Pesquisadores reafirmam a importância da água: ativo
nacional estratégico e competitivo.
Em
relatório inédito, pesquisadores apontam soluções para o uso racional e maior
eficiência na gestão e na conservação da água no Brasil que, embora detenha a
maior reserva de água doce do planeta, padece de anomalias na sua distribuição
e qualidade, na relação demanda-oferta e na aplicação dos instrumentos legais; documento
é pioneiro ao compilar o conhecimento disponível sobre os recursos hídricos
brasileiros, sob a ótica da biodiversidade, dos serviços ecossistêmicos, do
patrimônio cultural e do bem-estar humano.
Insumo
vital, direito humano e elemento crucial para todos os setores estratégicos do
país – do agronegócio à indústria, passando por transporte, energia e saúde – a
água é o tema central do documento que a Plataforma Brasileira de
Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) lançou durante o 15º Congresso
Brasileiro de Limnologia. De autoria de 17 pesquisadores, o sumário para
tomadores de decisão do relatório temático “Água: biodiversidade, serviços
ecossistêmicos e bem-estar humano no Brasil” é dirigido a gestores e lideranças
nas esferas pública e privada, buscando sensibilizá-los para a complexidade, a
importância e a urgência de uma gestão eficaz da água no país.
O
documento contextualiza as ameaças aos recursos hídricos e aos ambientes
aquáticos, as oportunidades e o diferencial competitivo que o seu uso eficiente
possibilitam ao desenvolvimento e à economia do país e propõe práticas e
instrumentos para um melhor uso e manejo das águas brasileiras. O país possui a
maior reserva mundial de água – concentrando 12% da disponibilidade hídrica
superficial do planeta –, vastos reservatórios de água subterrânea e uma
circulação atmosférica que distribui umidade entre diversas regiões, sendo
capaz de regular o clima de todo o continente sul-americano. Abriga, ainda,
algumas das mais importantes áreas úmidas terrestres, o maior arquipélago
fluvial (Mariuá, no Parque Nacional de Anavilhanas, Rio Negro), a maior ilha
genuinamente fluvial (Ilha do Bananal, no rio Araguaia) e a maior ilha
fluviomarítima do mundo (Ilha do Marajó, na foz do rio Amazonas). “Apesar da
abundância, o Brasil trata mal o recurso, e algumas regiões já apresentam
problemas relacionados à segurança hídrica. No relatório, mostramos as
principais ameaças e apontamos direções para um melhor manejo e conservação dos
recursos hídricos por meio de mudanças na gestão, integração entre agências e
setores envolvidos e desenvolvimento de estratégias de conservação focadas nos
múltiplos usos da água”, explica Vinícius Farjalla, professor associado da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do estudo.
O
diferencial desse trabalho está na abordagem da questão da água não apenas sob
a dimensão de sua importância como recurso hídrico. “A água é muito mais do que
isso, é um componente-chave da biodiversidade, é patrimônio cultural e está
atrelada ao bem-estar da população brasileira de inúmeras maneiras”, aponta
Aliny Pires, professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
coordenadora do documento. Os autores coincidem na avaliação de que a água é um
ativo nacional que, se usado com sabedoria e eficiência, enseja uma grande
oportunidade para garantir ao país um desenvolvimento econômico e social
bastante competitivo.
Vale
lembrar, no entanto, que, em que pese a riqueza do Brasil no que se refere à
agua doce, ela está naturalmente distribuída de forma muito desigual pelo país,
onde também se observa grandes contrastes na relação demanda-oferta, na
aplicação dos instrumentos legais e nos usos dos ambientes aquáticos. Ou seja,
os desafios de gestão não são uniformes por todo o território nacional. O texto
salienta que os instrumentos de gestão vigentes não contemplam os vários
aspectos relacionados a esses múltiplos usos. Consequentemente, a abundância da
água não assegura a segurança hídrica do país, comprometendo a biodiversidade
aquática, diversas atividades econômicas e o bem-estar da população.
“É
premente a necessidade de se entender o caráter multissetorial da governança da
água, os vários agentes interessados e as diferentes realidades regionais. Só
assim poderemos aplicar as ferramentas apropriadas e implementar uma gestão de
longo prazo efetiva para garantir a segurança hídrica desta e das futuras
gerações”, afirma Pires. Assim como convergem na visão sobre a oportunidade
suscitada pelo potencial hídrico do Brasil, os coordenadores sinalizam que o
principal alerta do estudo é o de que o aproveitamento do diferencial
competitivo nacional só se dará se o país souber assimilar e integrar a sua
heterogeneidade em relação à quantidade, à qualidade, aos diferentes usos e à
legislação dos recursos hídricos.
Dependência das águas
Praticamente
todas as atividades econômicas no Brasil dependem de suas águas, sendo que a
agricultura irrigada e a pecuária são os principais usuários consumindo,
respectivamente, 750 mil e 125 mil litros de água por segundo. A matriz
energética elétrica brasileira depende de cerca de 65% da produção hidrelétrica
e a indústria utiliza mais de 180 mil litros de água por segundo. Em diversas
regiões do país, o transporte de carga e de pessoas também precisa da manutenção
da vazão presente nos ambientes aquáticos. O Relatório lista diversos outros
exemplos de serviços e atividades demandantes de grandes quantidades de água, o
que demonstra a sua centralidade na economia e nos modos de vida da população
(ver ‘Números e fatos em destaque’ no documento ‘Complementos’ anexo).
A
gestão territorial da água envolve, ainda, aspectos transfronteiriços, uma vez
que as reservas nacionais possuem dependência intrínseca de nações vizinhas.
Segundo o documento, “o Brasil recebe cerca de 2,6 trilhões de m3 de
água por ano de outros países e escoa aproximadamente 800 bilhões de m3
de água por ano”. A construção de barragens no sopé dos Andes peruanos, por
exemplo, poderá comprometer as condições ambientais da várzea no rio Amazonas
em território brasileiro, devido à retenção parcial de sedimentos nas represas,
bem como aos seus efeitos sobre o regime hidrológico.
Ameaças
De
acordo com o Relatório, as principais ameaças às águas brasileiras são as
mudanças climáticas, as mudanças no uso do solo, a fragmentação de ecossistemas
e a poluição. Já são notáveis os efeitos de eventos extremos de precipitação e
seca, que vão aumentar ao longo do século, alterando a dinâmica e a
configuração dos habitat aquáticos. Anos de seca prolongada nas regiões Sudeste
e Centro-Oeste do Brasil resultaram em uma perda estimada de R$ 20 bilhões na
receita agrícola em 2015, um recuo de quase 7% em relação ao ano anterior.
“Mudanças no uso do solo em função da expansão agrícola e do represamento de
rios podem comprometer a disponibilidade e a qualidade da água em todo o país,
afetando os usos pela biodiversidade aquática e pela população humana. Tais
mudanças, bem como a transposição de rios, promovem modificações na dinâmica e
na estrutura dos ambientes aquáticos causando perda na conectividade e
alteração no regime hidrológico, o que favorece o estabelecimento de espécies
exóticas”, diz o texto.
Os
autores mencionam o aumento no aporte de poluentes aos rios, que acarreta
prejuízos à biodiversidade e aos serviços providos por ecossistemas aquáticos,
e destacam que cerca de 40% do território nacional apresenta níveis de ameaça
aos corpos hídricos de moderado a elevado. Ressaltam, ainda, o papel dos
poluentes emergentes, tais como hormônios e antibióticos, que não são removidos
pelas vias de tratamento convencionais e cujos efeitos para a biota aquática e
a saúde humana não foram plenamente explorados. No estado do Rio de Janeiro,
por exemplo, 48% dos rios monitorados são impróprios para tratamentos convencionais
e 50% da água captada e distribuída no sistema de abastecimento do Guandu é
utilizada para tratar esgotos.
Avanços e receio
Um
dos avanços mais recentes da agenda da água no Brasil foi o Plano Nacional de
Segurança Hídrica (PNSH), mecanismo criado pelo Ministério do Desenvolvimento
Regional e pela Agência Nacional de Águas que propõe a implementação de
projetos de infraestrutura para assegurar água aos brasileiros até 2035.
Segundo o estudo, a cada R$ 1 investido em infraestrutura hídrica, mais de R$ 15
são obtidos em benefícios associados à manutenção de distintas atividades
produtivas no país. Entre 2004 e 2016, estima-se que o Brasil ganhou mais de R$
15 bilhões por ano com investimentos realizados em saneamento, incluindo a
promoção do turismo e a redução com gastos em saúde.
O
foco do PNSH é a redução dos elevados valores de insegurança hídrica previstos
para 2035 caso nenhuma ação seja realizada no país e ele se soma a outros
instrumentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos, formando a atual base
legal para a gestão dos recursos hídricos nacionais. No texto, os autores
chamam a atenção para a relevância do fortalecimento desse Plano de forma a
assegurar a disponibilidade hídrica no Brasil. “Vejo com certo receio como a
pauta ambiental vem sendo tratada pelo atual governo, declarações do presidente
Bolsonaro e de outros gestores do governo federal, como o próprio Ministro do
Meio Ambiente, indicam, no melhor cenário, pouca atenção às questões
ambientais, como a conservação de áreas naturais, que são importantes recargas
de água tanto para o abastecimento urbano, como para diversas atividades
produtivas, e o combate às mudança climáticas, que terão grande impacto na
oferta e na qualidade dos recursos hídricos brasileiros”, conta Farjalla.
Saneamento e
infraestrutura
O
Brasil dispõe de base legal para o enfrentamento dos problemas relacionados aos
recursos hídricos e ao saneamento básico. Os benefícios dos investimentos em
infraestrutura (previstos no PNSH) e da universalização do saneamento (inclusa
no Plano Nacional do Saneamento Básico) são também amplamente conhecidos,
sobretudo quanto à saúde das pessoas e à conservação dos ambientes aquáticos.
Os autores do estudo alertam, no entanto, que os mecanismos necessários para
sua implementação efetiva não são plenamente viabilizados para uma aplicação em
escala e sinalizam que, apesar de alguns incentivos, o país ainda precisa
percorrer um longo caminho nessa área.
O
relatório aponta que a universalização do saneamento básico trará ao país ganhos
de R$ 1,5 trilhão – valor quatro vezes maior que o gasto estimado para sua
implementação – e diminuirá de forma expressiva despesas com saúde humana, com
destaque para as regiões urbanas que abrigam 75% da população brasileira. A
integração entre iniciativas que visem o estabelecimento de redes de saneamento
e esgoto e esforços de recomposição da vegetação nativa e de adoção de
diferentes tecnologias será capaz de recompor serviços ecossistêmicos perdidos.
“O uso integrado de soluções baseadas na natureza, como a restauração florestal
e a conservação de áreas úmidas – com infraestrutura convencional – é o caminho
mais seguro, menos custoso e com maior benefício para assegurar a utilização
dos recursos hídricos e a conservação da biodiversidade aquática”, diz o texto.
(ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário