha sido
ultrapassada em 200 mil, o programa tinha se direcionado para prover água para
a produção de alimentos. “Esse programa acabou de ser premiado pela ONU, em
setembro, como a segunda melhor experiência no enfrentamento da escassez de
água envolvendo governo e sociedade. E o paradoxo é que este governo, que nada
fez pelo programa e, agora, propõe um corte que na prática o liquida, recebeu o
prêmio”, observa.
Já o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar ; que estava
numa situação ainda mais grave na primeira proposta de orçamento – com 99% de
corte – escapou do risco de extinção, mas terá de se virar com menos 57% dos
recursos previstos para 2017: terá R$ 5 milhões. Em 2015, o programa recebeu R$
33 milhões. “O programa tem uma peculiaridade de, por um lado, fortalecer os
agricultores familiares e, por outro, garantir uma alimentação de qualidade
para a rede socioassistencial, para as escolas”, afirma Maria Emília.
Olhando
para o PAA, a socióloga argumenta que a análise do desmonte dos programas não
deve prescindir de um diagnóstico interno do que está sendo executado e o que
está sendo cortado. “Não dá para dizer que o PAA está extinto. Mas se mantém
uma modalidade, enquanto as demais estão à míngua”, critica. Ela se refere, por
exemplo, à modalidade de compra com doação simultânea, voltada para os
segmentos mais pobres do campesinato. “A modalidade da compra institucional,
que é a venda dos agricultores para unidades do Exército, por exemplo, tem se
mantido. Só que os agricultores mais pobres dificilmente conseguem se
estruturar para atender a essa demanda que é grande do ponto de vista de quantidade,
mas não de variedade”, explica.
“Parece que
estava tudo resolvido nos últimos anos e que tudo se agrava agora. Eu diria que
não. Eu diria que houve uma relativa miopia sobre a dimensão da insegurança
alimentar que seguiu vigente no Brasil”, argumenta, por sua vez, Lena Lavinas.
E completa: “Porque senão parece que tudo está acontecendo neste governo. Claro
que as coisas se deterioram muito agora. Mas a gente não fez o que deveria ter
feito para consolidar um sistema de proteção social mais forte, resistente e
institucionalizado”.
Para ela, o
primeiro ponto é que comer continuou custando caro no Brasil e comprometendo
uma fração elevada da renda das famílias. Segundo o Dieese, que mensalmente
divulga o valor das cestas básicas nas capitais brasileiras, em novembro um
trabalhador que receba o salário mínimo comprometeu 42% da sua renda com a
cesta básica, que chega a custar R$ 444,16 em Porto Alegre. “É muito mais caro
comer no Brasil do que em outros países porque aqui não há uma política de
desoneração completa dos alimentos. Na Inglaterra, nenhum imposto incide sobre
nenhum tipo de alimento. Na Alemanha, com exceção de alimentos de luxo, como
caviar, também. Na França, os impostos sobre alimentos ficam na faixa dos 7%, enquanto
no Brasil esse número é de 20%”, compara Lena, que defende que uma política
tributária adequada teria grande impacto na melhoria da segurança alimentar.
Contudo, a
economista aponta que nada foi feito nesta direção. Em meio à alta dos preços e
pouco antes da explosão de protestos em 2013, o governo Dilma Rousseff anunciou
em cadeia nacional de rádio e televisão a retirada dos impostos federais da
cesta básica, um impacto de R$ 5,5 bilhões em receitas, pouco se comparada aos
quase R$ 105 bi concedidos em renúncias a empresas só naquele ano. “Foi
absolutamente insuficiente”, taxa Lena, que observa que a maior parte dos
impostos que incidem sobre os alimentos são estaduais, como o ICMS.
Pesquisa do
Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e da Confederação Nacional de Dirigentes
Lojistas divulgada em setembro mostrou que a segunda maior razão de
inadimplência, que atinge 54,9 milhões de pessoas, é a compra de alimentos. “A
insegurança alimentar não pode ser encarada só da perspectiva da baixa ingestão
calórica ou da ingestão de alimentos ruins. Como as pessoas vêm pagando muito
mais caro em relação a sua renda para se alimentar, elas vão adquirindo e
rolando dívidas para comprar comida”, diz Lena. A maioria dos brasileiros usa o
cartão de crédito em supermercados (62%) e farmácias (49%), segundo o
levantamento. As compras em supermercados são principalmente de mantimentos.Em
2014, 54% da população brasileira estava com sobrepeso, segundo relatório
divulgado pela FAO e pela Organização Pan-Americana de Saúde no início de 2017.
A obesidade entre adultos chegou a 20%, também em 2014. Um dos fatores,
argumenta Lena, tem de novo a ver com o custo de vida no país. Comer implica
também gastos com gás. Assim como a gasolina, o preço do gás vem sendo
reajustados pela Petrobras. O preço médio do botijão no Rio, por exemplo,
chegou a R$ 73,45 segundo a Agência Nacional de Petróleo. “As famílias,
sobretudo as mais pobres, tendem a se alimentar de maneira a gastar menos gás.
Optam por alimentos de cozimento rápido, pães e embutidos que têm altas taxas
de sódio e conservantes”, descreve, para emendar: “Não adianta falar de volta
da fome sem ter entendido antes que, apesar de ter aumentado a acessibilidade
alimentar, ao longo dos anos 2000 a gente não enfrentou problemas que se
agravaram”.
Embora deem
destaque para os avanços do ponto de vista do marco legal e institucional,
também para Chico Menezes e Maria Emília Pacheco foi um período de
contradições. “É verdade que num processo que houve avanços, houve muitos
equívocos também. Nós não conseguimos regular a publicidade de alimentos. O
Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Não fizemos reforma
agrária. Os governos nesse período nunca ofereceram resistência ao agronegócio,
pelo contrário. Sua governabilidade dependia da aliança com o agronegócio, até
que pouco a pouco esse apoio dos ruralistas foi sendo retirado. Em suma, o que
ocorreu em relação à questão da segurança alimentar não é diferente do que
ocorreu no país”, afirma Chico, que cita um caso que, na sua avaliação, ilustra
a correlação de forças do período.
O exemplo é
a aprovação da lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). “Havia
uma resistência enorme no Congresso em relação a dois pontos da lei: a previsão
de que 30% da alimentação escolar seria fornecida pela agricultura familiar e a
impossibilidade da terceirização da alimentação escolar. E a aprovação da lei
só pôde ocorrer porque abrimos mão da proibição da terceirização”. Mesmo assim,
argumenta, o marco legal avançou, por exemplo, recuperando perdas acumuladas
por dez anos no valor per capita repassado pela União por aluno e estendendo o
direito para o ensino médio. “Eram 45 milhões de alunos por dia se alimentando.
Isso significou uma abertura de mercado para a agricultura familiar que, num
primeiro momento, nem conseguiu dar conta”.
Em
novembro, a notícia de que um menino desmaiou de fome em uma escola do Distrito
Federal mostrou que o papel da merenda ainda é relevante na vida de famílias em
situação de vulnerabilidade. A criança não tinha, na avaliação do governo do
DF, direito a almoço porque estudava no turno da tarde. “O PNAE é parte das
razões pelas quais o Brasil conseguiu sair do Mapa da Fome. Se o aluno não
dispõe de alimentação na escola, vai haver sacrifício na alimentação para o
conjunto da família, principalmente para as mães. Fome para os adultos e
também, em muitos casos, fome para as crianças”, diz. E completa: “Acho que
hoje precisamos cerrar fileiras de resistência à destruição do pouco que se
conseguiu construir”.
Já Maria
Emília observa que o país saiu do Mapa da Fome com um percentual alto de
insegurança alimentar grave entre indígenas, quilombolas e segmentos da
população negra. Para ela, a questão estrutural a ser enfrentada é fazer valer
o direito à terra e ao território. “Sem isso, não rompemos com esse ciclo. Os
indígenas e quilombolas têm sido impactados fortemente pela expansão do
agronegócio, da mineração, de megaprojetos e não tivemos reconhecimento de
terras indígenas”, diz, completando: “No caso brasileiro, temos que fazer um
recorte de raça. Segmentos da população negra nas cidades também continuaram
vivendo situação de fome”.
No total, a América Latina conta com
42 milhões de pessoas que passam fome, contra 520 milhões na Ásia e 243 milhões
na África
Quem passa fome hoje?
Mas, afinal
de contas, quem são os brasileiros que passam fome hoje? Segundo José Graziano,
em entrevista ao UOL, “a cara da fome no Brasil é de uma mulher, de meia idade,
com muitas crianças e que vive no meio rural. Em geral, o marido migra e não a
leva, resultando em grande parte no abandono da família”. Mas será que esse
perfil pode se generalizar? No rastro do relatório da sociedade civil sobre a
Agenda 2030, divulgado em julho, e da polêmica da distribuição da farinata,
muitos veículos foram às ruas e constataram que não é difícil encontrar
famílias em situação de insegurança alimentar grave em metrópoles como Rio de
Janeiro e São Paulo. São pessoas que moram nos bolsões de pobreza dessas
cidades, em periferias, ocupações ou na rua, e relatam ter visto sua renda
despencar com o desemprego. Muitas reportagens relatam que o corte do benefício
do Bolsa Família e das complementações que os estados fazem a essa renda mensal
tem agravado o cenário. Pesquisa do Ibase em 2008 apurou que 87% dos
beneficiários do Bolsa Família tinham na alimentação o gasto principal com os
recursos recebidos.
“A situação
anterior era muito generalizada tanto no campo quanto na cidade”, relembra
Maria Emília, que vê diferenças entre aquele período e hoje. Tomando como
exemplo a região da caatinga, no semiárido nordestino, a pesquisadora afirma
que, diferente do que aconteceu no passado, quando estiagens prolongadas
provocavam tamanha carestia que os saques a supermercados eram comuns, hoje,
embora a seca seja considerada a pior em 100 anos, não se vê mais isso. “A
situação dos agricultores antes do programa ‘Um milhão de cisternas’ era muito
mais grave”, diz, citando o programa federal que sofrerá um corte de 92% no ano
que vem. “As políticas recentes conseguiram dar uma resposta a amplos setores,
com algumas exceções. É difícil dizer hoje se predominará mais uma situação de
fome no campo ou na cidade. Mas é verdade que nós temos no Brasil um maior
número de mulheres chefiando famílias e, se o desemprego e a queda de renda
estão chegando a esses lares. As mulheres serão as mais afetadas”.
Mas se não
dá para saber ao certo o que virá, alguns cenários inéditos preocupam. É o caso
da crise econômica do Rio de Janeiro, onde servidores públicos com salários
sistematicamente atrasados enfrentam dificuldades em pagar as contas – e
comprar comida. “Camadas médias também estão vivendo um período de privação. É
muito grave o quadro brasileiro hoje”, constata Maria Emília. A próxima Pnad
que vai medir a Escala Brasileira da Insegurança Alimentar e pode responder se
a fome se generalizou ou não, se transformando novamente em um dos grandes
problemas nacionais, deve ser feita no ano que vem e divulgada em 2019.
(ecodebate)
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