De
um lado, um cenário de uso indiscriminado de agrotóxicos, intoxicações, do
outro, cultivos mais sustentáveis, relações de trabalho e comercialização mais
justas. É essa a solução que a Agroecologia promete oferecer ao
Planeta. Mas dá mesmo para sonhar com um futuro sem agrotóxicos?
A
vice-presidente executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para
Defesa Vegetal – Sindiveg (que representa a indústria dos agrotóxicos), Silvia
Fagnani, argumenta que, considerando o modelo de produção “adotado” no Brasil,
o uso de agrotóxicos “é a única forma viável de suprir a demanda por produção
de alimentos e energia necessária para alimentar nove bilhões de pessoas em
2050”.
Fagnani
não deixa dúvidas do pensamento que rege o modelo de produção agrícola
hegemônico no Brasil: “O uso da tecnologia protege os cultivos, aumentando a
produtividade, e poupam (sic) tempo de tarefas e, sobretudo, o enorme esforço
físico dos agricultores e trabalhadores rurais. O consumo de defensivos
agrícolas no Brasil é demandado, além disso, pelo fato de sua agricultura estar
sob o clima tropical, o que exige emprego sistemático de tecnologias para
controle de pragas e doenças. Além de contar com até três safras anuais, a
produtividade no Brasil cresce de maneira muito mais acelerada do que a área
plantada, aumentando a disponibilidade de alimentos preservando o meio
ambiente”.
Para
a presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e
professora da Universidade Federal de Viçosa, Irene Maria Cardoso, a
agroecologia é sim capaz de alimentar o mundo. “O que a agroecologia não é
capaz é de alimentar o agronegócio, porque tem uma cadeia de insumos para
agricultura que coloca o agricultor subserviente à indústria. Este pensamento
de que o agronegócio o alimenta o Brasil, não é verdade. Ele alimenta a balança
comercial. Se não repensarmos o Brasil como produtor primário, vamos ficar
refém do agronegócio. Então é o modelo de desenvolvimento que tem de ser
repensado”, afirma.
Esse
novo modelo, segundo ela, passa por cadeias curtas de comercialização, cortando
diversos intermediários, além da valorização e utilização do saber tradicional,
e não apenas o técnico. “É outra lógica. Antes, quem sabia tudo da agricultura
eram os técnicos. Só que esses agricultores desenvolveram conhecimento na
compreensão ecológica e cultural dos sistemas alimentares, porque quando eles
manejam tem um componente cultural, não é só técnico. Esse componente cultural,
de conhecimento dos processos e interações dos sistemas alimentares, foi
desenvolvido em 10 mil anos. Como é que pode pegar esse conhecimento e jogar no
ralo? Sem ele, a agroecologia não vai sustentar o mundo”, afirma Irene Cardoso.
Mas,
como fazer que esse conhecimento seja identificado, valorizado e reconhecido? A
pesquisadora da Universidade Federal de Viçosa afirma que “é preciso dizer aos
cientistas que eles não são os únicos detentores da verdade”: “Isso é derrubar
um paradigma científico. Eles falam que agroecologia não pode alimentar o
mundo, porque não querem perder o lugar na produção de alimentos no mundo. Uma
produção de qualidade questionável, que traz resultados danosos ao meio
ambiente e ao homem, comprovado em inúmeros estudos científicos. O que a
agroecologia não é alimenta é este pensamento que quer se beneficiar de uma
agricultura perversa, com os agricultores, com os consumidores, com a natureza”,
destaca.
(Nesta
parte editada do documentário “Caminhos do Rio Experiências em agroecologia no
Rio de Janeiro”, produzido pela ANA – Articulação Nacional de Agroecologia, é
possível ver um pouco de como esse conhecimento é identificado e aproveitado.
Veja o que dizem Seu Nelson e sua filha Indeco, agricultores orgânicos, e a
pesquisadora Mônica Cox, do Departamento de Geografia Urbana, da Universidade
Federal Fluminense (UFF))
Assista
ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?time_continue=79&v=kutyarS4sBE&feature=emb_logo
Espaços de reencantamento
Para
o pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador da Escola Nacional
de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Marcelo Firpo, o fortalecimento da pauta da
agroecologia passa pela parceria com a saúde coletiva. “A promoção da saúde é
fundamental para se pensar em outro modelo de sociedade”, diz.
As
feiras agroecológicas nas cidades seriam justamente os locais de construção
deste novo modelo. “São espaços profundos de outro tipo de produção de
conhecimento, de relação solidária, que resgatam também o processo de relação
com as crianças modernas, que vão descobrir que o alimento não é algo que está
nas prateleiras do supermercado, dentro de caixinhas coloridas. É preciso
reencantar também a produção de alimentos no processo de produção de vida”,
diz.
Segundo
ele, a feira é um espaço importante, porque se compra produtos que estão fora
das prateleiras convencionais. “Os supermercados lucram bastante em relação ao
produtor. As feiras orgânicas têm o mecanismo de venda mais direta, sem
intermediários”, diz. Ele ressalta que nas feiras existe ainda um processo
cultural e político de interlocução entre consumidores e produtores, sobre como
os produtos foram obtidos, a qualidade dos alimentos etc. “Há uma relação
direta com os produtores muitas vezes de uma agricultura periurbana que é
totalmente invisibilizada dentro da própria cidade”.
O
Rio de Janeiro conta hoje com 17 feiras orgânicas pela cidade (no Brasil, ao
todo, são 500). É um modelo que vem dando certo. Em 2006, no encontro estadual
preparatório ao II ENA – Encontro Nacional de Agroecologia, foram mapeadas 32
experiências agroecológicas no Rio de Janeiro. Contudo o número já deve ser bem
maior – uma vez que somente a Associação Agroecológica de Teresópolis conta com
50 unidades produtivas associadas.
(Veja
abaixo uma parte do documentário “Caminhos do Rio Experiências em agroecologia
no Rio de Janeiro”, produzido pela ANA – Articulação Nacional de Agroecologia
(assista ao lado, a íntegra do documentário), que aborda as experiências
agroecológicas. No vídeo, os depoimentos dos agricultores orgânicos Levy
Gonçalves de Oliveira e Paulo Aguinaga, da Associação de Produtores Orgânicos
do Vale do Rio Preto (Pretópolis/RJ) e da consumidora Patrícia).
Assista
ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?time_continue=9&v=WcFzF59cg30&feature=emb_logo
A diversidade pelos neo-rurais
Uma
dessas unidades é a Fazenda Arca de Noé, em Sapucaia (RJ), tocada por um grupo
de quatro amigos oriundos do ‘êxodo urbano’. “Não estamos tão distantes assim
dos nossos avós”. É deste modo que Hugo Souza justifica a opção de trocar a
agitação da cidade grande pela calmaria do campo. Ele chegou a cursar
Sociologia, mas foi mesmo com a pá e a enxada que encontrou seu caminho.
O
retorno ao campo tem sido tão constante que até foi cunhada uma denominação
para quem ousa ir da capital ao interior: são os neo-rurais. E são eles,
principalmente, que têm ficado à frente do processo de transição da agricultura
quimicamente-dependente, que utiliza intensivamente agrotóxicos, para a
agroecologia.
A
ex-produtora cultural Silvana Pedroni, também parte do grupo, diz que os amigos
e familiares que vivem na cidade se preocupam com uma “suposta falta de
recursos”, como garantias trabalhistas, seguro do carro, ou plano de saúde.
“São coisas que para a gente não faz a menor diferença”.
Por
outro lado, nem sempre a aceitação dos neo-rurais é fácil, especialmente no
âmbito das associações e espaços coletivos. “Alguns de agricultores
tradicionais têm uma postura meio grosseira com pessoas de minha origem, médio
urbana. ‘Anda meio manco’ às vezes. Eu procuro estar dentro da realidade dos
caras. Eu sou agricultor. Entrei no mundo deles. Mas tem um lado, que não vou
negar, de formação intelectual”, afirma o ex-economista Roberto Celig, o Beto,
um dos fundadores e ex-presidente da Associação de Produtores Agroecológicos de
Teresópolis e que, por vezes, é chamado para intermediar reivindicações da
comunidade devido a maior facilidade de oratória.
Fazenda
Arca de Noé surgiu em 2010 por meio de um projeto para o cultivo de pinhão
manso, uma planta utilizada para a produção de biodiesel. O cultivo da planta
foi pensado dentro de um Sistema Agroflorestal (SAF), sistema que reúne as
culturas agrícolas com as culturas florestais gerando um meio de produção
sustentável, no qual os vários elementos da floresta plantada trabalham em
simbiose.
O
primeiro problema que eles se depararam na implantação do sistema foi a
braquiária (um capim de pasto, considerado “praga” em alguns cultivos), que
tomou conta do cultivo no início. Para solucionar o problema, eles iniciaram
outros cultivos, como milho, feijão, abóbora e, por fim, a mandioca. Então,
eles começaram a roçar a braquiária, na medida em que cuidavam da mandioca e
que o margaridão (outro cultivo introduzido) sombreava a planta. “Se você tem
estratégia, para a sequência do sistema, uma coisa vai puxando a outra. A
proposta deste sistema é que seja gratificante seu trabalho aqui dentro”, diz
Victor Rolomcherault, também produtor da Arca de Noé.
Foram
mais de 20 espécies introduzidas e outras mais que surgiram naturalmente.
Atualmente o principal produto da SAF é a banana, mas a agrofloresta também dá
hortaliças e outros cultivos, como cana. “É um sistema vivo. É impressionante a
quantidade de bichos que vem aqui: cachorro do mato, guaxinim, tatu. O milho
que a gente produziu foi em grande parte para [consumido por] os animais”,
afirma Victor.
No
entanto, Hugo ressalta que a implantação de um sistema desses necessita de um
contexto de comercialização. “Você pode processar esses [alimentos], agregar um
valor naquilo ali. A implementação de uma agrofloresta tem que ser em um local
pronto para receber estes produtos”, diz.
Uma
parte dos produtos da Arca de Noé chega à Feira Agroecológica de Teresópolis já
processada, em forma de bolo de aipim, geleia de jabuticaba, bolo de amendoim,
pão de biomassa de banana verde e fubá de milho branco. Mas a fazenda vai além
da agrofloresta: no local, ainda há criação de frangos, produção de compostagem
e apicultura.
Ex-operários da verdura
A
Associação de Produtores Agroecológicos de Teresópolis nasceu em 2005, junto a
Feira Agroecológica de Teresópolis, que funciona tradicionalmente às
quartas-feiras e sábados na cidade. O produtor Roberto Celig afirma que o
número de agricultores associados só cresce, mas que a marca da associação
ainda é a união, como “uma família”. Questionado sobre os motivos que levam os
produtores a começar a produzir alimentos agroecológicos, ele é categórico:
“Quebra com o [cultivo] convencional, passa mal, fica doente [devido a
exposição a agrotóxicos]”. Hugo Souza, também associado, explica: “O próprio
viver dá uma castigada. Não é a gente que bate na porta”, diz.
De
acordo com eles, a mudança da produção convencional para a agroecológica vai
além da aplicação ou não de insumos químicos. “Na escala, quando você vai fazer
conta com o tanto que se gasta com insumo, transporte etc., a pessoa pode até
tirar uma receita maior, mas ainda está pensando na lógica anterior, de
quantidade. É uma transição também este momento”, conta Silvana Pedroni.
Os
agricultores são unânimes em afirmar que a vantagem não é financeira: afinal,
embora o valor do produto seja maior, o manejo dos cultivos exige muito mais
dos produtores, e consequentemente, a quantidade diminui. Até mesmo os insumos
naturais têm valores mais elevados: a saca de ração orgânica para alimentar os
frangos, por exemplo, custa em torno de R$ 100, o dobro da convencional.
O
retorno é muito mais subjetivo e impalpável. Além da saúde, o prazer está, por
exemplo, em cultivar alimentos diversos, de qualidade e de “verdade”, àqueles
que os próprios agricultores consomem [é comum que os produtores que cultivam
alimentos com os agrotóxicos tenham uma horta à parte para consumo próprio,
realidade que se repete na região, segundo técnicos da Cedro, que acompanham
900 famílias].
Hugo
acrescenta uma vantagem que a maioria dos produtores de sua região não possui:
a feira. “A troca de energia é toda semana: as pessoas vêm e agradecem. Não é
só dinheiro. É uma coisa que meu vizinho, que é agricultor de nascença, não
tem”. Beto concorda: “As pessoas vão na feira bater papo. Todo mundo conversa”.
Em Teresópolis, toda a produção convencional é escoada para os centros de
distribuição como o Ceasa. A única feira da cidade é a agroecológica.
A
verdadeira mudança preconizada pela agroecologia é profunda porque atinge
exatamente a visão de mundo dos agricultores. “Meu vizinho ganha mais do que
eu, com certeza. Ele planta um mundo de alface. Nem precisa sair de casa, que o
atravessador vai na porta buscar a produção. Mas essa vida eu não quero. Ele é
um operário da verdura”, enfatiza Beto.
E o futuro?
Em
plena instabilidade econômica, as previsões do mercado de orgânicos são
otimistas: após crescer 25% em 2015, a expectativa é de um aumento de 35% em
2016. “Tem muito para crescer, até porque o convencional está em baixa também”,
acredita a agricultora Silvana Pedroni.
Já
Beto, que começou vendendo na Cobal [em Botafogo, no município do Rio de
Janeiro] no final dos anos 1980 e vendeu para supermercados, mas hoje só
comercializa seus alimentos na Feira Agroecológica de Teresópolis, não está tão
otimista. Segundo ele, o consumo de orgânicos “está dentro da população há
bastante tempo. Mas quando a renda baixa acaba a moda. Agora vai entrar em uma
estagnação”, diz.
A
professora Irene Cardoso lembra que a agricultura familiar já alimenta o mundo
– 70% do que vai para a nossa mesa já vem dos pequenos agricultores. “Nem todo
agricultor familiar é agroecológico, mas todos podem se transformar em um”,
diz. Ela reconhece avanços desde quando a agroecologia começou a ser germinada,
na década de 1980, com mais agricultores e consumidores sensibilizados e mais
manejos agroecológicos consolidados, em todas as regiões do Brasil.
Mas
será que realmente teremos a chance de ver essa mudança de paradigma no modelo
agrícola?
“Claro que a gente gostaria que toda a agricultura hoje fosse agroecológica. Mas entendemos que isso não é possível sem reforma agrária, sem uma utilização da água diferenciada: a agricultura usa água demais, projetos enormes de irrigação. E isso é uma construção da sociedade”, finaliza Irene.
Esta é a sétima reportagem da série Agrotóxicos: a história por trás dos números, realizada pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), com matérias sobre uso de agrotóxicos no Brasil. Os depoimentos dos agricultores colhidos nesta série de reportagens foram realizados na Caravana Agroecológica Sudeste. (ecodebate)
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