Em 2014 São Paulo enfrentou a maior crise hídrica
dos últimos tempos. O Rio Tietê provocou grandes inundações nas partes baixas
da cidade, causando transtornos imensuráveis no tráfego, por si só já tão
complicado. Por outro lado, o Sistema Cantareira, responsável por grande parte
do abastecimento da cidade, entrou em seu volume morto, provocando um
racionamento de água sem precedentes nas últimas décadas.
Essa situação ressuscitou o antigo projeto de
transposição de águas da bacia do Rio Paraíba do Sul. Desse modo, São Paulo
passaria a receber água de duas bacias externas: a bacia do Piracicaba, que
abastece o Sistema Cantareira, e a bacia do Rio Paraíba do Sul, que já abastece
a cidade do Rio de Janeiro. Sobre isso, assim se manifestou Hespanhol (2014):
A política de importar água de bacias cada vez mais
distantes para satisfazer o crescimento da demanda começou há mais de dois mil
anos com os romanos, dando origem aos seus famosos aquedutos. A prática ainda
persiste, resolvendo, precariamente, o problema de abastecimento de água de uma
região, em detrimento daquela que a fornece. As soluções mais modernas em
termos de gestão de recursos hídricos consistem em tratar e reusar os esgotos
já disponíveis nas próprias áreas urbanas para complementar o abastecimento
público.
Hespanhol (2012) já havia dito:
A sistemática atual é pré-histórica e irracional,
resolvendo precariamente o problema de abastecimento de água em uma região, em
detrimento daquela que a fornece. Há, portanto, necessidade de adotar um novo
paradigma que substitua a versão romana de transportar sistematicamente grandes
volumes de água de bacias cada vez mais longínquas e de dispor os esgotos, com
pouco ou nenhum tratamento, em corpos de água adjacentes, tornando-os cada vez
mais poluídos.
A notícia do colapso hídrico na capital paulista
passou a ser tema diário dos telejornais e ultrapassou as fronteiras do país. A
pesquisadora da Universidade Stanford, na Califórnia, Newsha Ajami, comentou a
crise hídrica com espanto ao se dar conta que o problema não é de falta de
água: – Tem um rio passando na cidade e vocês estão sem água? Nós (na
Califórnia) realmente não temos água, pois não está chovendo e os nossos rios
estão secos.
Hespanhol (2014) faz a seguinte previsão:
É inexorável que, dentro de no máximo uma década, a
prática do reuso potável direto, utilizando tecnologias modernas de tratamento
e sistemas avançados de gestão de riscos e de controle operacional, será,
apesar das reações psicológicas e institucionais que a constrangem, a
alternativa mais plausível para fornecer água realmente potável. Além de
resolver o problema de qualidade, o reúso potável direto estaria fortemente
associado à segurança do abastecimento, pois utilizaria fontes de suprimento
disponíveis nos pontos de consumo, eliminando, por exemplo, a necessidade da
construção de longas e custosas adutoras, que, geralmente, transferem água para
grandes centros urbanos, coletada de áreas afetadas por estresse hídrico.
É possível que a incoerência verificada em São Paulo
tenha estimulado a Organização Mundial da Saúde a dar mais atenção às fontes
hídricas, especialmente àquelas originadas pelas águas usadas. O certo é que,
em 2017, surgiu o manual “Potable Reuse – Guidance for Producing Safe
Drinking-water”, cuja tradução livre está sendo entregue ao público.
Nessa obra, os profissionais da Organização Mundial
de Saúde (OMS) deixam claro que o reuso potável, ou seja, a transformação de
águas usadas em água potável é algo que já ocorre em vários países e não apresenta
nenhuma tecnologia nova, pois todos os processos de tratamento utilizados são
do conhecimento dos profissionais da Engenharia Sanitária.
Por outro lado, para a OMS (ou WHO, conforme a sigla
em inglês), a principal dificuldade para implantação do reuso potável não é
técnica, mas psicológica. Os usuários precisam entender como funciona o ciclo
hidrológico que atua constantemente na natureza. Tanto a água do mar como as
águas mais contaminadas, ao se evaporarem, transformam-se em vapor de água, isento
de sais e de qualquer tipo de poluição. A chuva que alimenta as nascentes dos
rios, das quais bebemos sem nenhum tratamento prévio, pode ter sido resultado
da evaporação de pântanos, atoleiros, efluentes hospitalares etc. A
transformação das águas usadas em água potável nada mais é que o homem
participando ativamente do ciclo hidrológico.
Por isso, todo o capítulo 7 do manual, intitulado
“The art of public engagement” (traduzido por “A arte do engajamento público”)
é dedicado a explicar aos profissionais hidrossanitários como convencer o
público de que o reuso potável representa uma fonte segura de abastecimento de
água e que, mais que isso, é uma fonte que não sofre influência do clima e não
passa por crises de abastecimento decorrentes de longos períodos de estiagem.
Estão certos os profissionais da Organização Mundial
de Saúde.
No Brasil, a resistência ao reuso potável tem contestações as mais diversas. Tomamos a liberdade de acrescentar a este prefácio algumas das contestações feitas, muitas delas por pessoas diretamente ligadas ao abastecimento público de água.
Perguntas e respostas
1. O reuso potável do esgoto é insuficiente para
abastecer a população.
É verdade. Os compêndios de Engenharia Sanitária
indicam que, mesmo as águas usadas em uma dada localidade forem completamente
captadas, a vazão fica em torno de 80% da vazão de água que é distribuída. Por
isso, o reuso potável precisa ser complementado por uma vazão adicional.
Entretanto, como esse complemento vai passar pelos mesmos tratamentos do reuso
potável, seus critérios de seleção são muito menos restritivos que aqueles que
norteiam a seleção da água bruta para ETAs convencionais.
É preciso destacar que, se hoje o reuso potável não
é necessário como fonte de água, no futuro poderá vir a ser. À medida que a
vazão de distribuição de água potável aumenta, maiores são as necessidades de
água bruta e poderá haver necessidade de outras fontes de água.
As águas usadas são uma fonte permanente de água,
pois um aumento no consumo de água potável implica aumento em sua geração. Sua
vazão não sofre variação tão grande com o clima como ocorre com a variação de
fontes superficiais e subterrâneas de água.
Finalmente, é preciso destacar que a variação na
qualidade da água das fontes superficiais e subterrâneas afeta a produção de
água potável em estações convencionais, enquanto a variação na composição das
águas usadas não afeta a produção de reuso potável, cujo tratamento biológico é
muito superior ao das ETAS convencionais.
2. O reuso potável é mais caro que o tratamento de
águas superficiais.
É verdade. A transformação de água usada em água
potável é mais cara que a potabilização de água de rios, lagos ou lençóis
subterrâneos.
Acontece que a comparação está incompleta. Ao se
fazer o reuso potável, está-se praticando duas atividades: o tratamento das
águas usadas e a produção de água potável.
Sem dúvida alguma, o reuso potável é mais barato que
a soma dos custos de ambos os tratamentos devido à economia de escala.
Ressalte-se que essa diferença de custos é ainda mais marcante nos períodos de
escassez hídrica em que, muitas vezes, é necessário buscar água a longa
distância.
3. Uma estação de reuso potável não conseguirá
tratar o esgoto de forma adequada.
No Brasil, essa contestação é feita até mesmo por
engenheiros sanitaristas, que desconhecem o processo que é utilizado desde
1968, quando foi introduzido em Windhoek, na Namíbia (Seção 8.2). A estação
pioneira do país africano está até hoje em funcionamento.
Na realidade, o reuso potável produz água de melhor
qualidade que muitas estações de tratamento convencionais, pois tem tratamento
físico (retenção em grades, decantação, filtração por membranas, adsorção em
carvão ativado), químico (adição de peróxido de hidrogênio e cloração) e
biológico (ocorre em praticamente toda a estação).
As estações de tratamento convencionais trabalham,
muitas vezes, com coagulação, floculação, decantação, filtração e cloração, o
que nem sempre consegue eliminar todos os poluentes da água bruta.
4. O povo rejeitará a água que foi esgoto.
Esta é, sem dúvida, uma questão que deve ser
abordada com o máximo cuidado. O problema do reuso potável não é técnico, mas
de comunicação. Reproduzimos o texto original do item 7.4 do manual para que o
leitor aprecie, antes de iniciar a leitura de sua tradução, como esse assunto
tem preocupado os profissionais da Organização Mundial de Saúde:
In some instances,
officials have called off plans to implement potable reuse after they faced
public opposition and outcry. Although these projects were well designed with
sound engineering principles, supported by extensive laboratory tests to ensure
water quality, the lack of a well thought out public communications programme
combining science/technology and art/social science considerations to garner
public support dealt them a huge blow. Headlines like “toilet to tap,” that
play on the psychological and emotional aspects of the human mind, were shown
to cloud logical reasoning. The result was public resistance to potable reuse.
But slowly, things are changing. In recent years, more cities are implementing
schemes, fuelled in part by prolonged dry spells and droughts.
A tradução livre é a seguinte:
Em algumas vezes, autoridades têm cancelado planos
para utilizar o reuso potável depois de terem faceado oposição e clamor
público. Embora esses projetos fossem bem feitos, de acordo com os princípios
de Engenharia e sustentados por testes de laboratório extensivos para assegurar
a qualidade da água, a falta de um bem desenvolvido programa de comunicação
pública combinando ciência/tecnologia e arte/considerações de ciência social
para colher apoio público levaram a um grande fracasso. Frases feitas como “do
toalete à torneira” que provocam aspectos psicológicos e emocionais na mente
humana, encobriram o raciocínio lógico. O resultado foi resistência pública ao
reuso potável. Mas, devagar, as coisas vão mudando. Nos últimos anos, mais
cidades têm desenvolvido projetos, levadas, em parte, por períodos de seca e
estiagens.
É importante destacar que, na estação de reuso potável
de Orange County, Califórnia, os visitantes são convidados a tomar um copo de
água de reuso potável. Muitos são aqueles que se recusam a fazê-lo.
Portanto, a rejeição ao consumo de água obtida pelo reuso potável é seu maior obstáculo, mas pode ser contornada por uma boa campanha publicitária.
5. O rejeito da filtração por membrana será altamente poluente.
No caso do reuso potável, não há esse problema, pois
antes de chegar às membranas de ultrafiltração, o líquido passa por wetlands
construídos, reator aeróbio e decantador secundário. O rejeito da
ultrafiltração é encaminhado a um wetland construído, destinado a receber o
efluente do decantador secundário. Uma pequena parcela do rejeito da
ultrafiltração é lançada em valas de filtração para evitar que eventuais
partículas inertes possam circular indefinidamente entre o wetland e os
ultrafiltros. Essa parcela, depois de filtrada, é devolvida às membranas de
ultrafiltração. Não há, portanto, risco de contaminação do meio ambiente por
parte do rejeito da ultrafiltração, porque não é lançado para fora da estação.
Destaque-se que um dos grandes problemas de uma ETA
convencional é a disposição do lodo contido na água de lavagem de filtros,
problema que não existe um uma estação de reuso potável.
6. Como as primeiras unidades de reuso potável
diferem do projeto de uma ETE, não é possível transformar as ETEs existentes em
estações de reuso potável.
As primeiras etapas do reuso potável repetem, com
algumas modificações, os processos convencionais de uma ETE. Em muitos casos, o
reuso potável aproveita ETEs existentes, pois substituí-las pode aumentar o
custo do investimento e apresentar dificuldades durante a construção. Se uma
ETE não estiver bem operada, pode haver problemas na qualidade do produto final
e, portanto, essa ETE deve ser corrigida antes de ser transformada em estação
de reuso potável. Se a ETE está com funcionamento adequado, bastará adaptá-la
para que seu efluente venha a se tornar água potável.
Exemplo típico é a ETE de Ibirité/MG, que produz
água de reuso não potável. Suas unidades são:
Grade média mecanizada
Desarenador
Peneiramento
Desodorização
Decantadores primários circulares
Reatores biológicos
Decantadores secundários
Mistura rápida
Mistura lenta
Sedimentação terciária
Filtração terciária
Biodiscos
Desinfecção por UV
O tratamento sólido se compõe de:
Adensamento do lodo primário por gravidade;
Adensamento dos lodos secundário e terciário por
flotação;
Estabilização anaeróbia dos lodos;
Desaguamento dos lodos por centrifugação;
Cogeração com secagem térmica dos lodos para
combustão.
As modificações na ETE para transformá-la em estação
de reuso potável seriam tão somente:
A jusante dos biodiscos: oxidação; wetland
construído horizontal; e membranas filtrantes de ultrafiltração;
A jusante da desinfecção por UV: carvão ativado
granulado; cloração, fluoretação e correção do pH.
Como existe tratamento sólido na estação, a parcela
do rejeito da ultrafiltração que iria para as valas de filtração (cerca de 10%)
deve ser encaminhada ao adensamento por flotação, enquanto o restante deve
retornar ao wetland horizontal. O efluente da cloração será água própria para
consumo humano.
7. Empresas que trabalham com produtos químicos
podem lançar metais pesados na rede de esgoto.
Tal prática não é permitida pela legislação e, em
Minas Gerais, nos municípios em que a COPASA tem concessão para coleta e
tratamento das águas usadas, há o programa PRECEND, que impede o lançamento de
efluentes de características não domésticas na rede pública coletora. Outros estados
devem ter programas semelhantes.
Entretanto, não se pode descartar a possibilidade de
descarga de resíduos tóxicos, que, para passarem despercebidos pelas
autoridades sanitárias, devem estar em quantidade pequena em relação ao volume
de águas usadas.
Uma estação de reuso potável possui barreiras
sanitárias em maior número que uma estação de tratamento de água. Se uma ETA,
com o conjunto coagulação-floculação-decantação-filtração elimina os metais
pesados, desde que não estejam em concentrações elevadas, uma estação de reuso
potável tem barreiras em maior número, incluindo wetlands construídos e
membranas de ultrafiltração, que fazem essa remoção com maior eficiência.
8. Um derrame de material tóxico poderá contaminar a
rede de esgoto.
As tubulações de águas usadas são dotadas de anéis
de vedação para dificultar tanto a entrada como a saída de líquido, embora
possa ocorrer infiltração quando o nível do lençol freático estiver acima da
geratriz superior da tubulação. Na eventualidade de um derramamento tóxico na
superfície, a contaminação somente atingirá a rede coletora de forma indireta,
pois terá de passar pelas barreiras naturais do solo, diluindo-se na água do
lençol freático. Além disso, admitindo-se uma eventual inserção de material
tóxico em uma estação de reuso potável, seus efeitos serão atenuados pelas
muitas barreiras sanitárias da estação.
9. Seria melhor o uso do esgoto tratado para fins
não potáveis, servindo para economizar água potável.
Não há razão para a concessionária vender ao público
água de reuso não potável, pois o tratamento deficiente pode acarretar sério
problema sanitário.
A SABESP tem comercializado água de reuso não
potável, recomendando que não seja usada para consumo humano. Entretanto,
trata-se de um risco muito grande. Ao vender qualquer tipo de água, a companhia
não tem mais controle sobre ele. Se o usuário quiser utilizá-la para regar uma
horta ou para encher uma piscina, não há como impedi-lo. Daí à proliferação de
doenças de veiculação hídrica é um passo curto. Chernicaro (2015) chama atenção
para o risco de se utilizar águas tratadas de forma deficiente:
Os ovos de helmintos mantêm-se viáveis no solo
durante longos períodos, embora variáveis de espécie para espécie. Sabe-se, por
exemplo, que os ovos de A. lumbricoides e de T. saginata podem sobreviver no
solo por períodos superiores àquele necessário para o nascimento das plantas.
As culturas vegetais irrigadas com águas residuais provenientes de regiões onde
a ascaríase e a teníase são endêmicas constituem um risco potencial da
transmissão da doença.
Além do critério sanitário, o reuso potável tem
sobre o reuso não potável vantagens para a empresa de saneamento. O faturamento
com a entrega do reuso potável é muito maior que com a entrega do reuso não
potável, de vez que, para conseguir vender água de segunda categoria, a empresa
precisa vendê-la mais barata. Por outro lado, há toda uma logística de entrega,
empregando caminhões pipa, com o gasto inevitável de combustível.
Se o volume a ser entregue ultrapassar a capacidade
dos caminhões pipa, o reuso não potável necessita de um sistema de
distribuição, com reservatório e rede própria. Tudo isso, além do custo,
envolve uma logística muito grande, com projeto, compra de materiais, escavação
etc.
Do ponto de vista do consumidor, este precisa ter um
reservatório próprio além de cuidados especiais para manipulação de água de
qualidade inferior.
A reciclagem de água usada é comum no meio rural
para se aproveitar os nutrientes que ela contém. Contudo, não há fornecimento
no meio rural de água de reuso potável ou não potável por parte de uma empresa
de saneamento. Em geral, as propriedades fazem seu próprio sistema de reuso,
usando tratamento próprio.
O fornecimento de água de reuso não potável se justifica para o setor industrial, onde há maior controle e, por conseguinte, são menores os riscos de contaminação. Entretanto, a maioria das indústrias vem reutilizando sua própria água, diminuindo a demanda. Fazem exceção os polos petroquímicos, onde a demanda por água não potável é muito grande, estimulando as empresas de saneamento a fornecer o reuso não potável.
10. No Brasil, não existem leis que disciplinem o reuso potável direto.
Essa contestação tem, inquestionavelmente, origem na
preguiça. Com receio de que processos de reuso potável possam não dar certo, há
quem se escude numa possível falta de ordenamento legal.
De fato, não há leis que disciplinem o reuso potável
direto, como não há leis que disciplinem qualquer tipo de tratamento que faça
com que a água se torne potável. A Organização Mundial de Saúde assim se refere
a esse assunto (Seção 8.1):
The content of
regulations should be consistent with those developed for other types of
drinking-water supply. Development of a single set of regulations for
drinking-water including potable reuse should be considered. Tradução
livre: O conteúdo das regulamentações deve ser consistente com aquelas
desenvolvidas para outros tipos de fonte para água potável. O desenvolvimento
de um único conjunto de regulamentações para água potável, incluindo o reuso
potável, deve ser considerado.
No Brasil, a determinação de que determinada água
tenha qualidade para ser considerada potável está a cargo do Ministério da
Saúde que emite, periodicamente, uma portaria estabelecendo as condições
mínimas para que a água possa ser considerada potável e possa ser usada por
consumo humano. Atualmente, a Portaria em vigor é a de número 2.914, de 12 de
dezembro de 2011 (doravante denominada apenas Portaria), que estabelece, no
inciso II de seu art. 5º, que água potável é aquela que atende ao padrão de
potabilidade por ela estabelecido e que não oferece riscos à saúde. No inciso I
do mesmo artigo, define água para consumo humano como a água potável destinada
à ingestão, preparação e produção de alimentos e à higiene pessoal,
independentemente da sua origem.
Portanto, para que determinada água seja considerada
potável e possa ser usada para consumo humano, é suficiente atender ao padrão
de potabilidade definido pela Portaria e não oferecer riscos à saúde, não importando
sua origem.
“Water should be
judged by its quality, not by its history.” (Lukas van Vuuren)
Tradução livre: Água deve ser julgada por sua qualidade, não por sua história.
11. Os agrotóxicos e demais substâncias orgânicas
presentes no esgoto trarão danos à saúde dos consumidores.
A Portaria seleciona os tipos de substâncias
orgânicas e de agrotóxicos que representam risco à saúde, cuja concentração
máxima permitida é indicada em microgramas por litro.
A presença desses poluentes orgânicos é muito mais
provável nas águas superficiais e, se a água bruta contiver pesticidas
organoclorados, nem sempre as ETAS conseguirão colocá-la no padrão exigido pela
Portaria (LIBÂNIO, M.).
Por dispor de unidades que oxidam a matéria
orgânica, inclusive de oxidação avançada, mesmo que tais substâncias estivessem
presentes em concentrações elevadas, o que não ocorre no meio urbano, elas não
chegariam ao efluente final, pois seriam degradadas nas diversas etapas do
tratamento biológico.
12. Não há como impedir a presença de enterovírus,
de cistos de Giárdia e de oocistos de Cryptosporidium no esgoto potabilizado.
Quanto aos vírus, sua resistência fora do hospedeiro
é muito baixa. A Portaria (art. 31º) sugere que, quando a concentração de
Cryptosporidium na água da fonte for maior ou igual a 3,0 oocistos/L, a
turbidez do efluente da água que passar por filtração rápida não ultrapasse 0,3
uT em pelo menos 95% das amostras e 1,0 uT de turbidez máxima nas demais
amostras. Isso significa que uma boa filtração é capaz de reter enterovírus,
oocistos de Cryptosporidium e, também, cistos de Giárdia, que são maiores que
os oocistos de Cryptosporidium.
Como a filtração rápida é capaz de reter tais
microrganismos, em uma estação de reuso potável, a ultrafiltração, muito mais
eficiente que a filtração rápida, retém vírus entéricos e cistos e oocistos de
protozoários.
Acrescente-se que, se houver microrganismos
patogênicos que ultrapassem a barreira da ultrafiltração, passarão radiação
ultravioleta, onde ficarão esterilizados. Sem poder se reproduzir, os vírus
ficam inócuos.
13. O esgoto hospitalar será um foco transmissor de
doenças.
A legislação não permite que empreendimentos
hospitalares, laboratórios de análises, consultórios e demais serviços de
atendimento à saúde, inclusive veterinários, lancem seus resíduos na rede de
águas usadas. Por outro lado, os microrganismos presentes no efluente de
hospitais não são mais resistentes que a Escherichia coli. A Portaria considera
que, sempre que não se constatar a presença de tais coliformes fecais, a água
está própria para o consumo e, portanto, isenta de microrganismos patogênicos.
A presença de tais substâncias é muito mais provável
em uma estação de reuso potável que em uma ETA, onde não existe aeração
prolongada nem oxidação avançada.
14. O lodo gerado na estação de reuso potável será
causa de proliferação de doenças.
O lodo é gerado no reator aeróbio. Contudo, numa estação de reuso potável, é usado o processo de aeração prolongada, que gera lodo já digerido, o qual é encaminhado de volta ao reator, sendo o excesso enviado ao wetland para lodo. Não há descarte de lodo para o meio ambiente.
15. O Brasil tem muita água. Por enquanto, não precisa utilizar o esgoto tratado.
Essa objeção está sendo cada vez menos frequente
após a crise hídrica que assolou o sudeste do Brasil desde 2014 e vem atingindo
a região semiárida do país.
Além da ocorrência da crise hídrica, nossos
mananciais estão ficando cada vez mais poluídos. Até o aquífero Guarani, o
terceiro maior reservatório de água subterrânea do mundo, já mostra sinais de
contaminação em vários locais. A prevalecer o descaso com um tratamento
eficiente para as águas usadas, em breve teremos todos os nossos corpos de água
contaminados.
Com o reuso potável, as águas usadas deixarão de ser
um problema e se tornarão matéria prima para obtenção de água potável.
16. Será melhor usar água de chuva que esgoto
tratado.
A questão da água de chuva ganhou destaque após a
criação dos piscinões em São Paulo e no Rio de Janeiro. De fato, a
interceptação da drenagem pluvial e sua posterior liberação sem lixo e sem
areia traz benefício para os corpos de água receptores.
Entretanto, não se pode fazer um abastecimento de
água contando unicamente com a água de chuva, pois para isso seriam necessários
grandes reservatórios. No semiárido brasileiro, em que o período de estiagem é
muito longo, utilizam-se açudes para acumulação de água de chuva, mas estes têm
dimensões gigantescas.
Destaque-se que, como a relação entre a coleta de
águas usadas e a água distribuída, em geral, não ultrapassa 80%, sempre que o
reuso potável for a única fonte de água potável, torna-se necessária uma vazão
complementar, o que pode ser feito com captação e armazenamento de água de
chuva.
17. O esgoto pode ser foco de esquistossomose.
Na transmissão da esquistossomose, as fezes do
doente liberam os ovos do esquistossomo, que se rompem ao atingir rios, lagos,
lagoas, canais de irrigação etc. Dos ovos, saem os miracídios, que vivem na
água não mais que 24 horas. Após esse intervalo, os vermes somente sobreviverão
se tiverem encontrado o caramujo, no qual se desenvolverão até atingir o
estágio de vida em que são conhecidos como cercárias. Deixarão, então, o
hospedeiro e retornarão à água, à procura do hospedeiro definitivo, o homem ou
animais superiores. Contudo, se não encontrarem esse hospedeiro em 72 horas,
não sobreviverão.
Como o caramujo, que é o hospedeiro do
esquistossomo, não sobrevive nas águas usadas, não há risco de transmissão de
esquistossomose por reuso potável.
18. A cloração do esgoto, ainda que tratado, poderá
resultar na formação de trihalometanos, que são compostos cancerígenos.
Para a formação de trihalometanos, há a necessidade
de seus precursores, os ácidos húmicos ou fúlvicos. Mesmo que ocorra a presença
de tais ácidos na entrada da estação, serão oxidados juntamente com as demais
substâncias orgânicas.
A cloração é feita após o líquido haver passado por
tratamento por radiação ultravioleta, o que restringe a formação de
trihalometanos. Portanto, a incidência de trihalometanos é muito maior nas ETAs
convencionais que nas estações de reuso potável. Prova disso é o limite máximo
permitido na concentração de trihalometanos na estação de Windhoek (Namíbia):
40 µg/L (Tabela 8.1, Seção 8.2.6.1) ou 0,04 mg/L. A Portaria tolera concentração
de trihalometanos em até 0,1 mg/L.
19. Eventual falha no tratamento pode fazer com que
o público consuma água contaminada.
Uma falha no tratamento deve ser considerada tanto
nas estações de reuso potável como nas estações convencionais de tratamento de
água. Nestas, o problema maior é a mudança na qualidade da água bruta. No caso
de uma estação de reúso potável, mudanças na composição da vazão de entrada
dificilmente trazem maiores consequências. No entanto, é preciso estar atento a
eventuais falhas nas unidades de tratamento.
No Brasil, as estações de reuso potável devem ter
gerador próprio para fazer frente a eventuais quedas no fornecimento de
energia. Contudo, nunca se deve descartar a possibilidade de um aerador
funcionar inadequadamente ou de haver falha no motor da bomba de recirculação
de lodo, o que pode, de certa forma, afetar o produto final.
Se a falha for responsável pela presença de
substâncias químicas acima da concentração permitida, isso não acarretará
maiores consequências, pois as análises do efluente acusarão a falha para ser
providenciada a correção. O problema maior se dá com relação à contaminação de
patógenos, pois a frequência das análises de cloro residual prevista na
Portaria é de duas vezes por semana. No intervalo entre duas análises pode
ocorrer contaminação, com consequências para a saúde humana. Desse modo,
recomenda-se que a análise do cloro residual ocorra com intervalo nunca
superior ao tempo de retenção nos reservatórios e, pelo menos, a cada 12 horas.
Havendo concentração nula de cloro residual no
efluente, a remessa da água para a rede de distribuição deve ser imediatamente
interrompida e interrompida também a entrada da vazão complementar. O restante
das operações deve continuar funcionando da forma mais rotineira possível,
descartando-se o efluente para o corpo de água receptor. Essa situação deve
permanecer até que a falha seja corrigida e o efluente volte a conter cloro
residual.
Esse cuidado deveria ser tomado também nas estações de tratamento de água convencionais, que são muito mais sensíveis a mudanças na qualidade da água bruta.
20. A recirculação permanente das águas usadas fará com que aumente progressivamente a concentração de sais que não se precipitam.
É preciso lembrar que nem toda a água fornecida à
população retorna como água usada: uma parte é usada em lavagem de carros e de
calçadas, na rega de jardins ou em outra atividade e não é conduzida à rede de
coleta, sendo compensada pela água complementar, com menor quantidade de sais.
Além disso, parte dos sais é retida na estação, principalmente no carvão
ativado. Desse modo, sua concentração tenderá a um valor de equilíbrio.
Fato semelhante se dá com relação à fluoretação da
água. A água retorna à estação de reuso potável contendo sais de flúor, reduzindo-se
a quantidade necessária à fluoretação da água.
21. Por que ainda não existe uma única estação de
reuso potável em toda América Latina?
Ainda não existe reuso potável na América Latina,
mas existem estações de reuso potável na América do Norte, na Europa, na Ásia,
na África e na Oceania.
Não existir nenhuma estação de reuso potável ao sul
do Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, é um incentivo
para nós. Onde será construída a primeira estação de reuso potável entre o
México e a Patagônia? Será aqui no Brasil?
Há outros questionamentos de menor importância que
não foram mencionados. O importante é observar-se que está comprovado ser o
reuso potável uma forma segura e eficiente de produção de água potável, como
consta no item 7.1.2 do manual:
Potable reuse is a
safe, reliable and sustainable source of drinking-water. (O
reuso potável é seguro, confiável e uma fonte sustentável de água potável)
Using recycled water
is good for the environment. (O uso de água reciclada é bom para o meio
ambiente)
Potable reuse is a valuable and drought-proof water supply source capable of strengthening water supply resilience, especially against weather extremities like dry spells and droughts. (O reuso potável é uma valiosa fonte de água potável à prova de estiagem, capaz de fortalecer a resiliência do suprimento de água especialmente contra as extremidades climáticas como períodos secos e estiagens)
A publicação deste manual pela Organização Mundial de Saúde e sua tradução livre para a língua portuguesa será um importante passo para a aceitação do reuso potável no Brasil, contribuindo para o fim de problemas de escassez hídrica em um país, que é, entre todos, o mais aquinhoado com água doce. (ecodebate)
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