1. O cenário
A Região Metropolitana de São
Paulo-RMSP é abastecida com aproximadamente 70 m3/s por mananciais
superfícies e com 10 m3/s com água subterrânea. Como a RMSP está
instalada nas cabeceiras do rio Tietê, a disponibilidade hídrica local não é
suficiente para abastecer 20 milhões de habitantes e um dos maiores parques
industriais do mundo. O abastecimento depende, portanto de águas importadas de
outras bacias hidrográficas, sendo a maior delas, a reversão de aproximadamente
30 m3 /s, da bacia do PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí).
Esta cultura de importar água de bacias cada
vez mais distantes para satisfazer o crescimento da demanda remonta há mais de
dois mil anos. Os Romanos, que praticavam uso intensivo de água para
abastecimento domiciliar e de suas termas procuravam, de início, captar água de
mananciais disponíveis nas proximidades. À medida que estes se tornavam
poluídos pelos esgotos dispostos sem nenhum tratamento, ou ficavam incapazes de
atender à demanda, passavam a aproveitar a segunda fonte mais próxima e assim
sucessivamente. Esta prática deu origem à construção dos grandes aquedutos
romanos, dos quais existem, ainda, algumas ruínas, em diversas partes do mundo.
(Hespanhol, 2008)
A sistemática atual é
irracional, resolvendo, precariamente, o problema de abastecimento de água em
uma região, em detrimento daquela que a fornece. Há, portanto, necessidade de
adotar um novo paradigma que substitua a versão romana de transportar grandes
volumes de água de bacias cada vez mais longínquas.
Em função dos 80 m3/s
de água aduzida na RMSP, é gerada uma vazão de esgotos de aproximadamente 64 m3/s.
Como a capacidade instalada de tratamento na região é de apenas 16 m3/s,
o esgoto bruto remanescente, isto é 48 m3/s,é despejado, sem nenhum
tratamento, em corpos de água adjacentes, tornando-os cada vez mais poluídos.
Como confirmação deste
critério milenar de planejamento, está em fase de projeto executivo a captação
de água junto ao reservatório Cachoeira do França, no Rio São Lourenço, Alto
Juquiá, para uma produção média de 4,7 m3/s. O sistema adutor,
incluindo as linhas de água bruta e de água tratada é de aproximadamente 100
quilômetros, atingindo a região metropolitana de São Paulo, após um recalque
superior a 300 metros. O projeto, além de envolver os já ultrapassados sistemas
convencionais de tratamento, não apresenta quaisquer aspectos de viabilidade
econômica pois vai demandar um investimento de 2,2 bilhões de Reais. (Sabesp,
2011) Nenhuma consideração adicional foi feita pelos tomadores de decisão, do
volume de esgotos que seria gerado em função desta nova adução, ou seja, de
aproximadamente 3.8 m3/s, os quais, certamente, serão dispostos,
também, dispostos, nos já extremamente poluídos corpos hídricos da RMSP.
2. Sustentabilidade de
sistemas de abastecimento de água
Sustentabilidade é um
conceito técnico/filosófico genérico que não tem, isoladamente, significado
prático e não pode ser avaliado em termos quantitativos. Em se tratando de
sistemas de abastecimento de água, há necessidade de considerar algumas
variáveis sistêmicas para avaliar a sua sustentabilidade. A sustentabilidade,
nesse caso, deve ser visualizada como a probabilidade com a qual um sistema de
abastecimento de água possa, permanentemente, suprir a demanda em condições
satisfatórias. As variáveis mais importantes, que estabelecem, ou não, uma
condição de sustentabilidade são:
(i) Robustez, refletindo
desempenho consistente e capacidade de atender a uma demanda crescente, mesmo
em condições de diversos tipos de estresses;
(ii) Resiliência, a
habilidade do sistema de recuperar seu estado satisfatório após sofrer impactos
negativos, como por exemplo, a perda de capacidade de atendimento de fontes de
abastecimento, e;
(iii) Vulnerabilidade, a
magnitude da falha de um sistema de abastecimento. (Hashimoto et all, 1982)
Sistemas, como por exemplo, o
que abastece a RMSP, não são, portanto, sustentáveis porque são pouco robustos
e possuem resiliência praticamente nula, e são extremamente vulneráveis, uma
vez que permanecem na dependência de recursos oriundos de bacias que, por sua
vez, também estão submetidas a condições extremas de estresse hídrico.
3. Reuso de Água e
Sustentabilidade
A solução moderna e
sustentável que potencializa significativamente a robustez e a resiliência do
sistema de abastecimento de água da RMSP (e de qualquer região com estresse
hídrico) consiste em tratar e reusar os esgotos já disponíveis no planalto que
abriga a RMSP, para finalidades diversas, inclusive para complementação do
abastecimento público.
4. A importância do Reuso de
Água
A falta de recursos hídricos
e o aumento dos conflitos pelo uso da água gerou a emergência da conservação e
do tratamento e reuso, como componentes formais da gestão de recursos hídricos.
Os benefícios inerentes à utilização de água recuperada para usos benéficos, ao
contrario de disposição ou descarga inclui a preservação de fontes de qualidade
elevada, proteção ambiental e benefícios econômicos e sociais. (Asano, 2007)
Nas regiões áridas e
semiáridas, a água se tornou um fator limitante para o desenvolvimento urbano,
industrial e agrícola. Planejadores e entidades gestoras de recursos hídricos,
buscam novas fontes de recursos para atender às demandas crescentes,
principalmente dos setores domésticos e industriais. No polígono das secas do
nosso nordeste, a dimensão do problema é ressaltada por um anseio, que já
existe há quase oitenta anos, para a transposição do rio São Francisco, visando
o atendimento da demanda dos estados não riparianos, da região semiárida,
situados ao norte e a leste de sua bacia de drenagem. Diversos países do
oriente médio, onde a precipitação média oscila entre 100 e 200 mm por ano,
dependem de alguns poucos rios perenes e pequenos reservatórios de água
subterrânea, geralmente localizados em regiões montanhosas, de difícil acesso.
Em muitos desses países, a água potável é proporcionada através de sistemas de
dessalinização da água do mar e, devido a impossibilidade de manter uma
agricultura irrigada, mais de 50% da demanda de alimentos é satisfeita através
da importação de produtos alimentícios básicos. (Hespanhol, 1999)
Entretanto, a prática de
reuso de água não é aplicável exclusivamente em regiões áridas e semiáridas.
Muitas regiões com recursos hídricos abundantes, mas insuficientes para atender
a demandas excessivamente elevadas, também experimentam conflitos de usos e
sofrem restrições de consumo, que afetam o desenvolvimento econômico e a
qualidade de vida. Como acima considerado, a bacia do Alto Tietê, dispõe, pela
sua condição característica de manancial de cabeceira, vazões insuficientes
para atender á demanda da RMSP, embora apresente uma precipitação média de
aproximadamente 1.490 mm/ano (Prefeitura Municipal de São Paulo, 2001).
Antevendo, precocemente, a
necessidade de modificar políticas ortodoxas de gestão de recursos hídricos,
principalmente em áreas carentes, o Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas, propôs, em 1958, que, "a não ser que exista grande
disponibilidade, nenhuma água de boa qualidade deve ser utilizada para usos que
toleram águas de qualidade inferior". (United Nations, 1958). As águas de
qualidade inferior, tais como esgotos de origem doméstica, efluentes de
sistemas de tratamento de água e efluentes industriais, águas de drenagem
agrícola e águas salobras, devem, sempre que possível, ser consideradas como
fontes alternativas para usos menos restritivos. O uso de tecnologias
apropriadas para o desenvolvimento dessas fontes, se constitui hoje, em
conjunção com a melhoria da eficiência do uso e a gestão da demanda, na
estratégia básica para a solução do problema da falta universal de água.
Dentro deste cenário, uma
solução sustentável seria a de tratar e reusar, para fins benéficos, os esgotos
já disponíveis nas áreas urbanas para complementar o abastecimento público.
Esta prática contribuiria substancialmente para um aumento da robustez dos
sistemas e tornaria o conceito de resiliência pouco significativo, uma vez que
eliminaria as condições de estresse associadas à redução da disponibilidade
hídrica em mananciais utilizados para abastecimento público.
Numa primeira etapa, esta
proposta se desenvolveu em termos de reuso para usos urbanos não potáveis. Nos
últimos anos esta proposta vem se ampliando no sentido de adotar o reuso para
fins potáveis. Este conceito, além de se constituir em solução econômica e
ambientalmente correta proporcionará água segura, o que não é, atualmente,
proporcionado por sistemas convencionais de tratamento, que tratam águas
provenientes de mananciais extremamente poluídos, inclusive com poluentes
emergentes.
As tecnologias modernas de
tratamento e de certificação da qualidade da água disponíveis atualmente têm
grande potencial para viabilizar a utilização de mananciais desprotegidos,
permitindo, por extensão, o reuso direto de água para fins potáveis. A prática
do reuso potável direto, pelo fato de empregar tecnologia e sistemas de
controle e de certificação modernos proporcionará, certamente, melhores
benefícios em termos de saúde pública do que o emprego das tecnologias de
tratamento convencionais para tratar água oriunda de mananciais extremamente
poluídos contendo altas concentrações de esgotos domésticos e industriais.
5. Sistemas de Reuso Potável
(Hespanhol, 2014)
Sistemas de reuso potável
podem ser concebidos como Reuso Potável Indireto Planejado, Reuso Potável
Indireto Planejado ou não planejado e Reuso Potável Direto.
5.1. Reuso potável indireto
não planejado. (RPINP)
Sistemas de reuso indireto
não planejados e, na grande maioria das vezes inconscientes, são praticados
extensivamente no Brasil. Exemplos típicos são os lançamentos de esgotos
(tratados ou não) e a coleta à jusante, para tratamento e abastecimento
público, praticado em cadeia, por diversos municípios, ao longo do rio Tietê e
do Rio Paraíba do Sul. Na RMSP a reversão do corpo central e do braço do
Taquacetuba do reservatório Billings para o reservatório Guarapiranga, também
se constitui em um sistema de reuso de água para fins potáveis, o qual não foi
concebido dentro dos critérios e tecnologias associadas às práticas de reuso,
pois as águas coletadas do reservatório Guarapiranga, após a reversão do
reservatório Billings, são tratadas na ETA do Alto da Boa Vista através de um
sistema convencional de tratamento.
Causa espécie, que o órgão
regulador local, extremamente vinculado a normas irracionais e extremamente
restritivas, ignore completamente os problemas ambientais e de saúde pública
causada por essa sequência de lançamentos de esgotos brutos e de captação
imediatamente à jusante para abastecimento público de água.
Um esquema ilustrativo de
sistema de RPINP é mostrado na Figura 1.
Figura 1- Cenário típico de
sistemas de reuso indireto não planejado efetuados em série
5.2. Reuso potável indireto
planejado (RPIP)
Conceitualmente, o reuso
potável indireto planejado, deve ser constituído por um sistema secundário de
tratamento de esgotos, geralmente de lodos ativados e, mais modernamente, de
sistemas de biomembranas submersas (iMBRs), seguido de sistemas de tratamento
avançado e, se necessário, de um balanceamento químico antes do lançamento em
um corpo receptor, superficial ou subterrâneo, aqui designados como Atenuadores
Ambientais - AAs, como mostrado esquematicamente na Figura 2.
Os atenuadores ambientais
podem ser corpos hídricos naturais associados aos sistemas de reuso potáveis diretos
planejados. Podem ser aquíferos confinados, nos quais a recarga gerenciada é
efetuada com os esgotos tratados, ou corpos receptores naturais, rios, lagos ou
reservatórios construídos, (para regularização de vazões, para tomada de água,
geração de energia elétrica ou para usos).
Figura 2 – Esquema básico de
um sistema de reuso potável indireto planejado. (adaptado de Tchobanoglous et
al, 2011).
Múltiplos, nos quais os
esgotos tratados são lançados e posteriormente captados para reuso indireto. Os
atenuadores ambientais, tanto subterrâneos como superficiais tem o objetivo,
de, por efeitos de diluição, sedimentação, adsorção, oxidação, troca iônica,
etc., atenuar as baixas concentrações de poluentes remanescentes dos sistemas
avançados de tratamento utilizados. A legislação do estado da Califórnia (CDPH,
2008), para recarga gerenciada de aquíferos (que poderia ser avaliada e
adaptada para condições brasileiras), por exemplo, estabelece uma retenção de 6
meses, baseada na hipótese que cada mês de retenção proporciona a redução de
uma ordem de magnitude (99%) de vírus, obtendo no período total uma redução
correspondente a 6 ordens de magnitude (99,9999 %).
Os objetivos básicos de
atenuadores ambientais são os seguintes:
· Proporcionar diluição e
estabilização dos contaminantes ainda existentes no efluente tratado;
· Proporcionar uma
barreira adicional de tratamento para organismos patogênicos e/ou elementos
traços, através de sistemas naturais;
· Proporcionar tempo de
resposta em caso de mau funcionamento do sistema avançado de tratamento;
· Proporcionar percepção
pública de que ocorre um aumento da qualidade da água;
· Proporcionar, ao público
consumidor, a percepção de que ocorre uma dissociação entre esgoto e água
potável;
O reuso potável direto planejado
é difícil de ser aplicado nas condições atuais brasileiras, devido ás seguintes
características técnicas, ambientais, legais e institucionais:
· Os corpos receptores
superficiais que poderiam operar como atenuadores ambientais são geralmente
poluídos, não possibilitando os efeitos purificadores secundários deles
desejados. Na realidade o oposto ocorreria, pois efluentes altamente
purificados por processos avançados de tratamento seriam contaminados face aos
elevados níveis de poluição de grande parte de nossos corpos hídricos;
· Por desconhecimento da
importância e benefícios inerentes, a prática de recarga gerenciada de
aquíferos é, formalmente, rejeitada por nossos legisladores e por alguns órgãos
de fomento, que vêm, continuamente, recusando o desenvolvimento de estudos e
projetos, que dariam subsídios para o desenvolvimento de uma norma e de códigos
de prática nacionais sobre o tema (Hespanhol, 2009). Por essa razão não há no
Brasil possibilidade atual, de utilizar aquíferos subterrâneos como atenuadores
ambientais.
· Efluentes lançados em
corpos receptores, superficiais ou subterrâneos, não passam automaticamente a
serem do domínio das entidades ou companhias de saneamento que procederam ao
tratamento e respectiva descarga. Uma vez lançados ao meio ambiente, a captação
correspondente, total ou parcial, fica submetida aos critérios de outorga e a
respectiva cobrança pelo uso da água. De uma maneira geral, as companhias de
saneamento não farão grandes investimentos em sistemas de tratamento para obter
uma água de qualidade elevada sobre a qual não teriam domínio automático.
Apenas quando ocorram condições logísticas especiais, ou seja, quando a
captação outorgada é efetuada muito próxima aos pontos de lançamento, ou quando
o reservatório que recebe os efluentes tratados é operado pela própria
companhia de saneamento que efetua o reuso, poderá o investidor auferir dos
benefícios do elevado grau de tratamento conferido a seus efluentes, para
implementar sistemas planejados de reuso potável indireto.
Verifica-se, portanto que a
implantação de sistemas de RPIPs não tem, atualmente, condições técnicas e
econômicas para ocorrer no Brasil. No futuro, seria possível que esta
modalidade de reuso pudesse vir a ser implantada, caso fosse promulgada
legislação nacional sobre recarga gerenciada de aquíferos e/ou sobre a
obrigatoriedade de que os esgotos só pudessem ser lançados em corpos
superficiais após níveis de tratamento superiores aos secundários, hoje
adotados apenas em pequena parte do País.
Há uma enorme gama de
sistemas de RPIPs, tanto experimentais como públicos operando em diversos
países. Um sistema administrado pela Companhia Intermunicipal de Água, Veurne-
Ambacht - IWVA, em Koksijde, no estremo norte da Bélgica, está em operação
desde julho de 2002. A ETE de Wulpen, constituída por um sistema de lodos
ativados foi construída em 1987 e reformada em 1994 para proporcionar remoção
de nutrientes. O efluente da ETE Wulpen é encaminhado à Estação de Tratamento
Avançado de Torreele onde passa por unidades de ultrafiltração (ZeeWeed, ZW
500C da Zenon) e, em seguida, por unidades de osmose reversa (30LE-440 da Dow
Chemical). O efluente da ETA de Torreele é, após um transporte de
aproximadamente 2,5 quilômetros, infiltrado no aquífero arenoso, não confinado,
de Saint André, com o objetivo de remover organismos patogênicos e traços de
produtos químicos que possam ter ultrapassado a barreira de osmose reversa. A
água é recuperada do aquífero a distancias variando entre 33 e 153m do ponto de
recarga, através de 112 poços, a profundidades variando entre 8 e 12 metros. O
extensivo sistema de monitoramento efetuado mostrou a excelente qualidade da
água potável produzida. As análises efetuadas em 2007 nos efluentes do sistema
de osmose reversa indicaram a ausência de produtos farmacêuticos quimicamente
ativos e de disruptores endócrinos acima dos limites de detecção de 0,5 a 10
ng/L.(Van Houtte & Verbauwhede, 2008 e Vandenbohede et all, 2008)
Um dos maiores e mais
conhecidos sistemas de reuso potável indireto planejado é o de Orange County,
situado em Fountain Valley, na Califórnia. O efluente da ETE do Orange County
Sanitation District é encaminhado, sem desinfecção, à estação de tratamento
avançado do Water Factory 21, pertencente ao Orange County Water District, cuja
produção é de aproximadamente 82 milhões de metros cúbicos por ano. O sistema
antigo de tratamento que era composto de sistema de coagulação/floculação com
cal, extração de amônia, recarbonatação, filtração, adsorção em carvão ativado,
desinfecção e osmose reversa, (Tchobanoglous & Burton, 1991), foi
substituído, a partir de 2008 e após extensivos estudos pilotos pelo sistema
apresentado na Figura 3. Parte da água produzida é dirigida às bacias de
infiltração de Kraemmer e Miller e parte aos poços de injeção, utilizados para
evitar a penetração da cunha salina no aquífero costeiro, ao longo da Ellis
Avenue.
Figura 3 – Orange County Water District, Fountain Valley, CA. (adaptado de Tchobanoglous et al, 2011)
5.3. Reuso Potável Direto
Reuso potável direto consiste
no tratamento avançado de efluentes domésticos e a sua introdução em uma ETA
cujo efluente adentra, diretamente, um sistema público de distribuição de água,
sem que ocorra a passagem através de atenuadores ambientais, tanto superficiais
como subterrâneos. O esgoto, após tratamento avançado poderá ser introduzido
diretamente em uma ETA, ou em um reservatório de mistura à montante dela,
quando vazões complementares, tanto de origens superficiais como subterrâneas
compõem a vazão total a ser tratada no sistema de reuso.
Conforme mostrado na Figura
4, (adaptada de Tchobanoglous et al, 2011) após tratamento secundário,
(sistemas convencionais ou sistemas MBRs), os esgotos passariam por câmara de
equalização, por um sistema de tratamento avançado e por uma eventual câmara
para balanceamento químico, seguido de reservatório de retenção, antes de ser
encaminhado à ETA, após mistura a ser efetuada com águas superficiais e/ou
subterrâneas.
Figura 4 – Reuso potável
indireto (adaptado de Tchobanoglous et al, 2011)
A necessidade de balanço
químico deverá ser verificada quando não ocorre a complementação com fontes
superficiais ou subterrâneas ou quando a porcentagem de água de reuso é
bastante elevada. Nesse caso, pode ser conveniente efetuar a remineralização da
água para evitar problemas de saúde pública, melhorar o gosto e prevenir
corrosão à jusante. O reservatório de retenção pode ser natural, (um pequeno
lago ou reservatório isolado) ou construído. Deve ser adequadamente projetado
para servir como um sistema intermediário entre o sistema de tratamento de
esgotos e o sistema de tratamento de água potável. Se o sistema envolve um grau
significativo de variabilidade no sistema de tratamento de esgotos, esse
reservatório deverá ser de grandes dimensões, permitindo tempo suficiente para
responder às eventuais deficiências do processo e efetuar uma certificação
extensiva do efluente produzido. Caso o sistema apresente um elevado grau de
confiabilidade, o reservatório de retenção poderá ter dimensões reduzidas ou
mesmo não ser incluído no sistema de reuso.
Os objetivos básicos dos
reservatórios de retenção e certificação são os seguintes:
· Compensar a
variabilidade entre a produção e a demanda de água;
· Compensar a
variabilidade da qualidade da água produzida (praticamente desnecessário com
sistemas avançados de tratamento);
· Provisão de um mínimo de
tempo para detectar e atuar sobre as eventuais deficiências de processo antes
da introdução da água tratada no sistema de distribuição.
Além disso, devem ser
projetados e construídos com elevado nível de segurança, estrutural e
ambiental, prevenir poluição externa, evitar perdas por evaporação, dispor de
sistemas hidráulicos capazes de efetuar descargas rápidas quando necessário e,
dispor de instalações para amostragem e monitoramento.
A Figura 5 mostra, esquematicamente, um sistema
de certificação que inclui três reservatórios disposto em série, cada um com
volume de água potável equivalente a 12 horas de produção do sistema avançado
de tratamento (ATSE, 2013).
Figura 5 – Reservatório de
retenção e de certificação (adaptado de ATSE 2013)
6. Tecnologia disponível para
reuso potável direto A questão adjacente que ainda perdura em muitos setores
conservativos é se há, atualmente, disponibilidade de tecnologia adequada
(operações, processos unitários e sistemas integrados) e técnicas de
certificação da qualidade de água, que permitam produzir, consistentemente,
água segura a partir de esgotos domésticos, respeitando critérios econômicos e
de proteção da saúde pública dos consumidores. Em seguida, são apresentados, de
maneira resumida, três processos unitários básicos que, em conjunção com
processos tradicionais, tais como coagulação/floculação, filtração,
desinfecção, etc. podem compor sistemas avançados de tratamento, que devem ser
avaliados com o objetivo de produzir consistentemente, água de reuso para fins
potáveis, em sistemas diretos.
6.1. Operações e Processos
Unitários Potenciais Os processo ou sistemas unitários que poderão ser
utilizados para compor sistemas avançados de tratamento para reuso são
basicamente os seguintes: sistemas de membranas, carvão biologicamente ativado
e carvão ativado, e processos oxidativos avançados.
6.2. Sistemas avançados de
tratamento para RPD
O sistema avançado de tratamento
deverá ser concebido em função das características do esgoto a ser tratado e da
qualidade de eventuais fontes adicionais de água que serão tratadas na ETA.
Dependendo da qualidade dessas fontes extras, (presença de produtos químicos e
de organismos patogênicos tais como oocistos de cryptosporidium spp.), a ETA
deverá, também, conter sistemas avançados de tratamento, tais como ultra
filtração e processos oxidativos avançados-POA.
O sistema de tratamento
avançado a ser construído (após tratamento convencional por sistemas de lodos
ativados ou equivalente) deverá integrar os conceitos de barreiras múltiplas
sendo imprescindível que sejam executados estudos pilotos para identificar a
consistência na produção de efluentes adequados, fornecer parâmetros de projeto
realistas, identificar problemas de operação e manutenção e para avaliar os
custos associados.
Considerando a elevada
capacidade de remoção de poluentes críticos dos processos unitários acima
descritos, os sistemas de tratamento para RPD a serem considerados para serem
avaliados, em função de efluentes específicos e de características locais, são
os 4 sistemas esquematizados na Figura 6 (adaptado de Tchobanoglous et all,
2011 e de Leverenz et al, 2011):
Os sistemas (a) e (b) que
utilizam efluentes de sistemas de tratamento de esgotos por lodos ativados,
necessitam de câmaras de equalização devido à variação de qualidade dos
efluentes produzidos, principalmente quando são empregados sistemas de aeração
prolongada. O sistema (a) é composto de unidades de osmose reversa (com
pré-tratamento por ultra filtração), e de POA, através de UV/ H2O2.
Como nos demais sistemas mostrados na Figura 6, o efluente tratado passa pelo
reservatório de retenção/armazenamento/certificação, pela câmara de mistura e,
finalmente pela ETA, produzindo água potável. O sistema (b) emprega unidades de
ultra filtração, carvão biologicamente ativado com ozônio, nano filtração e
POA, através de UV/ H2O2. Os sistemas (c) e (d), integram
os mesmos processos unitários de tratamento, mas efetuam o tratamento biológico
através de sistemas MBRs com membranas de ultra filtração. Por esta razão, não
necessitam, devido à consistência de qualidade proporcionada pelas unidades de
ultra filtração, de câmaras de equalização. O sistema (c) integra, após o
sistema MBR, unidades de osmose reversa e de POA, através de UV/ H2O2,
e o (d) é composto de sistemas de carvão biologicamente ativado com ozona, nano
filtração e POA, através de UV/ H2O2.
Figura 6 – Sistemas avançados
de tratamento para reuso potável: (adaptado de Tchobanoglous et al, 2011;
Leverenz et al, 2011)
7. A experiência mundial em
reuso potável direto
Assim como sistemas de reuso
potável indireto planejados há uma significativa quantidade de sistemas de
reuso potável direto, tanto experimentais em operação, implantados em diversos
estados americanos, na África do Sul, Austrália, Bélgica, Namíbia e Singapura,
sem que tenham sido detectados problemas de saúde pública associados. Alguns
desses exemplos são mostrados abaixo.
Windhoek, Namíbia.
O município de Windhoek, com aproximadamente
250.000 habitantes (censo de 2001), está situado na Namíbia, sudoeste da África
ao sul do deserto do Saara. O reuso potável direto vem sendo praticado há mais
de quarenta anos, sem que problemas de saúde pública associados à água potável
tenham sido identificados (Van der Merwe et al, 2008). Além de um completo
sistema de monitoramento da qualidade da água, é utilizado o princípio de
pontos críticos de controle (Damikouka et all, 2007; ABNT, 2002), o que traz
uma maior segurança de saúde pública aos usuários do sistema. O esquema do
sistema avançado atual, da ETA de Goreangab, após a sua última ampliação
efetuada em 1997 é mostrada na Figura 7.
Figura 7 – Estação de tratamento de Goreangab em
Windhoek, Namíbia para reuso potável direto (remodelada 1997), (adaptado de Van
Der Merwe et al, 2008)
Denver, Colorado, Estados
Unidos
O projeto de demonstração de
RPD da cidade de Denver, operou no período 1985 a 1992 e teve, com principal
objetivo avaliar os problemas potenciais de saúde pública que poderiam ocorrer.
O sistema, alimentado com esgotos secundários sem desinfecção, foi projetado
dentro do conceito de barreiras múltiplas montadas em linhas paralelas para
permitir manutenção adequada e para dar continuidade à operação quando da
ocorrência de eventuais falhas em processos e operações unitárias, (Figura 8).
Foi efetuado um extensivo monitoramento da qualidade da água produzida,
utilizando amostras composta em períodos de 24 horas e avaliando todas as
variáveis de qualidade regulamentadas na época. Embora no período dos testes
ainda não se tivesse conhecimento de poluentes emergentes que hoje são
encontrados em mananciais de todo o mundo, a pesquisa evidenciou que a água
produzida apresentava qualidade semelhante à água potável distribuída em Denver
e atendia a todos os padrões de qualidade de água da EPA, da Comunidade
Europeia e das diretrizes da OMS. (Asano et al, 2007).
Figura 8 – Estação
experimental de tratamento de Denver, Colorado – Reuso potável direto (adaptado
de Asano et al, 2007)
Cloudcroft, New Mexico,
Estados Unidos
A pequena vila de Cloudroft
se localiza no estado de New México, ao sul do município de Albuquerque. Tem
uma população de aproximadamente 850 habitantes, que cresce para mais de 2000
durante fins de semana e feriados. Nessas ocasiões a demanda de água passa de
aproximadamente 680 m3/dia para um pico próximo a 1.360 m3
/dia. Visando eliminar o transporte de água através de caminhões pipa durante
os picos de consumo, a comunidade decidiu aumentar a disponibilidade de água
através de um sistema de RPD, utilizando os esgotos domésticos produzidos
localmente. O sistema de tratamento adotado, mostrado na Figura 9, inclui, em
uma primeira fase um reator MBR para tratamento secundário dos esgotos,
desinfecção, osmose reversa e um sistema POA. O efluente desse sistema recebe
aproximadamente 51% (do total produzido) de água bruta oriunda de águas
superficiais e de fontes subterrâneas locais. A mistura é mantida em um reservatório
durante aproximadamente duas semanas passando, em seguida, por uma segunda
bateria de unidades de tratamento, incluindo ultra filtração, desinfecção por
radiação ultravioleta, carvão ativado e desinfecção final com cloro. (adaptado
de Tchobanoglous et al, 2011)
Figura 9 – Sistema de
Cloudcroft, New Mexico (adaptado de Tchobanoglous et al, 2011)
Big Springs, Texas, Estados
Unidos
Embora o reuso de água tenha
sido praticado na região desde há muito tempo, o Colorado River Water District
que abastece várias comunidades da região, inclusive Big Springs, tomou,
recentemente, a decisão de “reciclar 100% da água, durante 100% do tempo”. O
primeiro projeto de reuso associado a esta diretriz foi o de Big Springs, que
está, ainda, em fase de implementação. Conforme mostrado na Figura 10 o
efluente do sistema convencional de lodos ativados existente, recebe cloro,
passa por um filtro de areia e por descloração. Passa, em seguida, por um
sistema de tratamento avançado, constituído de microfiltração, osmose reversa e
por um sistema de POA. O efluente purificado através desse sistema é
encaminhado a um reservatório de mistura com água bruta proveniente do
reservatório Spencer e do reservatório Thomas. A água é, finalmente, captada no
reservatório de mistura, passando, em seguida, por um sistema de tratamento-
físico-químico constituído de coagulação, floculação, sedimentação, filtração e
desinfecção com cloro. O efluente desse sistema adentra, diretamente, o sistema
de distribuição de água de Big Springs. (adaptado de Tchobanoglous et al, 2011).
Figura 10 – Big Springs,
Texas (adaptado de Tchobanoglous et al, 2011)
Beaufort West, África do Sul
A estação de tratamento
avançado de Beaufort West recebe efluentes tratados por sistemas terciários
convencionais das ETEs Northern e Kwa Mashu. Foi dimensionada para uma vazão de
2.100 m3/dia.(ATSE, 2013) O sistema composto de ultra filtração,
osmose reversa processo oxidativo avançado (Peróxido de Hidrogênio e UV ) e
desinfecção por Cloro, produzirá 1.000 m3/dia que serão mesclados
com água tratada pela ETA local de 4.000 m3/dia, produzindo,
portanto uma vazão total de 5.000 m3/dia. (Figura 11).
Figura 11 – Sistema de Beaufort West, África do Sul (adaptado de
Drinking Water Through Recycling, Australian Academy of Technological Sciences
and Engineering – Aste, 2013)
8. Fatores positivos para
implementação do reuso potável direto
Em função do cenário critico
acima descrito, é inevitável que, em um futuro muito próximo, não haverá outra
solução que não seja a de substituir mecanismos ortodoxos de gestão da água no
setor urbano por novos paradigmas, para poder assegurar a sustentabilidade do
abastecimento de água, tanto em termos de qualidade como em quantidade. A mais
importante missão dessa mudança de paradigma está associada à universalização
da prática de reuso de água e, mais especificamente, da prática de reuso
potável direto, utilizando apenas as redes de distribuição de água atualmente
existente e as suas ampliações.
As razões básicas e os fatores
positivos que colaboraram para essa mudança significativa nos dogmas vigentes
de gestão da água são, basicamente, as seguintes:
· Os mananciais para
abastecimento de água estão se tornando cada vez mais raros, mais distantes e
mais poluídos, tornando-se inviável a sua utilização como mostrado no caso
relacionado no item 1 acima;
· O reuso potável indireto
não planejado, extensivamente praticado no Brasil, é uma prática prejudicial
tanto para o meio ambiente como para a saúde pública de usuários de sistemas de
distribuição de água tratada através de sistemas convencionais;
· A implementação de
sistemas de reuso potáveis indiretos planejados parecem ser, atualmente de
pequena viabilidade nas condições brasileiras uma vez que corpos receptores
superficiais, que poderiam operar como atenuadores ambientais são, como
mencionado no item 2.2 geralmente poluídos, não possibilitando os efeitos
purificadores secundários deles desejados. Por outro lado, a utilização de
aquíferos como atenuadores ambientais também não pode ser realizada na presente
conjuntura nacional, uma vez que a prática de recarga gerenciada de aquíferos
não é, ainda, técnica
· Com a tecnologia
avançada hoje disponível é possível remover contaminantes traços orgânicos e
inorgânicos e organismos patogênicos que não são removidos em sistemas
tradicionais de tratamento de água;
· Não haverá necessidade
de construir um sistema de distribuição separado para fornecer a água de reuso
podendo ser utilizado os sistemas de distribuição já existentes e suas extensões.
No Brasil não dispomos infelizmente, de dados unitários de tratamento e de
distribuição, mas a avaliação vigente é de que os sistemas de distribuição
implicam em custo equivalente s 2/3 do total dos custos associados a tratamento
e distribuição. Uma avaliação efetuada nos Estados Unidos (Tchobanoglous et al,
2011), concluiu que o custo total de um sistema paralelo de distribuição de
água potável, tratada a nível avançado oscilaria entre R$ 0,77/m3 a
R$ 4,08 R$/m3 (0,32 US$/m3 a (1,70 US$/m3),
enquanto que um sistema típico de tratamento avançado, incluindo sistemas de
membranas e POA, oscilaria entre 1,4 R$/m3 a R$ 2,33/m3
(US$0,57/m3 a 0,97 US$/m3). A eliminação dos custos
associados à construção de uma rede paralela para a distribuição de água de reuso
compensaria os custos relativamente maiores (em relação a sistemas de
tratamento convencionais) que seria atribuído ao sistema de tratamento
avançado. Em alguns casos, como, por exemplo, na RMSP, que depende de
importação de águas de bacias distantes, ter-se-ia, ainda, o benefício de
evitar a construção de adutoras de água bruta, que implicam na aplicação de
recursos elevados para construção, manutenção e recalque;
· Agua de alta qualidade
seria disponível junto aos centros de consumo sem a necessidade de reversão de
bacias. Seria utilizada a água disponível localmente sem prejudicar o
abastecimento de água em bacias em condições de estresse crítico como, por
exemplo, como ocorre na RMSP em relação à bacia do rio Piracicaba.
· A tecnologia atual é
suficiente para substituir atenuadores ambientais por reservatórios de retenção
onde a água tratada a níveis avançado seria adequadamente certificada antes da
mistura com outras fontes de água, como mostrado nas Figura 4 e 5;
· A existência de
precedentes bem sucedidos, a visão de segurança adicional no abastecimento de
água, a disponibilidade de água com qualidade elevada produzida por sistemas
avançados de tratamento, são fatores positivos para a aceitação comunitária da
prática de reuso potável direto.
9. Fatores potencialmente
inibidores do reuso potável direto
Apesar da grande gama de
fatores positivos acima relacionados a efetiva implementação de sistemas de
reuso potável direto, está fortemente condicionada aos fatores seguintes:
(i) restrições legais/institucionais,
associadas ao Princípio da Precaução e à legislação vigente sobre crimes
ambientais, e;
(ii) aspectos psicológicos e
culturais associados à percepção e aceitação da prática do reuso de água.
9.1. O Princípio da Precaução
O Princípio da Precaução é
uma diretriz que busca regular a participação do conhecimento técnico e
científico e do senso comum na previsão e no combate a potenciais degradações
ambientais, causadas por processos tecnológicos tradicionais ou emergentes.
Deve ser aplicado de forma construtiva, elaborando, numa primeira fase, a
“análise do risco” através da aplicação do conjunto de conhecimentos
disponíveis na identificação de potenciais efeitos adversos, assim como dos
benefícios, ambientais, econômicos, técnicos e sociais que proporcionam. (Patti
Júnior, 2007, Hespanhol, 2009).
A relação entre a ciência e a
precaução é uma importante questão conceitual para o gerenciamento prático de
riscos tecnológicos. O conhecimento adequado do problema para a tomada de
decisões requer uma série de atributos, entre os quais o exame crítico, a
transparência, o controle de qualidade, e revisão pelos pares e a ênfase num
aprendizado permanente. Apenas após a elaboração exaustiva dessa fase de
aprendizado científico e tecnológico é permitido que se passe á fase de “gestão
do risco”, estabelecendo um marco regulatório que possibilite auferir os
benefícios da prática, evitando ou minimizando os riscos correspondentes.
O Princípio da Precaução não
pode, portanto, ser utilizado para impedir o desenvolvimento de tecnologias que
podem apresentar certos riscos. Os órgãos reguladores devem assumir o
compromisso de lidar com os riscos e com as incertezas científicas de forma
coerente, permitindo, por outro lado, que os benefícios proporcionados pela
prática sejam auferidos em sua plenitude.
O cenário mais crítico
ocorre, entretanto, quando, com base exclusiva em preconceitos, preferências
pessoais e argumentos subjetivos, os tomadores da decisão se recusam a
regulamentar processos ou atividades tecnológicas importantes, criando
condições para a ocorrência de riscos que poderiam ser evitados através da
aplicação de mecanismos adequados de comando e controle.
O que se observa ainda é a
usurpação do Princípio da Precaução no formato de proteção profissional
individual, buscando segurança legal através da obstrução de processos de
regulamentação de práticas importantes e consagradas.
Especificamente no caso do
reuso de água a postura mais detrimental para o desenvolvimento da prática é a
adoção de regulamentações extremamente restritivas sob a cobertura da
pseudo-precaução, buscando apenas a proteção contra penalidades potenciais
associadas à Lei 9.605 de 12.02.1998, que “dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e
dá outras providências”. Uma normalização racional não meramente copiada de
outras fontes, mas adaptada às condições nacionais, e cientificamente suportada
eliminaria totalmente a preocupação contra penalidades potenciais.
Uma grande reação se esboça
atualmente, nos organismos de controle ambiental, nos setores governamentais em
seu nível de decisão mais elevado, nos organismos de gestão de recursos
hídricos, nos setores empresariais de água e esgoto e nos meios acadêmicos,
contra a implementação de normas irracionalmente restritivas, que, por não
serem representativas das condições brasileiras, não protegem o meio ambiente e
a saúde pública dos grupos de risco, inibindo, por outro lado, a estratégia do
reuso que é, atualmente, o instrumento chave de gestão da água em áreas com
estresse hídrico. Evidentemente as práticas em consideração são associadas a
níveis de riscos de magnitudes diversas, que deverão ser, racionalmente
avaliadas para dar suporte a normas e códigos de práticas realistas.
9.2. Percepção e aceitação
pública da prática de reuso
O segundo fator,
potencialmente limitante, está associado a aspectos culturais e psicológicos de
nossa sociedade, face à percepção negativa do consumo de água reciclada e à
falta de confiança na segurança de sistemas avançados de tratamento e de
certificação da qualidade da água. Além do aspecto social ocorrem ainda temores
associados a riscos políticos, econômicos e ambientais.
Essas posturas sociais
negativas podem, entretanto, ser amenizadas através de educação ambiental,
informação básica sobre a segurança das tecnologias de tratamento e de
certificação a qualidade da água produzida por sistemas de reuso potável
direto. A execução de projetos de demonstração e posterior divulgação de
resultados de qualidade da água produzida e de estudos epidemiológicos
efetuados em associação, seria, também, uma ferramenta importante para mostrar
a viabilidade ambiental e de saúde pública, proporcionando resultados mais
visíveis para amenizar a percepção negativa da prática de reuso potável direto.
10. Conclusões e
Recomendações
O reuso potável indireto não
planejado, extensivamente praticado no Brasil, se constitui em opção
prejudicial tanto para o meio ambiente como para a saúde pública de usuários de
sistemas de distribuição de água, tratada através de sistemas convencionais.
Por outro lado, a implementação de sistemas de reuso potáveis indiretos
planejados é, atualmente, pouco viável nas condições brasileiras, uma vez que
mananciais subterrâneos e corpos hídricos superficiais, a grande maioria desses
últimos com elevados níveis de poluição, não apresentam condições legais e
técnicas para serem utilizados como atenuadores ambientais.
A mais importante das
mudanças de paradigmas que se fazem necessárias consiste em garantir o
abastecimento de água em áreas submetidas a estresse hídrico, através da
promoção da prática de reuso potável direto, sem haver necessidade de instalar
uma rede secundária para distribuição de água de reuso.
As razões e as condições
básicas que levarão a essa nova dimensão do setor saneamento são as seguintes:
(i) os mananciais para
abastecimento de água estão se tornando cada vez mais raros, mais distantes e
mais poluídos;
(ii) a tecnologia avançada,
hoje disponível, permite remover contaminantes, traços orgânicos e inorgânicos
e organismos patogênicos, permitindo a produção de uma água de reuso segura;
(iii) os custos de sistemas
avançados de reuso são equivalentes ou inferiores aos custos de implantação de
uma rede secundária para distribuição de água potável, sendo, portanto mais
econômico efetuar a distribuição da água de reuso potável através dos sistemas
de distribuição atualmente existentes e em suas ampliações. Essa proposta se
torna economicamente mais favorável quando o abastecimento é dependente da
construção de grandes adutoras com desnível elevado, pois permite a utilização
de água disponível localmente.
As companhias de saneamento
deverão desenvolver estudos e pesquisas, em conjunto com centros de pesquisas
certificados para:
(i) avaliar técnica e
economicamente operações e processos unitários, assim como sistemas de
tratamento avançados para reuso potável direto, dentro das condições
brasileiras;
ii) estudar o dimensionamento
e estabelecer critérios operacionais de reservatórios e certificação da
qualidade da água de reuso;
(iii) avaliar a possibilidade
e as implicações técnicas e econômicas para a utilização de redes existentes e
suas extensões para efetuar a distribuição de água potável de reuso;
(iv) desenvolver programas
educacionais e de conscientização para promover a aceitação pública da prática
de reuso potável direto. Argumentos relevantes são associados à garantia do
abastecimento e o fornecimento de água segura aos consumidores de sistemas
públicos de abastecimento; e,
(v) combater o procedimento
auto protecionista e imediatista dos órgãos controladores, que deverão ser
orientados para desenvolver, normas, padrões e códigos de prática realistas
baseados em estudos e pesquisas e não na cópia de normas e diretrizes
alienígenas que não representam nossas condições técnicas, culturais,
ambientais e de saúde pública.
É inexorável que, dentro de
no máximo uma década, a prática do reuso potável direto, utilizando tecnologias
modernas de tratamento e sistemas avançados de gestão de riscos e de controle
operacional, será, apesar das reações psicológicas e institucionais que a
constrange, a alternativa mais plausível para fornecer água realmente potável.
Além de resolver o problema de qualidade, o reuso potável direto estaria fortemente
associado à segurança do abastecimento, pois utilizaria fontes de suprimento
disponíveis nos pontos de consumo, eliminando, por exemplo, a necessidade da
construção de longas e custosas adutoras, que, geralmente, transferem água para
grandes centros urbanos coletadas de áreas afetadas por estresse hídrico.
(Ecodebate)
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