Em meio a uma
das maiores crises hídricas do Brasil e aos extremos de temperatura que vem
ocorrendo ao redor do mundo, o sexto relatório (AR6 – Assessment Report) do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) foi liberado no
início do mês de Agosto de 2021. O IPCC é uma organização internacional criada
em 1988 pela WMO (World Meteorological Organization) e pela UNEP (United Nations
Environment Programme) com o principal objetivo de auxiliar os governos
mundiais na tomada de decisão com informações científicas sobre o Clima e as
mudanças climáticas.
Atualmente, o
IPCC tem milhares de membros espalhados por 195 países, contribuindo de forma
voluntária e sem viés político para o desenvolvimento do relatório. Vale
ressaltar que o IPCC não conduz nenhuma pesquisa por conta própria, nem
tampouco faz medidas ou roda modelos. O papel da organização é analisar e
avaliar artigos científicos publicados que são relevantes para o melhor
entendimento das mudanças climáticas que vem ocorrendo e seus consequentes
impactos. A análise do IPCC é muito criteriosa, sendo classificada em níveis de
confiança das evidências e concordância da literatura, ou seja, para cada
apontamento do IPCC há determinada confiabilidade relacionada ao mesmo. O IPCC
utiliza diferentes termos para os níveis, podendo ter baixa, média ou alta
confiança, ou em casos onde pode-se quantificar a incerteza, utiliza-se termos
como por exemplo: “virtualmente certo” (99-100%), “muito provável” (90-100%),
ou ainda, “improvável” (0-33%), entre outros termos utilizados no relatório.
De maneira
geral, o IPCC é dividido em três grupos: o primeiro grupo é focado em descrever
a física relacionada às mudanças climáticas, o segundo grupo tem como objetivo
avaliar os impactos e as vulnerabilidades associadas às mudanças climáticas, o
terceiro grupo trata sobre a mitigação das mudanças climáticas e avalia métodos
para reduzir as emissões de gases do efeito estufa. Além dos três grupos, há
também uma força tarefa do IPCC que tem como objetivo estabelecer maneiras de
calcular e reportar as emissões de gases do efeito estufa. O AR6 lançado no início deste mês é apenas do
grupo um, onde trata dos aspectos físicos das mudanças climáticas, enquanto os
demais grupos deverão lançar seus relatórios nos próximos anos.
A Climatempo
Energia vem por meio deste especial mensal esclarecer as dúvidas em relação ao
IPCC e contextualizar os apontamentos do relatório juntamente com os
respectivos impactos no setor elétrico nacional.
Impactos das
ações humanas
Um dos grandes questionamentos em relação ao aquecimento global era em que proporção as atividades antropogênicas (efeito da humanidade) e os efeitos naturais (atividade solar e vulcânica) eram responsáveis pelo aquecimento global que vem sendo observado e sinalizado pelos relatórios anteriores do IPCC. Neste contexto, o principal efeito da humanidade é dado pela emissão de gases do efeito estufa, como por exemplo, o dióxido de carbono e o gás metano. Utilizando de novas tecnologias, novos métodos e novas evidências, o recente relatório do IPCC deixou evidente que não é possível que somente efeitos naturais provoquem o aquecimento médio de aproximadamente 1.6 ºC que foi observado entre 2011-2020 sobre os continentes (utilizando como referência os anos de 1850-1900). A Figura 1a) mostra que nos últimos 2000 anos nunca houve um aquecimento da magnitude que vem ocorrendo nos últimos 170 anos. Além disso, observa-se pela Figura 1b que somente efeitos naturais, como aquecimento solar e atividades vulcânicas, não seriam capazes de explicar o aquecimento observado nos últimos 100 anos.
Figura 1: a) Variação decadal da temperatura média da superfície do globo nos últimos 2000 anos junto com as observações de 1850-2020 (linha preta sólida) e b) Variação anual da temperatura média da superfície do globo nos últimos 170 anos (utilizando de referência os anos de 1850-1900).
Outra
constatação do IPCC está associada às alterações causadas por atividade humana,
no qual as ondas de calor ou eventos com
temperaturas quentes (frias) extremas estão se tornando mais (menos) frequentes
e mais (menos) intensos sobre os continentes desde os anos 1950. Além disso, de
maneira geral, foi constatado que eventos de precipitação intensa também estão
se tornando mais frequentes desde 1950. No entanto, vale ressaltar que seria
necessário uma maior disponibilidade de dados e estudos que analisem o impacto
no padrão de precipitação de forma mais confiável sobre a América do Sul. Em
contrapartida, o IPCC também aponta para períodos de secas mais frequentes,
sugerindo que apesar de haver um aumento de episódios de precipitação intensa,
esta pode ser mais localizada e de curta duração. No caso das secas para a
América do Sul, a única região onde houve consenso de aumento da frequência de
eventos foi o Nordeste Brasileiro.
Impactos das
Mudanças Climáticas no Setor Elétrico Nacional
Não é novidade
que o setor elétrico brasileiro é impactado pelo sistema climático, visto que a
matriz elétrica nacional em sua maior parte é renovável, dependente de
hidrelétricas, principalmente, seguida pela matriz eólica que vem crescendo
cada vez mais. Atualmente, em 2021, o Sistema Interligado Nacional (SIN) tem capacidade
total instalada em operação cerca de 61,5% de energia hidráulica, 10,5% de
eólica, 1,9% de solar e 25% de termelétricas (ANEEL, 2021). Em suma, o Brasil
possui cerca de 75% de toda sua matriz energética como fontes sustentáveis.
Entretanto, a energia térmica ainda é muito utilizada no Brasil para suprir a
demanda energética do país quando os outros setores não são suficientes,
realidade que vivemos no atual cenário. Indiretamente, a energia térmica está
relacionada com o clima, pois se os reservatórios estão com volumes
comprometidos pela escassez de chuva, as usinas térmicas são acionadas e o
preço da energia elétrica aumenta, impactando diretamente no consumidor. E com
a maior atividade das termelétricas, mais gases do efeito estufa são emitidos para
a atmosfera, o que compromete os esforços para direcionarmos o Brasil, e o
planeta, para uma trajetória mais sustentável.
Segundo dados
da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), haverá uma expansão muito
significativa nos próximos anos dos empreendimentos relacionados a usinas
eólicas (36,4% em construção e 21,5% em construção não iniciada) e solares
(19,3% em construção e 63,9% em construção não iniciada) no Brasil. Isso mostra
que cada vez mais o setor energético brasileiro se torna sustentável, e por isso, mais dependente dos
recursos naturais que são influenciados diretamente pelo clima agora e no
futuro.
O efeito mais
direto e compreendido (altíssima confiança) das mudanças climáticas para o
setor elétrico é o aumento da temperatura.
Uma atmosfera
mais quente promove um aumento da demanda energética, que por sua vez, aumenta
a necessidade de mais carga de energia, o que, dependendo do cenário energético
nacional, pode gerar racionamentos como medidas mais extremas para proteger o
sistema elétrico. Juntamente a esse efeito, o novo relatório do IPCC trás
evidências observadas de aumentos dos extremos de calor (ex: ondas de calor)
que podem comprometer o sistema elétrico, como discutido anteriormente.
Além disso,
destaca-se o papel fundamental do ciclo hidrológico na geração de energia
elétrica nacional, mas que está sendo alterado ao longo do tempo em diversas
regiões do Brasil. Com maior confiança, o AR6 mostra que as Regiões Nordeste,
Centro-Oeste e leste do Norte são as que mais apresentam aumentos das
frequências de eventos de secas severas, o que é preocupante para o setor
hidráulico. Além disso, a umidade disponível no solo, fator fundamental para
uma eficiente manutenção e elevação do volume de água das bacias hidrográficas,
está diminuindo, corroborando ainda mais com um cenário pessimista para o setor
hidráulico nas regiões afetadas. Porém, o setor eólico acaba sendo favorecido
pela menor ausência de chuvas no Nordeste, pois de forma geral, um tempo mais
seco e estável promove ventos mais constantes. Ademais, no Sul do Brasil já se
observa uma elevação das chuvas intensas, principalmente ligado aos eventos de
forte intensidade e curta duração. Isso pode ser positivo para o setor
hidráulico no geral, mas negativo para a segurança da população residente na
região.
Com todos esses
efeitos combinados, a geração de energia solar pode ser favorecida no
território brasileiro como um todo. No Nordeste e na região central do Brasil,
onde em média as taxas de incidência de radiação solar na superfície são altas
e os períodos secos estão ficando mais prolongados, ou seja, menor cobertura de
nuvens por mais tempo, são regiões propícias a aumentos significativos da
geração solar.
A geração de energia solar não está só presente no ambiente industrial, como também, em residências (ex: casas e prédios) para consumo individual. Isso é fundamental para que os consumidores finais consigam obter um certo tipo de “independência” energética do SIN. Isso é interessante tanto para o indivíduo quanto para o próprio sistema, pois mesmo que menor que seja a contribuição energética, ajuda na segurança do SIN.
Figura 2 – Panorama das mudanças observadas de extremos de calor, frio e chuva, e suas potenciais contribuições humanas para diversas sub-regiões na América do Sul delimitadas pelo IPCC. O Brasil pertence às regiões NSA, SAM, NES e SES.
Possíveis
Trajetórias Futuras das Mudanças Climáticas
O panorama que
vivemos atualmente de um mundo onde os extremos se tornam mais recorrentes e
mais fortes é o mesmo cenário projetado para nosso sistema climático que o novo
relatório do IPCC afirma com confiabilidade de ocorrer no futuro. Dependendo do
caminho que a humanidade trilhar, as consequências podem ser mais ou menos
severas, o que afeta diretamente o ecossistema terrestre.
O IPCC discute
que existe a possibilidade de evitarmos algum tipo de catástrofe no futuro, mas
somente se todas as nações abraçarem a causa em prol de um planeta mais
sustentável. É inegável a importância do desenvolvimento e evolução da humanidade,
mas o principal conceito por trás é de um desenvolvimento inteligente, em
conjunto com a natureza, sem destruí-la. Uma das grandes mensagens do relatório
e de diversos pesquisadores da área é de que os seres humanos pertencem ao
Sistema Terrestre, não há justificativa plausível para que haja destruição de
sua própria “casa”.
Diante de um conjunto de cinco cenários futuros que o IPCC traz à tona, os chamados Shared Socioeconomic Pathaways (SSPs), somente dois representam um planeta mais sustentável (SSP1-1.9 e SSP1-2.6, ver Figura 3) sem ultrapassar o nível de aquecimento global de 2°C até o fim do século 21. Entretanto, segundo os modelos climáticos globais, será inevitável alcançar o limite de 1,5°C de aquecimento global acima do período pré-industrial, estabelecido pelo Acordo de Paris em 2015. E com isso, diversos impactos, como mais eventos extremos (ondas de calor, chuvas intensas, secas severas, entre outros) devem ser esperados nas próximas décadas em decorrência de um planeta mais energético.
Figura 3 – Mudanças da temperatura global de superfície relativas ao período pré-industrial (1850-1900) para cinco cenários futuros, ordenados de forma que o SSP1-1.9 é o cenário mais “otimista”, ou seja, mais sustentável, e o SSP5-8.5 é o mais “pessimista”.
Como mostrado
nas Figuras 4-6, as projeções climáticas de curto (2021-2040), médio
(2041-2060) e longo (2081-2100) prazos diferem em relação ao tipo de cenário
determinado (SSP1-2.6, SSP3-7.0 e SSP5-8.5) para as três variáveis em questão,
temperatura média em superfície (Figura 4), precipitação (Figura 5) e vento em
superfície (Figura 6). De forma geral, observa-se que conforme o período é mais
distante (curto ao longo prazo), as mudanças climáticas de todas as variáveis
tendem a ser mais intensas. Além disso, ao comparar os diferentes cenários
futuros, o SSP5-8.5, considerado como mais pessimista do ponto de vista
sustentável, é o que apresenta maiores magnitudes das mudanças climáticas.
No Brasil, as temperaturas podem alcançar valores próximos de 5 °C de aquecimento em relação ao período climatológico de 1995-2014. O regime de chuvas é mais incerto dentre as variáveis analisadas, visto que os modelos climáticos globais não apontam para um mesmo sinal nas mesmas regiões (áreas hachuradas). Entretanto, a mensagem clara é de que o ciclo hidrológico fica mais intenso, ou seja, onde normalmente as chuvas são fortes, ficam mais fortes ainda, e onde a seca predomina, ficará mais seco. As Regiões no Brasil onde o sinal tem maior confiança pelos modelos é no Norte e no Sul, com sinais de secamento e fortalecimento das chuvas, respectivamente. Em relação aos ventos, no geral, o Brasil tenderá a ter um cenário mais otimista para o setor eólico, pois há uma forte indicação de intensificação dos ventos em superfície praticamente em todo o território brasileiro.
Figura 4 – Projeções da temperatura média em superfície para três cenários futuros (SSP1-2.6, coluna da esquerda; SSP3-7.0, coluna do meio; SSP5-8.5, coluna da direita) e três períodos de tempo, representando o curto prazo (2021-2040, linha superior), médio prazo (2041-2060, linha central) e longo prazo (2081-2100, linha inferior). Para este cálculo, utiliza-se o ensemble de 32 modelos climáticos globais.
Figura 5 – Projeções da precipitação para três cenários futuros (SSP1-2.6, coluna da esquerda; SSP3-7.0, coluna do meio; SSP5-8.5, coluna da direita) e três períodos de tempo, representando o curto prazo (2021-2040, linha superior), médio prazo (2041-2060, linha central) e longo prazo (2081-2100, linha inferior). Para este cálculo, utiliza-se o ensemble de 31 modelos climáticos globais.
Figura 6 – Projeções do vento em superfície para três cenários futuros (SSP1-2.6, coluna da esquerda; SSP3-7.0, coluna do meio; SSP5-8.5, coluna da direita) e três períodos de tempo, representando o curto prazo (2021-2040, linha superior), médio prazo (2041-2060, linha central) e longo prazo (2081-2100, linha inferior). Para este cálculo, utiliza-se o ensemble de 29 modelos climáticos globais. (ecodebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário