Temperaturas mais altas combinada com chuvas escassas e eventos
extremos impactam produção de agricultores responsáveis boa parte das
hortaliças da capital de São Paulo.
• Cinturão Verde é responsável por mais de 70% das hortaliças de
São Paulo
• Perda de safras inviabiliza novos investimentos e aumenta preços
e risco de desabastecimento
• Mudanças levam novas gerações de agricultores a abandonarem o
campo
Nas gôndolas dos mercados, a sazonalidade dos alimentos se reflete
no bolso. Frutas como abacaxis e melancias enchem as prateleiras no verão, e se
reduzem no inverno, com reflexo no preço. Quando toda a safra da temporada
rende mal, a inflação dos alimentos é generalizada. E é exatamente isso que
estamos prestes a presenciar nos próximos anos — em todos os anos.
Seu Ivo Bernardo da Silva, 68 anos, produz hortaliças desde 2000
em um pedaço de terra de 7,5 mil metros quadrados em Jundiapeba. Lá, mais de
300 famílias dividem espaço no assentamento que virou um distrito do município
de Mogi das Cruzes, parte do cinturão agrícola que abastece a capital São
Paulo. Há 20 anos, ele carrega consigo um caderninho onde anota diariamente a
relação entre o clima e sua capacidade produtiva.
“Eu tenho marcado no meu caderno. A última vez que caiu uma chuva
boa foi em 6 agosto de 2012”, relata. “Foi o ano que a gente mais produziu aqui
na chácara.” Na última década, a insegurança climática só fez crescer. O
episódio mais dramático é de julho do ano passado, quando os produtores
acordaram com seus sítios completamente brancos. Uma geada caiu sobre
Jundiapeba e destruiu quase toda a safra de hortaliças — foi a mais forte das
quatro que atingiram a região nos últimos 20 anos.
No caso de seu Ivo, a perda foi de aproximadamente 60% da
produção. “Ano passado eu parei a construção da minha casa porque eu perdi tudo
duas vezes”, diz. Dona Maria José Marques da Silva, agricultora de 46 anos nascida
no interior de Pernambuco, também relata o mesmo problema. Assim como Maria
Fernanda Vieira, outra moradora do assentamento. “Foi excesso de chuva, excesso
de gelo, excesso de calor. Foi excesso de tudo”, desabafa a jovem produtora de
29 anos.
O impacto do gelo chegou à capital. A Companhia de Entrepostos e
Armazéns Gerais de São Paulo, popularmente conhecida como CEAGESP, principal
distribuidora de alimentos de São Paulo (movimenta 280 mil toneladas por mês),
registrou queda de 27 toneladas de hortaliças oriundas de Mogi das Cruzes,
entre os meses de maio e junho de 2021, início da onda de frio.
Os preços de diversos alimentos subiram. Em alguns casos, quase
dobraram: o engradado da alface lisa, por exemplo, subiu de R$ 14,18 para R$
26,39 em 20 dias; e da alface-crespa, de R$ 13,57 para R$ 22,89.
Forma-se assim um efeito dominó na cadeia produtiva de alimentos.
O preço sobe primeiro devido à lei de demanda e oferta — que cai quando uma
safra vira gelo. No médio prazo, para cobrir o prejuízo dos produtores e
reduzir a exposição ao risco de novos eventos climáticos extremos.
Na perspectiva de longo prazo, a atividade agrícola se inviabiliza
e as novas gerações de agricultores abandonam o campo, e a terra que gera
comida e renda ou vira periferia onde vivem trabalhadores urbanos com baixa
oferta de infraestrutura ou solo para monocultura onde empresas plantam
commodities cujo destino principal é o porto de Santos. Um quadro presente
principalmente na região oeste do Cinturão Verde (onde os principais municípios
são Ibiúna, Itapetininga, Piedade do Sul e Sorocaba), onde o Instituto
Florestal registra uma gradual transição de propriedades familiares para
monocultura.
No livro Serviços Ecossistêmicos e bem estar humano na reserva da Biosfera do Cinturão Verde da cidade de São Paulo, publicado em dezembro de 2020, o mesmo Instituto Florestal, órgão da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo que pesquisa a conservação das matas paulistas, afirma que “a crise econômica no mercado de um produto específico causa o não plantio e o desemprego rural”. E conclui que “essas tendências ameaçam a rede social dos agricultores familiares, o modo de vida rural e a preservação da multifuncionalidade da agricultura”.
Cinturão Verde e o abastecimento de comida em São Paulo
Mogi das Cruzes integra a região do alto Tietê, área leste do
imenso Cinturão Verde paulista, que ocupa 7,5% do território do estado — sendo
metade disso área produtiva. Um território tão grande que é composto de dois
biomas (Mata Atlântica e Cerrado) abrange 78 municípios e tem população
superior a 16 milhões de pessoas.
Desde 1994, a área é reconhecida pela UNESCO como Reserva da
Biosfera da Mata Atlântica (RBMA). O órgão das Nações Unidas voltado para a
educação, a ciência e a cultura define uma reserva da biosfera como
“ecossistemas terrestres, marinhos e costeiros, onde deve-se promover soluções
que conciliam a conservação da biodiversidade com seu uso sustentável”.
De seus mais de 2 milhões de hectares, 40% são dominados por
vegetação nativa. Cerca de 15% se caracterizam por ocupação urbana e o
restante, por produção agrícola.
“É uma região fundamental para o abastecimento da cidade, para a
geração de renda local, e é estratégica diante da pressão das mudanças do clima”,
resume Manuela Santos, pesquisadora em sistemas alimentares e mestre em
ecologia pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ), da
Universidade de São Paulo (USP).
Todo o conjunto do Cinturão Verde é responsável pela produção de
mais de 70% das hortaliças consumidas no município de São Paulo e 30% de tudo o
que é produzido no estado, de acordo com o relatório “Cinturão+Verde”, da
Fundação Getulio Vargas (FGV), de maio deste ano. São desenvolvidas ao menos 47
diferentes culturas, sendo as hortaliças folhosas, couves, raízes (como cenoura
e beterraba) e cogumelos as principais. A alface é, de longe, a mais presente:
51% dos estabelecimentos se dedicam a seu cultivo e comercialização.
Cerca de dois terços dos estabelecimentos produtivos do Cinturão
Verde são de agricultura familiar. Esse mesmo levantamento da FGV estima que
sejam, ao todo, 5 mil propriedades: 85% delas têm no máximo 20 hectares, mas
empregam 75% da mão de obra e são responsáveis por 60% do valor bruto de
produção — um faturamento anual superior a R$ 430 milhões.
Esse conjunto de mata nativa com agricultura familiar garante
também um tesouro de biodiversidade e uma reserva natural para a manutenção do
microclima local a temperaturas adequadas para a vida humana e para a lavoura —
um investimento para o conforto térmico das mais de 25 milhões de pessoas que
vivem dentro do cinturão. Áreas nativas de florestas, campos, cerrado, restinga
e mangue compõem 17,5% de toda a vegetação do estado.
O Instituto Florestal lista 11 serviços ecossistêmicos garantidos
pela manutenção do Cinturão Verde — ou seja, benefícios gerados pelos
ecossistemas para a recuperação das condições ambientais e melhora da qualidade
de vida das pessoas. Entre eles estão:
• Fornecimento e purificação da água;
• Controle de erosão, escorregamentos, assoreamentos e inundações;
• Controle da qualidade do ar;
• Absorção de carbono e redução de gases de efeito estufa;
• Regulação do clima.
Bacia do alto Tietê
Mogi das Cruzes é um dos oito municípios que mais colaboram para a produção agrícola da região do alto Tietê, junto de Suzano, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Itaquaquecetuba, Biritiba Mirim, Guararema e Salesópolis. Somados, são responsáveis por 275 mil toneladas de hortaliças, mais da metade de tudo que o Cinturão Verde produz.
Mogi das Cruzes tem papel fundamental na produção agrícola da região do alto Tietê
O Censo Agropecuário de 2017 informa que o município, onde se
localiza o distrito de Jundiapeba, é o líder em área cultivada e em quantidade
de alimentos. Com foco em hortaliças, são mais de 7.600 mil hectares que geram
quase 112 mil toneladas. A venda e a distribuição dos produtos são responsáveis
por 94% da receita das famílias que vivem em áreas rurais da cidade.
São números que dão a dimensão do que significa o suor que seu
Ivo, dona Maria e tantos outros despejam todo dia sobre a terra onde trabalham.
“Sou analfabeta, então acho melhor trabalhar na roça. É o que eu sei fazer”,
diz a agricultora.
Há mais de uma década, Valdecir Ribeiro, 55 anos, cultiva
hortaliças e tira daí o sustento de sua família. Seis anos atrás, no entanto,
uma chuva torrencial destruiu tudo: perdeu a colheita e as mudas e teve que
dispensar os oito funcionários que mantinha à época.
“O nosso problema aqui é água, porque na seca falta água e na
chuva tem excesso de água, né?”, resume Valdecir, que há cerca de dois anos
fundou a Cooperativa dos Produtores Agrícolas Solidários do Alto Tietê, da qual
é o atual presidente.
A bacia do alto Tietê já sofre de forma inequívoca as consequências
das mudanças climáticas, reforça o levantamento feito pelo Instituto Florestal.
No caso das chuvas, a precipitação anual total registra aumentos
discretos na região, com maior incidência de eventos de chuva intensa. Por
outro lado, a precipitação anual total abaixo de 10 milímetros (ou seja, chuvas
moderadas que colaboram para a produção agrícola, aquelas de que seu Ivo sente
falta), está em queda consistente na última década. O resultado é o aumento na
frequência de dias secos intensos, embora com mais eventos de chuvas intensas.
“Agora mesmo, a gente já está com problema com água”, lamenta
Valdecir. E a preocupação é justificada: ele relata que o volume de água de seu
poço artesiano já caiu 30% durante o período de inverno e que, por isso, seu
maquinário de irrigação hoje demora mais de uma hora para dar conta da lavoura
— em condições normais, leva menos de 20 minutos.
“Quer dizer, se continuar desse jeito [sem chuvas], em outubro
vamos passar dificuldade com essa seca”, conclui.
A temperatura máxima média também aumentou ao longo da última
década, assim como a maior temperatura máxima diária — com aumento crescente em
direção ao leste da bacia do alto Tietê. A temperatura mínima diária também
aumentou em todos os indicadores analisados, o que significa que dias frios
estão ficando menos frios — o número de dias cuja mínima esteve abaixo de 10 oC
também está em queda acentuada.
Como consequência de dias mais quentes e menor frequência de
chuvas, a análise dos resultados observa o crescimento do déficit hídrico
climatológico e “redução significativa” de excedente hídrico, com potencial
aumento de risco para o abastecimento da população local.
Mudanças climáticas: pressão constante no campo
“Agora a gente tem medo de plantar, medo de perder tudo”, desabafa
dona Maria, que cultiva hortaliças em um terreno de 3 mil metros quadrados. O
clima de apreensão é total entre os produtores de Jundiapeba — e não há época
do ano em que estejam imunes ao novo regime climático.
O plantio e a colheita das hortaliças ocorrem geralmente quatro
vezes ao ano, seja na mesma área, seja em sistema rotativo. São vários os
fatores que influenciam a tomada de decisão sobre qual será a cultura que
receberá mais investimento a cada ciclo.
Tipos de alface e folhas em geral têm predominância no campo
devido à facilidade com a qual são distribuídos para intermediários, mercados e
feiras na capital. Especialmente durante o verão e toda a época de calor,
quando o consumo de saladas aumenta. A mesma lógica se aplica a raízes, como
cenoura e beterraba, cujo pico de demanda se dá no calor. No entanto, todas
elas são culturas mais bem adaptadas a temperaturas amenas e a chuvas
moderadas.
O ciclo das hortaliças tem, portanto, seu ápice no meio do ano — é
o momento em que estão mais bonitas e rendem mais. A procura cai, mas a
produtividade compensa e garante a manutenção da renda familiar e de
reinvestimento dos agricultores.
A intensificação dos eventos climáticos extremos compromete o
planejamento produtivo e qualquer chance de previsibilidade para o negócio. O
relatório “Mudanças climáticas e eventos extremos no Brasil”, produzido pela
Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), informa que há
aproximadamente duas décadas a temperatura média no estado de São Paulo durante
o mês de setembro (quando há baixa incidência de chuvas) chegou a ficar mais de
4°C acima da média histórica — gerando prejuízos que podem chegar à casa das
centenas de milhões de dólares nas produções agrícola e pecuária.
O outro extremo também assusta os agricultores. Quando ocorrem
ondas de frio intenso, sobretudo se acompanhadas de geada, no outono e inverno,
hortaliças folhosas incorrem em perda total. A primavera e o verão, quando as
temperaturas sobem, são também a época das grandes chuvas e enchentes —
novamente, com risco de zerar a produção. “O problema não é um evento extremo
específico, mas esse ciclo de chuvas intensas seguidas de período mais seco.
Eles [os produtores] não têm tempo para se recuperar de uma perda”, explica a
pesquisadora Manuela Santos. De acordo com o Instituto Florestal, a frequência
de chuvas intensas na região metropolitana de São Paulo é três vezes maior que
no resto do estado.
Ainda em 2007, quando os impactos das mudanças climáticas eram
menos evidentes na região, o cientista americano Robert De La Peña e a
cientista britânica Jacqueline Hughes publicaram o paper “Improving vegetable
productivity in a variable and changing climate”, em que já indicavam que “fenômenos
como dias e noites quentes, ocorrência de geadas, secas intensas e duradouras,
chuvas intensas, vendavais, entre outros, devem tornar-se mais comuns”. Quando
projetam as condições climatológicas para o Brasil em 2100, concluem que a
“futura produção de alface deve sofrer grande prejuízo”.
A lista de potenciais danos aos cultivos apontada no artigo é
extensa: formação de plântulas (fase embrionária das hortaliças) anormais,
morte das sementes, perda de uniformidade nos estandes de lavoura (o que leva à
baixa produtividade), queima das bordas das folhas (esta em decorrência da deficiência
de calcino e boro, impossibilitando o consumo), florescimento precoce, acúmulo
de látex e produção de folhas amargas, entre outros.
Abandono do campo
Globalmente, são dos pequenos sítios de agricultura familiar que
vem grande parte de nossa comida. A ONU estima que sua participação no mercado
de alimentos varia entre 40% e 85% no conjunto de países da Ásia, África e
América Latina.
O mesmo relatório das Nações Unidas relaciona a importância da produção local e familiar de alimentos com três aspectos fundamentais para o desenvolvimento sustentável: promove maior biodiversidade, tem menos impacto ambiental e é mais resiliente às mudanças climáticas.
Pequenos agricultores garantem a alimentação da população brasileira
No entanto, os pequenos produtores vêm enfrentando mais
dificuldades para se manter no campo. O acesso à terra está sendo limitado pela
especulação fundiária e/ou pela expansão das áreas urbanas — com efeitos
antagônicos: parte se deve ao empobrecimento de um contingente da população que
faz avançar o processo de favelização em direção ao interior; parte se deve à
valorização de áreas verdes cujos terrenos são comercializados por
incorporadoras e viram condomínios fechados.
Somam-se a isso as restrições ao crédito e a serviços financeiros
em geral, a dificuldade em operacionalizar a distribuição dos alimentos sem a
figura do atravessador e a baixa produtividade em comparação a monoculturas e
plantações cujos proprietários investem em sementes geneticamente modificadas e
fertilizantes de alto desempenho.
Os riscos provocados pela crise climática são a gota d’água para
muitos. “Vem uma chuva e você fica com as dívidas todas”, se queixa Valdecir. A
insegurança diante de um clima cada vez mais instável, afirma o presidente da
cooperativa, é o principal motivo para que os jovens abandonem o trabalho
rural. “Aqui, você vale só a sua produção. Choveu demais, você perde tudo.”
Dona Maria relata que seu filho desistiu de trabalhar no campo
depois de ter enfrentado perdas recorrentes na produção. Hoje, aos 25 anos,
Ronaldo trabalha em uma atividade urbana no centro da cidade, vizinha de
Suzano, ainda que more numa casa construída no mesmo terreno onde a mãe lida
com sua lavoura.
A permanência na terra é, também, questão social. A ecóloga Anita
Valente da Costa, do Fundo Agroecológico, relata que no extremo sul de São
Paulo, nas áreas rurais do bairro de Parelheiros — que também integra o
Cinturão Verde —, mais da metade dos agricultores não conseguem sequer acessar
um salário mínimo. E ficam à mercê da especulação imobiliária. “Quando vem uma
onda de valorização para as terras, para eles vale a pena vender, porque não
conseguem viver da agricultura”, afirma.
O caso de Parelheiros é um exemplo do que pode ocorrer em todo o
Cinturão Verde. Anita explica que, lá, as pressões causadas pela urbanização
descontrolada e pelos empreendimentos privados fazem com que cada vez mais
“terras agricultáveis tenham o uso mudado” — sendo um dos usos o problema da
ocupação ilegal, com riscos até para a segurança dos moradores.
Favelização da área rural
A propriedade de dona Maria se localiza na área conhecida como
“baixada”. O motivo é autoexplicativo: trata-se de uma região mais baixa em
relação ao distrito de Jundiapeba, à margem sul do rio Jundiaí.
Quando há precipitação de chuva intensa, é para lá que a água
escoa e se acumula. Dentro de sua própria casa se veem nas paredes e armários
marcas que vão do chão a até aproximadamente 50 centímetros de altura,
resultado da lama que entra durante esses eventos.
“Fica um cheiro muito ruim”, conta a agricultora. “Tem risco até
de pegar doença, aquela doença do rato que não lembro nome”, diz, referindo-se
à leptospirose, doença infecciosa causada por contato com uma bactéria presente
na urina de animais, principalmente ratos.
O medo se justifica de vários modos. Primeiro porque, de fato, as
tempestades com precipitação de água acima do normal aumentam constantemente.
Mas os principais motivos estão relacionados à ação humana direta.
À margem oposta do rio Jundiaí não há um centímetro sequer de
terra livre para plantio. Construções ilegais dos mais diversos tipos e
materiais — há desde barracos simples de madeira até casas de alvenaria com
três andares — se distribuem entre a parte alta e a porção alagada do rio.
A profusão de casas e prédios irregulares entupiu e tornou inócuas as valetas que foram instaladas para drenar o excesso de chuvas e preservar o solo dos agricultores, como dona Maria. E o rio, principal fonte de água para os plantios, passou a ser banheiro público: sem rede de esgoto, os dejetos expelidos pelas novas moradias são despejados em seu curso.
Construções disputam espaço com áreas para plantio
Em 2012, o Banco Mundial publicou um estudo sobre os riscos de
desastre em relação à habitação irregular na cidade de São Paulo. O resultado
aponta que até o fim do século pouco mais de 10% da população mais pobre da
metrópole pode ocupar zonas com risco de deslizamento de terra e inundações. E
ainda mais grave: nas comunidades periféricas, já nas próximas décadas, mais de
5% das áreas de favelas estão “extremamente propensas” a eventos extremos
destrutivos. A orientação do estudo é expressa: as medidas de adaptação mais
urgentes devem ocorrer nas áreas mais vulneráveis.
Os prejuízos ambientais são evidentes, mas as consequências
socioeconômicas são tão graves quanto. Menos água de qualidade significa menos
capacidade produtiva. Ou seja, menos produção de alimentos, aumento de preços
aos compradores e redução de renda aos agricultores. O crescimento demográfico
resulta ainda em conflitos sociais: Jundiapeba é conhecida, hoje, como o bairro
mais perigoso de Mogi das Cruzes, sendo os furtos a residências o crime mais
comum. “Ah, já entraram na minha casa várias vezes. Das vizinhas tudo, aqui. E
aí levam o que encontram mesmo, dinheiro, eletrodomésticos… O que der, levam”,
relata dona Maria.
A economista Yara Carvalho, que já foi presidente da Reserva da
Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo e é efetiva do Instituto de Economia
Agrícola da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, explica que,
tradicionalmente, em todo o Cinturão Verde a agricultura teve o papel de
embarreirar “a ocupação desordenada e a expansão urbana de baixa qualidade”. E
exerce a dupla função de ser uma espécie de controle térmico natural na
metrópole. As bacias hidrográficas, a vegetação e o solo não impermeabilizado
pelo asfalto são essenciais para mitigar eventos climáticos mais extremos. “É
um fator de adaptação para o clima”, resume Yara.
E a região do alto Tietê é especialmente importante para o
controle da poluição na capital. “Se perdermos essas áreas verdes, o problema
será grande aqui em São Paulo”, conclui a economista.
O risco é real: vai faltar comida
Hoje, enquanto você lê esta reportagem, há mais de 800 milhões de
pessoas subnutridas no mundo e 2 bilhões de pessoas em situação de insegurança
alimentar.
Se é um número grande demais para dimensionar, pense no Brasil.
Estima-se que a população brasileira esteja em 216,5 milhões. De acordo com o
2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de
Covid-19 no Brasil, mais da metade sofre de algum nível de insegurança
alimentar: 59 milhões em situação leve, 31 milhões em moderada e 33 milhões em
situação de fome. Somente na capital paulista, 620 mil famílias vivem em
situação de extrema pobreza e não podem se alimentar direito.
Isso ocorre no terceiro país que mais produz alimentos no planeta,
9% do total, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura (FAO). O anuário da FAO informa que a soma de toda comida produzida
no mundo seja de 3,8 bilhões de toneladas ao ano. A fome, ainda que suas causas
sejam multifatoriais, é resultado de um amplo problema distributivo. Mas
estamos caminhando para que seja, também, um problema produtivo.
O mesmo documento da FAO aponta para uma redução de produtividade
e qualidade nutricional das safras. O resultado seria uma fome crônica capaz de
ampliar as desigualdades sociais e atingir exatamente aqueles que têm menos
capacidade de adaptação.
Em um documento publicado em 2021, o Intergovernmental Panel on
Climate Change (IPCC) alerta que o problema é para agora: pelo menos um terço
da produção atual de alimentos já está em risco por causa do aquecimento
global. No caso do Brasil, se o aumento da temperatura até o fim do século for
de 3°C, o prejuízo para a produção agrícola do país será de pelo menos 6%. No
caso de haver um acréscimo de 4°C, a produção média de hortaliças e leguminosas
pode cair até 30%.
Um cenário de tragédia alimentar, mas também nutricional.
Quem come, come pior
A alface é, de longe, a hortaliça mais produzida no Cinturão
Verde, quase um quarto de todos os alimentos cultivados. Tradicionalmente,
sempre foi um bom negócio para os agricultores: tem ciclo rápido de
aproximadamente 45 dias até a colheita e alta demanda na capital. A mesma
lógica se repete em todo o país. No setor de folhosas, a alface é a líder.
Cerca de 110 mil estabelecimentos trabalham com o cultivo, o que gera
anualmente pelo menos 670 mil toneladas.
Ela é também uma das culturas que mais sofrem o impacto das
mudanças climáticas. Se chove muito, apodrece. Se o calor é intenso, queima.
Quando se misturam chuva e sol, pode cozinhar por dentro. Sua fragilidade
diante do clima é proporcional à sua qualidade nutricional — é basicamente
formada de água e fibras alimentares.
Especialistas como Manuela Santos e o geógrafo Arpad Spalding, que
já coordenou um projeto municipal de agricultura familiar em Parelheiros, citam
que a transição para culturas de mais fácil adaptação e de maior valor
nutricional precisa ser acelerada. E, ainda assim, a perda de qualidade
nutricional aponta para a irreversibilidade. “Chuvas intensas atrapalham a
terra, a planta e a qualidade do solo”, explica Spalding. “E quando tem muita
água no solo, a planta não consegue absorver os nutrientes.”
O cardápio de opções para reformular o modelo produtivo é enorme.
São cerca de 6 mil espécies de plantas comestíveis, mas a produção global de
alimentos se limita a menos de 200, e apenas nove delas respondem por ⅔
dos alimentos que vêm do campo.
Concentração de terra para cultivos de monocultura é o motor principal do processo de homogeneização do agro para menos de uma dezena de grãos que integram a cadeia global de suprimentos como commodities. Desse modo, fecha-se o ciclo vicioso no qual as mudanças climáticas acentuam a desigualdade social e econômica no campo. Processo que leva à perda de biodiversidade, compromete o solo e a água (a agricultura responde pelo consumo de 70% da água doce do mundo) e libera muito mais carbono para a atmosfera do que sistemas produtivos mais complexos (sistemas alimentares respondem por até 35% das emissões de gases do efeito estufa).
Observar a natureza para crescer com ela
A rotina é a mesma todos os dias: depois do café da manhã, seu Ivo
calça as botas e vai ao quintal observar o crescimento dos seus cultivos. Na
caminhada, tudo vê e tudo ouve. A observação da natureza é a regra número 1 de
sua técnica agrícola. Foi assim que aprendeu a ler o movimento migratório das
aves e a arquitetura dos formigueiros para prever a chegada ou não de uma
tempestade.
Essa mesma observação atenta levou o agricultor a dispensar o uso
de venenos, investir “apenas no natural” e promover o uso rotativo do solo. A
sabedoria intuitiva de seu Ivo coincide com as técnicas mais eficazes para
aumentar a produtividade sem custos adicionais e para proteger a horta dos
eventos climáticos extremos.
No entanto, seu Ivo é exceção. Via de regra, explica Spalding, os
agricultores têm acesso limitado a técnicas e métodos de baixa complexidade e
custo. Ele lista “tecnologias básicas que melhoram a produção e a vida do
agricultor”: microtúnel, instalação de estufa pequena, sistema de irrigação e
sistema de plantio direto.
“Precisamos urgentemente de um programa de assistência técnica que
ensine esse conjunto de ações que são muito importantes para melhorar a nossa
resiliência diante da mudança do clima”, afirma Spalding. De acordo com a
Política Nacional de Mudanças Climáticas, resiliência climática é um conjunto
de iniciativas e estratégias que permitem a adaptação, nos sistemas naturais ou
criados pelos homens, a um novo ambiente, em resposta à mudança do clima atual
ou esperada.
No caso de Jundiapeba, a FGV tem uma parceria com as cooperativas
locais para apresentar soluções. O plantio direto, que consiste em cobrir o
solo com vegetação para protegê-lo de chuva e sol intensos, já faz parte do dia
a dia de muitos produtores.
Um modelo celebrado por muitos especialistas é o agroflorestal.
Nele, cabe ao agricultor replicar em sua terra as características da floresta
nativa, com árvores e plantas não necessariamente produtivas. Ao atingir o
equilíbrio do microambiente, a resistência a eventos extremos cresce: o solo
absorve mais a água da chuva, a copa das árvores protege mais contra altas
temperaturas e a barreira natural que se forma limita a ação de ventos e
geadas.
Além de assistência técnica, faltam políticas públicas do início
ao fim do ciclo produtivo. “Precisa de política pública para melhorar a produtividade
e para garantir adaptação ao clima”, afirma Spalding. A começar pelo crédito:
sem linhas de financiamento especiais, poucos agricultores familiares se
arriscam a trabalhar culturas de ciclo mais longo e a explorar técnicas com
resultados de médio e longo prazo.
Do plantio à colheita, os agricultores dormem e acordam apenas
torcendo para que não chova demais nem de menos. Bancos e seguradoras não
protegem ciclos curtos de hortaliças; portanto, a cada safra perdida, a
capacidade de reinvestimento fica praticamente zerada.
Por fim, na venda e distribuição, uma vez expostos a todos os
riscos mencionados acima, os agricultores muitas vezes se submetem a
atravessadores que pagam valores baixos e assumem a revenda para mercados na
capital. Soma-se a isso a falta de serviços bancários e atuariais, privados ou
públicos, que ofereçam seguros às safras.
A organização em cooperativas é um modo de reduzir a dependência
econômica de intermediários ou grandes redes de mercado. Yara Carvalho e
Manuela Santos apontam também a necessidade de políticas públicas para a compra
de alimentos produzidos localmente: dá segurança ao agricultor e dá ao Estado a
possibilidade de direcionar a produção para atender às necessidades alimentares
e nutricionais em escolas, hospitais e quaisquer outros equipamentos públicos.
Ou, como resume seu Ivo em uma frase: “Aí eu perco aqui na roça, você perde aí no mercado e o governo perde porque não arrecada imposto. O mundo exige uma mudança”.
Comida mais cara e produção menor: Cinturão Verde de SP sofre com mudanças climáticas
Valor nutricional das hortaliças
* Nutrientes hortaliças verdes (brócolis, alface, rúcula): “As
hortaliças verdes apresentam uma série de nutrientes: provitamina A, luteína,
vitamina B2, vitamina B5, vitamina B9, vitamina C, vitamina K, cálcio, ferro,
magnésio e potássio. No geral, elas auxiliam no crescimento e na manutenção da
pele, ossos, cabelos e visão; contribuem para os sistemas digestório, nervoso,
imunológico e sexual; e reduzem o colesterol e o risco de doenças
cardiovasculares”. (Embrapa Hortaliças — 2012);
* Ricas em vitaminas, minerais, fibras e antioxidantes, todas as
hortaliças (com exceção de tubérculos e raízes) são compostas majoritariamente
por água. Por isso, além de fornecer compostos úteis para a realização de uma
série de reações orgânicas, elas também auxiliam na hidratação do corpo, que é
constituído aproximadamente por 70% de água. Devido aos nutrientes que possuem,
o consumo diário de hortaliças é extremamente benéfico para a saúde. A única
vitamina que as hortaliças não possuem é a B12, que está presente somente em
alimentos de origem animal como carne, leite e derivados. (Embrapa Hortaliças —
2012).
Essa reportagem é resultado das Microbolsas Alimentação e Mudanças
Climáticas realizada pela Agência Pública, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor) e a Cátedra Josué de Castro. A 14ª edição do concurso selecionou
jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.
(ecodebate)
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