Veículos elétricos, energia
solar e mudanças climáticas: o papel do Brasil na descarbonização dos
transportes.
Com a revolução industrial, a
produção de energia elétrica e calor passaram a ser os principais responsáveis
pelas emissões de CO2 do planeta, seguidos pelas emissões de
veículos com motores a combustão. Por mais de um século os carros que queimam
combustíveis fósseis vêm despejando quantidades crescentes de gases de efeito
estufa e outros poluentes na atmosfera.
Nos últimos anos, no entanto,
a produção barata de energia renovável a partir da geração solar e eólica,
associada ao desenvolvimento tecnológico e uma consistente redução de custos
das baterias com a produção em massa das baterias de íons de lítio, trouxe de
volta o VE, que aparece como a solução para resolver ao mesmo tempo a questão
das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pelas mudanças climáticas e
a poluição do ar nos grandes centros urbanos. Junto a isso, o VE é um carro
muito melhor de dirigir do que um carro com motor a combustão e vem recheado de
tecnologia.
De onde vem a energia para
carregar um VE?
A Agência Internacional de
Energia (IEA, na sigla em inglês para International Energy Agency) prevê a
expansão do mercado de VEs de 16,5 milhões em 2021 para 350 milhões até o final
desta década e com isso a expectativa de aumento do consumo de energia elétrica
para os VEs em 2050 é 90 vezes maior do que o consumo atual.
De onde virá toda essa
energia? Na maior parte do mundo, a produção de energia elétrica vem de fontes
fósseis como o carvão e o gás natural, que emitem poluentes e CO2 e
que por isso associam ao VE uma pegada de carbono que não pode ser desprezada.
Não é o caso do Brasil. Por aqui, em 2023, mais de 93% de toda a eletricidade
gerada veio de fontes renováveis como hidrelétricas, fazendas e telhados
solares, parques eólicos e usinas a biomassa, o que confere ao VE que roda em
nosso país um carimbo de sustentabilidade único em todo o planeta.
Com a tecnologia atual, o
carregamento da bateria do seu VE pode demorar entre 30 minutos ou até 12 horas
– tudo depende do tamanho da bateria e da velocidade do ponto de carregamento
(a potência do carregador). Mas alguns fabricantes de VEs afirmam que antes do
final desta década você já poderá viajar até 1000 km e recarregar seu carro em
apenas 10 minutos; a densidade energética das novas baterias de estado sólido
será equivalente à da gasolina.
No Brasil, onde 82% da
população mora em uma residência unifamiliar e onde quase sempre o VE pode
ficar estacionado perto de uma tomada comum, deixar o seu carro carregando
durante a noite uma ou duas vezes por semana enquanto você dorme parece ser um
inconveniente menor do que parar num posto de gasolina para encher o tanque de
um carro convencional. Carregadores de baixa potência, como os que vêm junto
com alguns VEs, com potência menor do que 3 kW, ou até os “wall boxes” de 7 kW
disponíveis no mercado para instalações residenciais, serão responsáveis por
cerca de 80% das recargas de VEs no Brasil.
Baterias de segunda vida,
reciclagem e economia circular
Para contornar o fato de que
a autonomia de um VE ainda é menor do que a de um carro convencional, o que
pode ser uma limitação séria em uma viagem de algumas centenas de km, existem
carregadores rápidos, que podem ser instalados numa estação de serviço de
autoestrada e que já podem hoje carregar o seu carro em cerca de 30 minutos.
Para operar estes carregadores rápidos, é necessária uma infraestrutura de
suprimento de energia elétrica bastante robusta e cara, pois um carregador
rápido como o recentemente apresentado em São Paulo pela empresa BYD demanda
até 180 kW por unidade.
Uma estação de serviço de
autoestrada vai necessitar instalar vários destes equipamentos para que
múltiplos usuários possam carregar seus VEs simultaneamente e isso leva a uma
demanda da rede elétrica somente naquela estação de serviço que pode ser
equivalente à demanda de vários quarteirões de casas em um bairro residencial –
caro e inconveniente. Para contornar essa situação, os carregadores rápidos de
alta potência instalados em estações de serviço nas estradas serão dotados eles
próprios de baterias estacionárias. Estas baterias estacionárias atuarão como
um pulmão de energia, para que o carregador rápido seja alimentado diretamente
por elas, ao invés de diretamente pela rede elétrica pública.
O uso de baterias de Li
descartadas de VEs em aplicações estacionárias é denominado de uso em segunda
vida e acontece quando as baterias atingem 70 a 80% da capacidade de carga
original, o que limita o seu uso em VEs, mas não é um problema nas aplicações
estacionárias, tendo em vista que a qualidade da energia elétrica armazenada
pelas baterias na segunda vida é a mesma daquela que se tem nas baterias novas.
Assim, o uso das baterias de
VEs é estendida, antes que elas sejam finalmente destinadas à reciclagem, onde
serão desmontadas para recuperar os componentes químicos que serão utilizados
para produzir novas baterias. Este conceito de economia circular já é bastante
utilizado e conhecido no Brasil, e o exemplo da reciclagem do alumínio das
latinhas de cerveja e refrigerantes ilustra bem o conceito.
Veículos elétricos puros,
veículos elétricos a hidrogênio, veículos a álcool, emissões de gases de efeito
estufa e energia solar fotovoltaica
Quando o Brasil passou a
utilizar o etanol nos motores a combustão e a tecnologia dos motores “flex
fuel” se desenvolveu nos anos 1990, o álcool apareceu como uma alternativa
interessante para limitar as emissões dos gases de escapamento, reduzindo a
poluição ambiental dos grandes centros urbanos e os gases de efeito estufa. O
argumento de que o mesmo CO2 emitido pelo escapamento de um veículo
movido a álcool é capturado pela cana de açúcar no processo de fotossíntese,
num ciclo de balanço zero, precisa também levar em conta que os processos de
plantio, fertilização do solo, colheita e transporte da cana de açúcar também
levam a emissões de CO2 (200 a 260 gCO2eq/litro de
álcool) que não têm como serem abatidas em nenhuma etapa do processo.
Nos VEs, as novas demandas de
energia elétrica resultantes precisam ser atendidas por fontes renováveis e
livres de emissão, para que a expectativa de redução do impacto ambiental do
setor de transportes seja cumprida. No Brasil toda a nova energia elétrica a ser
utilizada pelos VEs deverá vir de fonte solar ou eólica, que são hoje as fontes
mais baratas e as responsáveis por praticamente toda a expansão do parque
gerador nacional. VEs a hidrogênio de pequeno e grande porte (ônibus e
caminhões) também vêm sendo desenvolvidos para deslocamentos de grandes
distâncias.
Para ter emissão zero, os VEs
a hidrogênio terão o hidrogênio produzido por eletrólise da água. Neste
processo, a energia elétrica, que é o principal insumo na produção de
hidrogênio (a energia elétrica responde por 70% do custo da produção de
hidrogênio), também precisa vir de fonte solar ou eólica. O hidrogênio pode
também ser obtido através do processo de conversão de álcool e alguns
fabricantes de carros apostam no veículo elétrico movido a etanol, onde a
tecnologia de produção de hidrogênio está embarcada no veículo, produzindo em
uma célula a combustível a partir deste hidrogênio toda a energia elétrica para
alimentar o motor do VE híbrido flex.
A eficiência das diversas
etapas da produção de hidrogênio a partir do etanol até fazer a roda do carro
girar é equivalente à do motor a combustão utilizando etanol puro e pode ser
ilustrada na figura abaixo. Em um hectare de cana de açúcar pode-se produzir
anualmente no Brasil álcool o suficiente para que um carro flex a combustão
utilizando etanol puro possa rodar cerca de 53.900 km por ano.
Se este mesmo etanol
produzido em um ano a partir de um hectare de cana de açúcar for utilizado em
um VE flex para produzir o hidrogênio que será utilizado pela célula a
combustível embarcada nele para produzir a eletricidade que alimentará o motor
elétrico, este VE vai rodar um pouco mais (55.000 km por ano). Mas se
utilizarmos este mesmo um hectare de área para instalar placas solares
fotovoltaicas para gerar eletricidade para carregar as baterias de um VE puro,
a energia gerada anualmente vai possibilitar que este VE rode muito, muitíssimo
mais (14.000.000 km por ano) do que qualquer uma das alternativas que utilizem
o etanol.
Esta diferença parece absurdamente grande, mas é fácil de explicar: a eficiência da conversão fotovoltaica da energia do sol em energia elétrica é cerca de 100 vezes maior do que a da fotossíntese que converte a mesma energia do sol na biomassa que vai resultar no biocombustível (neste caso o etanol) e a eficiência do motor elétrico do VE é cerca de 3 vezes maior do que a do motor a combustão do carro a álcool. Multiplicando-se essas diferenças fundamentais de eficiência se chega nesta diferença surpreendente de rendimento. Contra as leis da Natureza não há muito o que fazer, razão pela qual todas as tecnologias de biocombustíveis podem ser consideradas tecnologias de transição, rumo à completa eletrificação dos transportes e das emissões zero.
A produção de biocombustíveis compete com a produção de alimentos e no Brasil tradicionalmente toda a vez em que o açúcar aumentou de preço nos mercados internacionais, os usineiros preferem produzir açúcar ao invés de álcool e o biocombustível aumento de preço.
Cobrir edificações com placas
solares para gerar energia para todo o consumo de energia elétrica inclusive o
dos VEs é pulverizar o país com pequenos geradores distribuídos, gerando
energia junto ao ponto de consumo, sem ocupar nenhuma área adicional, pois as
edificações oferecem ao mesmo tempo a estrutura e a área para a instalação das
placas solares; ao mesmo tempo, a interface elétrica da edificação com a rede
elétrica pública fornece a conexão do gerador solar com a rede.
E no inverno, meu VE vai
diminuir sua autonomia com o frio?
Temperatura não é um problema
no Brasil. No inverno que os países do hemisfério Norte passaram este ano,
houve muita notícia sobre problemas dos proprietários de VEs quando as
temperaturas desceram para baixo de zero. Filas nas estações de recarga
públicas, carros parados nas vias porque a bateria descarregou mais
intensamente do que no verão, empresas de locação de veículos rompendo
contratos com fabricantes de VEs porque a autonomia dos carros elétricos
locados não atendia os contratos. No Brasil as temperaturas são muito mais
amenas e a redução de autonomia dos VEs no inverno da região Sul do país é
pouco significativa.
O telhado que abriga o VE ao
mesmo tempo gera toda a energia para ele
A média de deslocamento
mensal dos carros no Brasil é de cerca de 1000 km por mês e eles passam a maior
parte do tempo estacionados, ocupando uma vaga que tem em média 10 m2.
Se a cobertura dessa vaga utilizar placas solares fotovoltaicas, é possível
gerar mais de 200 kWh de energia elétrica por mês na média anual mesmo nas cidades
menos ensolaradas do Brasil. Com essa energia um VE pode rodar entre 1000 e
2000 km todo o mês, dependendo do modelo do VE e do estilo de dirigir do
condutor.
Na
expectativa de apresentar o VE como um importante contribuinte para a mitigação
do impacto ambiental do setor de transportes, imagine agora que ao comprar um
VE você ganhe de brinde um gerador solar fotovoltaico para instalar no telhado
da garagem onde este VE vai passar a maior parte do tempo estacionado e onde
também vai ter a sua bateria carregada, ou então uma cota de um gerador solar
fotovoltaico compartilhado. Com a redução massiva nos preços da tecnologia
fotovoltaica, um gerador fotovoltaico que gere a energia para seu VE rodar
entre 1000 e 2000 km por mês custa menos de 5% do preço do VE mais barato no
Brasil (e ainda menos para os modelos de VE mais caros).
As próprias concessionárias
de automóveis podem passar a oferecer esta opção aos seus clientes e para
aqueles que moram em apartamentos, casa alugada ou que por qualquer motivo não
podem ou não querem um telhado solar na sua residência, o mercado brasileiro já
oferece opções de adesão ao que se chama de “geração compartilhada”, na qual o
consumidor de energia pode compartilhar parte de um gerador fotovoltaico maior
instalado em local distinto da sua residência e operado por uma empresa que
oferece este serviço.
Os Veículos Elétricos e as
mudanças climáticas
A ministra do Meio Ambiente e
Mudança do Clima, Marina Silva, afirmou que o Brasil chegará à COP 30
(Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), a ser realizada em
2025, em Belém, com redução de emissão de carbono, redução do desmatamento e
governança para ser considerado protagonista e referência no setor.
Promovendo a adoção em larga
escala dos VEs de pequeno e grande porte (incluindo ônibus e caminhões), o
Brasil estará em uma posição muito favorável para protagonizar a transição do
setor de transportes rumo à eletrificação e à descarbonização, podendo gerar
toda a energia elétrica de fonte solar e eólica necessária para o
desenvolvimento sustentável da mobilidade elétrica e dando um exemplo ao mundo.
(pv-magazine-brasil)
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