Sem frear mudanças climáticas, humanidade sofrerá com desigualdades e novas pandemias.
Segundo ele, nessas pesquisas
há dados de que o derretimento de áreas geladas pode trazer outros problemas
além da elevação da temperatura global. “Entre os efeitos do aquecimento global
está a intensificação do derretimento de geleiras, mas também do permafrost,
solo congelado que ocorre em baixas latitudes. Desse modo, vírus e bactérias
que estavam congelados voltam à superfície terrestre e podem infectar tanto
seres humanos quanto outros animais”, explica. Isso tudo sem falar nos
desmatamentos, pois “a diminuição das áreas com cobertura vegetal original causada
pelo desmatamento enfraquece, quando não elimina, barreiras geográficas que nos
distanciam de micro-organismos”.
Por fim, sem conter o
desequilíbrio ambiental, se tivermos muita sorte e não formos assolados por
outras pandemias, nossa sociedade também terá de lidar com o aumento ainda
maior das desigualdades. “Os países de renda mais baixa serão os mais afetados
pelos efeitos do aquecimento global. Nunca é demais relembrar que as alterações
nos padrões de chuva podem causar períodos de elevada pluviosidade ou secas
severas e prolongadas”, aponta. E secas que, por final, “levam à migração
forçada, inclusive internacional, o que causa tensões entre diferentes unidades
geográficas”.
Wagner Costa Ribeiro é
geógrafo, formado pela Universidade de São Paulo – USP. Possui doutorado em
Geografia Humana pela mesma instituição, e é professor titular do Departamento
de Geografia, do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana e do Programa de
Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP. Ainda realizou estudos de pós-doutorado
na Universidad de Barcelona, também tendo atuado como professor visitante na
Universidad de Salamanca, Universidad de Sevilla e na Universidad de Caldas. É
coordenador da Área Temática Águas Transfronteiriças da rede de pesquisa
Waterlat. É um dos autores de Livro branco da água. A crise hídrica na Região
Metropolitana de São Paulo em 2013-2015: origens, impactos e soluções (São
Paulo: Instituto de Estudos Avançados, 2018).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a
experiência da pandemia causada pelo novo coronavírus pode impactar a relação
entre seres humanos e meio ambiente?
Wagner Ribeiro – Apesar da
desinformação gerada por inúmeras notícias falsas sobre a covid-19, acredito
que a situação que enfrentamos pode envolver mais pessoas na necessária revisão
das relações sociais e com a natureza. Não resta dúvida de que o isolamento
físico diminuiu os deslocamentos e que esse tempo “adicional” pode ser usado
para repensar as desigualdades sociais e o desequilíbrio ambiental em curso.
Mas não podemos ser ingênuos porque, como indicam vários trabalhos, uma
diminuta parcela da população ganhou ainda mais com a pandemia e não emitiu
sinais que quer colaborar para mudar o quadro complexo que enfrentamos.
Além disso, as grandes
empresas de informática induziram rapidamente o uso desse tempo adicional ao
proporem eventos virtuais de várias ordens, como shows, eventos, jogos e até
relações amorosas e sexuais. Portanto, não estou certo que, mesmo com mais
tempo “livre”, aumentou a quantidade de pessoas que refletem sobre a
desigualdade social e o caos ambiental em que vivemos.
Uma diminuta parcela da
população ganhou ainda mais com a pandemia e não emitiu sinais que quer
colaborar para mudar o quadro complexo que enfrentamos – Wagner Ribeiro
IHU On-Line – Em 2016, o senhor nos concedeu
uma entrevista em que refletia acerca do Antropoceno e foi bem claro ao afirmar
que se não mudarmos nosso estilo de vida iremos sucumbir. O que mudou de lá
para cá? Nos aproximamos ou nos distanciamos dessa possível mudança de estilo
de vida?
Wagner Ribeiro –
Infelizmente, muito pouco mudou nesses quatro anos. Mesmo com o aumento de
conhecimento científico sobre os efeitos dramáticos de processos globais, como
as mudanças climáticas e o modelo de expansão da produção capitalista sem
limites, não verificamos uma redução dos níveis de emissão dos gases de
efeito-estufa nem do consumo, que só caíram muito recentemente em função da
pandemia. É curioso porque, em 2015, tivemos a Encíclica Laudato Si’, elaborada
pelo Papa Francisco, que apontou diversos aspectos importantes sobre os
impactos no que ele chamou de “casa comum” desse estilo de vida baseado no
consumo e descarte rápido de mercadorias. Mas ele ainda não conseguiu mobilizar
muita gente para essa questão. Observa-se, ao contrário, uma resistência em
setores da Igreja Católica em implementar as necessárias reformas contidas no
documento papal.
Em termos políticos, o mundo
retrocedeu com a eleição de líderes populistas de extrema direita em diversos
países. O uso de notícias falsas em eleições passou a ser recorrente, associado
ao descrédito das explicações científicas. Esse conjunto de políticos passou a
comandar países estratégicos e eles influenciam a opinião pública, por meio da
difusão de notícias falsas e da destruição de reputações. O resultado é que,
lamentavelmente, em um momento dramático da trajetória humana na Terra, não
temos líderes responsáveis no comando de países importantes, o que dificulta o
combate ao vírus e aos seus efeitos junto à população.
Entretanto, o contato com o
vírus Sars-Cov-2 trouxe um alento. Nunca se difundiram tantos conceitos
científicos junto à população como nos últimos seis meses. Análises de
gráficos, modelos de análises epidemiológicas, alternativas para vacinas e
fármacos foram divulgados pela imprensa. Resta saber se essa articulação vai
perdurar e, principalmente, terá consequências junto à opinião pública em
eleições.
Em um momento dramático da
trajetória humana na Terra, não temos líderes responsáveis no comando de países
importantes, o que dificulta o combate ao vírus e aos seus efeitos junto à
população – Wagner Ribeiro
Negacionismo resiste
Porém, esse movimento foi (e
ainda é) duramente contestado por negacionistas de diversas matrizes que tentam
desqualificar argumentos científicos sem base plausível. Essa batalha por
ideias está em curso em redes sociais, com vantagem aos negacionistas,
infelizmente. Talvez porque quem faz ciência não tenha tempo para também atuar
em redes sociais. Apesar das dificuldades, muitos pesquisadores aos poucos
passam a frequentar redes sociais, mas ainda de modo tímido. Nesse contexto,
organizamos uma série de seminários sobre a pandemia.
Todo esse material pode ser acessado no vídeo abaixo: https://www.youtube.com/watch?v=TlqNC8Wa2H4&feature=emb_logo.
Nesta edição, gravada no dia 25 de maio de 2020, o geógrafo Wagner Costa Ribeiro (http://lattes.cnpq.br/2562793611808071), professor Titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), analisa cenários pós #Covid-19 a partir das diferentes formas de combate à doença e seus impactos sociais e ambientais na globalização e no multilateralismo, seguido por questões formuladas por participantes.
IHU On-Line – O senhor
pesquisa e acompanha as negociações internacionais sobre mudanças climáticas.
Como observa os movimentos dessas negociações ao longo dos últimos anos? Em
alguma medida, a experiência da pandemia deve impactar essas negociações?
Wagner Ribeiro – Quem
acompanha as discussões socioambientais há décadas não ficou surpreso com a
eclosão da pandemia. Ela estava prevista, só não sabíamos exatamente quando
ocorreria. Os estudos sobre mudanças climáticas e os que tratam do desmatamento
apontavam essa possibilidade.
A diminuição das áreas com
cobertura vegetal original causada pelo desmatamento enfraquece, quando não
elimina, barreiras geográficas que nos distanciam de micro-organismos. Ou seja,
animais que convivem com esses vírus e bactérias sem apresentar doenças podem
transmitir para os seres humanos e desencadear novas pandemias porque passam a
circular mais próximos dos grupos humanos.
Tudo isso já era conhecido antes
da eclosão da covid-19. A ordem ambiental internacional das mudanças climáticas
não resultou em ações de mitigação ousadas de acordo com o que os estudos
indicam como necessário para atenuar o aquecimento global. O Protocolo de
Kyoto, de 1997, primeira iniciativa de redução de emissões com metas definidas,
foi pouco efetivo. O Acordo de Paris, de 2015, também mostrou uma ambição
inferior ao que os cientistas indicavam para frear o ritmo do aquecimento.
A diminuição das áreas com
cobertura vegetal original causada pelo desmatamento enfraquece, quando não
elimina, barreiras geográficas que nos distanciam de micro-organismos – Wagner
Ribeiro
Efeito pandemia
Wagner Ribeiro – Como apontam
diversos relatórios do Painel Internacional das Mudanças Climáticas (IPCC, em
inglês), os países de renda mais baixa serão os mais afetados pelos efeitos do
aquecimento global. Nunca é demais relembrar que as alterações nos padrões de
chuva podem causar períodos de elevada pluviosidade ou secas severas e
prolongadas. Chuvas intensas em áreas com habitações precárias podem resultar
em perdas materiais e de vidas seja por enchentes, seja por escorregamento de
vertentes.
Os países de renda mais baixa
serão os mais afetados pelos efeitos do aquecimento global – Wagner Ribeiro
As secas intensas levam à
migração forçada, inclusive internacional, o que causa tensões entre diferentes
unidades geográficas. Comunidades que vivem à beira-mar também podem ser
afetadas pela elevação dos oceanos. Esse conjunto de situações está mais
presente em países de renda baixa, portanto, as consequências das mudanças
climáticas podem agravar e muito as desigualdades sociais presentes no mundo.
IHU On-Line – Por outro lado,
como mitigar as desigualdades a partir da preservação e recuperação ambiental?
Wagner Ribeiro – Existem diversos
caminhos para mitigar as desigualdades, mas elas devem convergir para o combate
à desigualdade social, respeitando os diversos grupos sociais e seus
respectivos modos de vida. Em áreas urbanas o desafio é criar habitação e
trabalho decentes, associado à recuperação ambiental. Existem várias ações que
podem ser realizadas, como instalar saneamento básico, recuperar corpos de
água, ampliar áreas verdes, intensificar a arborização, ampliar as ciclovias,
entre outras.
IHU On-Line – Qual a sua análise
sobre o novo marco do saneamento?
Wagner Ribeiro – O marco do
saneamento gera dificuldades para oferecer água à população que vive em áreas
mais afastadas, em especial em pequenos municípios, porque ele acabou com o
investimento cruzado, que obrigava o investimento tanto em metrópoles, nas
quais a densidade urbana o torna rentável, quanto em cidades pequenas. Além
disso, aposta na privatização, diferente do que ocorre em diversos lugares no
mundo.
Depois de 20 a 30 anos de o
capital privado comandar o saneamento em diversas cidades de diversos tamanhos,
verifica-se que a universalização do acesso à água e ao esgoto não ocorreu
nessas localidades. Também existem trabalhos que mostram que a qualidade da
água ofertada ao consumo diminuiu. E todos são unânimes em um ponto: as tarifas
ficaram mais caras. Ou seja, o capital privado se mostra ineficaz para garantir
o acesso à água.
O capital privado se mostra
ineficaz para garantir o acesso à água – Wagner Ribeiro
Mais de 200 cidades dispersas
pelo mundo retornaram à gestão estatal, ainda que em alguns casos com
participação associada ao capital privado. Berlim, Buenos Aires, Atlanta,
Jacarta, para citar alguns exemplos, retomaram a gestão pública da água e
mostram que a privatização não foi bem-sucedida.
IHU On-Line – Num Brasil em que
grande parte da população ainda não tem acesso à água tratada, discute-se a
‘privatização da água’. Quais os riscos? Como conceber outros caminhos que
garantem acesso universal à água tratada?
Wagner Ribeiro – Para garantir o
acesso à água e ao saneamento é preciso uma ação coordenada de diversos níveis
de gestão e investimentos de curto, médio e longo prazo. Um município com
pequena capacidade de captar impostos não tem como financiar o acesso ao
saneamento. Por isso é fundamental apoio de governos estaduais e federal.
Uma gestão eficiente da água por
meio do Estado deve desestimular o desperdício da água, o que não ocorreria com
uma gestão privada que ganharia mais caso o consumo aumentasse. Citando
novamente a crise em São Paulo, foi mantido o fornecimento a grandes usuários
de água em plena escassez para honrar contratos firmados nos quais eles pagam
mais barato caso mantenham um consumo elevado. Ou seja, eram estimulados a
consumir mais para pagar menos enquanto para parte expressiva da população a
água estava racionada, com cortes diários, que em alguns bairros prolongou-se
por dias.
Por fim, sempre que a gestão
privada ocorre ela necessariamente deve buscar o lucro, o que torna o produto
mais caro ao consumidor final. Já o Estado pode, e deve, praticar tarifas
sociais, além de realizar investimentos sem preocupar-se com sua remuneração,
em prol do combate à desigualdade social, o que é fundamental no Brasil.
(ecodebate)
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