domingo, 25 de agosto de 2024

Papel do Brasil na descarbonização dos transportes

Veículos elétricos, energia solar e mudanças climáticas: o papel do Brasil na descarbonização dos transportes.

Imagine que ao adquirir um carro novo, você garantisse, por toda a vida útil do veículo, a possibilidade de rodar mil km por mês sem custo de combustível. Imagine ainda que o carro, com pouquíssimo ruído, muita inteligência e tecnologia embarcadas, não emitiria CO2 ou qualquer outro gás de efeito estufa, nem poluentes. Bem-vindo à realidade do carro elétrico abastecido por geradores solares fotovoltaicos, que podem suprir toda a energia que esse veículo necessita ao longo de toda a sua vida e a um custo inferior a 5% do valor do carro.
Os veículos elétricos (VEs) existem há quase 200 anos e são anteriores aos motores de combustão interna. Eles já estavam em nossas estradas e trilhos muito antes de os carros acessíveis de Henry Ford revolucionarem as viagens. No entanto, como as baterias para abastecer os motores elétricos destes carros eram caras – ainda são, mas agora estão ficando rapidamente mais baratas – e proporcionavam pouca autonomia aos carros elétricos (ainda resultam em autonomias menores do que nos carros a gasolina, mas estão melhorando rapidamente), os carros a gasolina se estabeleceram e passaram a dominar as ruas e estradas.

Com a revolução industrial, a produção de energia elétrica e calor passaram a ser os principais responsáveis pelas emissões de CO2 do planeta, seguidos pelas emissões de veículos com motores a combustão. Por mais de um século os carros que queimam combustíveis fósseis vêm despejando quantidades crescentes de gases de efeito estufa e outros poluentes na atmosfera.

Nos últimos anos, no entanto, a produção barata de energia renovável a partir da geração solar e eólica, associada ao desenvolvimento tecnológico e uma consistente redução de custos das baterias com a produção em massa das baterias de íons de lítio, trouxe de volta o VE, que aparece como a solução para resolver ao mesmo tempo a questão das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pelas mudanças climáticas e a poluição do ar nos grandes centros urbanos. Junto a isso, o VE é um carro muito melhor de dirigir do que um carro com motor a combustão e vem recheado de tecnologia.

De onde vem a energia para carregar um VE?

A Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês para International Energy Agency) prevê a expansão do mercado de VEs de 16,5 milhões em 2021 para 350 milhões até o final desta década e com isso a expectativa de aumento do consumo de energia elétrica para os VEs em 2050 é 90 vezes maior do que o consumo atual.

De onde virá toda essa energia? Na maior parte do mundo, a produção de energia elétrica vem de fontes fósseis como o carvão e o gás natural, que emitem poluentes e CO2 e que por isso associam ao VE uma pegada de carbono que não pode ser desprezada. Não é o caso do Brasil. Por aqui, em 2023, mais de 93% de toda a eletricidade gerada veio de fontes renováveis como hidrelétricas, fazendas e telhados solares, parques eólicos e usinas a biomassa, o que confere ao VE que roda em nosso país um carimbo de sustentabilidade único em todo o planeta.

Com o compromisso mundial de descarbonização assumido na COP 28, o Brasil cumpre um papel importante em enfrentar o maior desafio da humanidade contemporânea. Isso é especialmente relevante em um contexto no qual os transportes representam quase um quarto das emissões globais de CO2 relacionadas com a energia.
Quanto tempo leva para carregar um VE?

Com a tecnologia atual, o carregamento da bateria do seu VE pode demorar entre 30 minutos ou até 12 horas – tudo depende do tamanho da bateria e da velocidade do ponto de carregamento (a potência do carregador). Mas alguns fabricantes de VEs afirmam que antes do final desta década você já poderá viajar até 1000 km e recarregar seu carro em apenas 10 minutos; a densidade energética das novas baterias de estado sólido será equivalente à da gasolina.

No Brasil, onde 82% da população mora em uma residência unifamiliar e onde quase sempre o VE pode ficar estacionado perto de uma tomada comum, deixar o seu carro carregando durante a noite uma ou duas vezes por semana enquanto você dorme parece ser um inconveniente menor do que parar num posto de gasolina para encher o tanque de um carro convencional. Carregadores de baixa potência, como os que vêm junto com alguns VEs, com potência menor do que 3 kW, ou até os “wall boxes” de 7 kW disponíveis no mercado para instalações residenciais, serão responsáveis por cerca de 80% das recargas de VEs no Brasil.

Baterias de segunda vida, reciclagem e economia circular

Para contornar o fato de que a autonomia de um VE ainda é menor do que a de um carro convencional, o que pode ser uma limitação séria em uma viagem de algumas centenas de km, existem carregadores rápidos, que podem ser instalados numa estação de serviço de autoestrada e que já podem hoje carregar o seu carro em cerca de 30 minutos. Para operar estes carregadores rápidos, é necessária uma infraestrutura de suprimento de energia elétrica bastante robusta e cara, pois um carregador rápido como o recentemente apresentado em São Paulo pela empresa BYD demanda até 180 kW por unidade.

Uma estação de serviço de autoestrada vai necessitar instalar vários destes equipamentos para que múltiplos usuários possam carregar seus VEs simultaneamente e isso leva a uma demanda da rede elétrica somente naquela estação de serviço que pode ser equivalente à demanda de vários quarteirões de casas em um bairro residencial – caro e inconveniente. Para contornar essa situação, os carregadores rápidos de alta potência instalados em estações de serviço nas estradas serão dotados eles próprios de baterias estacionárias. Estas baterias estacionárias atuarão como um pulmão de energia, para que o carregador rápido seja alimentado diretamente por elas, ao invés de diretamente pela rede elétrica pública.

Ao mesmo tempo, as vagas onde ficarão estacionados os VEs durante estas recargas rápidas nas rodovias serão cobertas por placas solares fotovoltaicas, que irão carregar as baterias estacionárias e injetar na rede elétrica pública qualquer excedente de energia caso essas baterias estacionárias estejam completamente carregadas. Durante a noite, quando não há geração solar, estas baterias estacionárias podem ser carregadas lentamente pela rede elétrica pública, que nestes horários normalmente é ociosa, garantindo o serviço de recarga rápida para VEs 24 horas por dia.
Este modelo já vem sendo testado no Laboratório de Energia Solar Fotovoltaica da Universidade Federal de Santa Catarina em parceria com a Nissan Automóveis do Brasil, utilizando as baterias de Li descartadas de veículos elétricos que já haviam rodado como táxis em São Paulo por cinco anos antes do descarte destas baterias.

O uso de baterias de Li descartadas de VEs em aplicações estacionárias é denominado de uso em segunda vida e acontece quando as baterias atingem 70 a 80% da capacidade de carga original, o que limita o seu uso em VEs, mas não é um problema nas aplicações estacionárias, tendo em vista que a qualidade da energia elétrica armazenada pelas baterias na segunda vida é a mesma daquela que se tem nas baterias novas.

Assim, o uso das baterias de VEs é estendida, antes que elas sejam finalmente destinadas à reciclagem, onde serão desmontadas para recuperar os componentes químicos que serão utilizados para produzir novas baterias. Este conceito de economia circular já é bastante utilizado e conhecido no Brasil, e o exemplo da reciclagem do alumínio das latinhas de cerveja e refrigerantes ilustra bem o conceito.

Veículos elétricos puros, veículos elétricos a hidrogênio, veículos a álcool, emissões de gases de efeito estufa e energia solar fotovoltaica

Quando o Brasil passou a utilizar o etanol nos motores a combustão e a tecnologia dos motores “flex fuel” se desenvolveu nos anos 1990, o álcool apareceu como uma alternativa interessante para limitar as emissões dos gases de escapamento, reduzindo a poluição ambiental dos grandes centros urbanos e os gases de efeito estufa. O argumento de que o mesmo CO2 emitido pelo escapamento de um veículo movido a álcool é capturado pela cana de açúcar no processo de fotossíntese, num ciclo de balanço zero, precisa também levar em conta que os processos de plantio, fertilização do solo, colheita e transporte da cana de açúcar também levam a emissões de CO2 (200 a 260 gCO2eq/litro de álcool) que não têm como serem abatidas em nenhuma etapa do processo.

Nos VEs, as novas demandas de energia elétrica resultantes precisam ser atendidas por fontes renováveis e livres de emissão, para que a expectativa de redução do impacto ambiental do setor de transportes seja cumprida. No Brasil toda a nova energia elétrica a ser utilizada pelos VEs deverá vir de fonte solar ou eólica, que são hoje as fontes mais baratas e as responsáveis por praticamente toda a expansão do parque gerador nacional. VEs a hidrogênio de pequeno e grande porte (ônibus e caminhões) também vêm sendo desenvolvidos para deslocamentos de grandes distâncias.

Para ter emissão zero, os VEs a hidrogênio terão o hidrogênio produzido por eletrólise da água. Neste processo, a energia elétrica, que é o principal insumo na produção de hidrogênio (a energia elétrica responde por 70% do custo da produção de hidrogênio), também precisa vir de fonte solar ou eólica. O hidrogênio pode também ser obtido através do processo de conversão de álcool e alguns fabricantes de carros apostam no veículo elétrico movido a etanol, onde a tecnologia de produção de hidrogênio está embarcada no veículo, produzindo em uma célula a combustível a partir deste hidrogênio toda a energia elétrica para alimentar o motor do VE híbrido flex.

A eficiência das diversas etapas da produção de hidrogênio a partir do etanol até fazer a roda do carro girar é equivalente à do motor a combustão utilizando etanol puro e pode ser ilustrada na figura abaixo. Em um hectare de cana de açúcar pode-se produzir anualmente no Brasil álcool o suficiente para que um carro flex a combustão utilizando etanol puro possa rodar cerca de 53.900 km por ano.

Se este mesmo etanol produzido em um ano a partir de um hectare de cana de açúcar for utilizado em um VE flex para produzir o hidrogênio que será utilizado pela célula a combustível embarcada nele para produzir a eletricidade que alimentará o motor elétrico, este VE vai rodar um pouco mais (55.000 km por ano). Mas se utilizarmos este mesmo um hectare de área para instalar placas solares fotovoltaicas para gerar eletricidade para carregar as baterias de um VE puro, a energia gerada anualmente vai possibilitar que este VE rode muito, muitíssimo mais (14.000.000 km por ano) do que qualquer uma das alternativas que utilizem o etanol.

Esta diferença parece absurdamente grande, mas é fácil de explicar: a eficiência da conversão fotovoltaica da energia do sol em energia elétrica é cerca de 100 vezes maior do que a da fotossíntese que converte a mesma energia do sol na biomassa que vai resultar no biocombustível (neste caso o etanol) e a eficiência do motor elétrico do VE é cerca de 3 vezes maior do que a do motor a combustão do carro a álcool. Multiplicando-se essas diferenças fundamentais de eficiência se chega nesta diferença surpreendente de rendimento. Contra as leis da Natureza não há muito o que fazer, razão pela qual todas as tecnologias de biocombustíveis podem ser consideradas tecnologias de transição, rumo à completa eletrificação dos transportes e das emissões zero.

A produção de biocombustíveis compete com a produção de alimentos e no Brasil tradicionalmente toda a vez em que o açúcar aumentou de preço nos mercados internacionais, os usineiros preferem produzir açúcar ao invés de álcool e o biocombustível aumento de preço.

Cobrir edificações com placas solares para gerar energia para todo o consumo de energia elétrica inclusive o dos VEs é pulverizar o país com pequenos geradores distribuídos, gerando energia junto ao ponto de consumo, sem ocupar nenhuma área adicional, pois as edificações oferecem ao mesmo tempo a estrutura e a área para a instalação das placas solares; ao mesmo tempo, a interface elétrica da edificação com a rede elétrica pública fornece a conexão do gerador solar com a rede.

E no inverno, meu VE vai diminuir sua autonomia com o frio?

Temperatura não é um problema no Brasil. No inverno que os países do hemisfério Norte passaram este ano, houve muita notícia sobre problemas dos proprietários de VEs quando as temperaturas desceram para baixo de zero. Filas nas estações de recarga públicas, carros parados nas vias porque a bateria descarregou mais intensamente do que no verão, empresas de locação de veículos rompendo contratos com fabricantes de VEs porque a autonomia dos carros elétricos locados não atendia os contratos. No Brasil as temperaturas são muito mais amenas e a redução de autonomia dos VEs no inverno da região Sul do país é pouco significativa.

O telhado que abriga o VE ao mesmo tempo gera toda a energia para ele

A média de deslocamento mensal dos carros no Brasil é de cerca de 1000 km por mês e eles passam a maior parte do tempo estacionados, ocupando uma vaga que tem em média 10 m2. Se a cobertura dessa vaga utilizar placas solares fotovoltaicas, é possível gerar mais de 200 kWh de energia elétrica por mês na média anual mesmo nas cidades menos ensolaradas do Brasil. Com essa energia um VE pode rodar entre 1000 e 2000 km todo o mês, dependendo do modelo do VE e do estilo de dirigir do condutor.

Na expectativa de apresentar o VE como um importante contribuinte para a mitigação do impacto ambiental do setor de transportes, imagine agora que ao comprar um VE você ganhe de brinde um gerador solar fotovoltaico para instalar no telhado da garagem onde este VE vai passar a maior parte do tempo estacionado e onde também vai ter a sua bateria carregada, ou então uma cota de um gerador solar fotovoltaico compartilhado. Com a redução massiva nos preços da tecnologia fotovoltaica, um gerador fotovoltaico que gere a energia para seu VE rodar entre 1000 e 2000 km por mês custa menos de 5% do preço do VE mais barato no Brasil (e ainda menos para os modelos de VE mais caros).

As próprias concessionárias de automóveis podem passar a oferecer esta opção aos seus clientes e para aqueles que moram em apartamentos, casa alugada ou que por qualquer motivo não podem ou não querem um telhado solar na sua residência, o mercado brasileiro já oferece opções de adesão ao que se chama de “geração compartilhada”, na qual o consumidor de energia pode compartilhar parte de um gerador fotovoltaico maior instalado em local distinto da sua residência e operado por uma empresa que oferece este serviço.

Desta forma, o custo por km rodado de um VE hoje é cerca de cinco vezes menor do que o de um carro a gasolina e na medida em que os preços dos VEs se alinharem com os dos veículos convencionais e a notícia se espalhar, os mecanismos de financiamento darão conta de oferecer a qualquer pessoa que esteja pensando em trocar de carro, a atrativa opção do VE.
Energia Solar e Mobilidade Urbana: O Papel Vital da Energia Solar na Ascensão dos Veículos Elétricos

Os Veículos Elétricos e as mudanças climáticas

A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, afirmou que o Brasil chegará à COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), a ser realizada em 2025, em Belém, com redução de emissão de carbono, redução do desmatamento e governança para ser considerado protagonista e referência no setor.

Promovendo a adoção em larga escala dos VEs de pequeno e grande porte (incluindo ônibus e caminhões), o Brasil estará em uma posição muito favorável para protagonizar a transição do setor de transportes rumo à eletrificação e à descarbonização, podendo gerar toda a energia elétrica de fonte solar e eólica necessária para o desenvolvimento sustentável da mobilidade elétrica e dando um exemplo ao mundo. (pv-magazine-brasil)

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