Enquanto 673 milhões de
pessoas enfrentaram a fome em 2024 — representando 8,2% da população mundial,
segundo a FAO —, o Brasil e o mundo desperdiçam bilhões em alimentos
perfeitamente comestíveis que jamais chegam às prateleiras dos supermercados.
O paradoxo é cruel: a fome
não existe por falta de comida no planeta, mas por falta de renda e acesso, ao
mesmo tempo em que toneladas de legumes, verduras e frutas são descartadas
diariamente apenas por não atenderem a padrões estéticos arbitrários impostos
pelo varejo.
O problema do desperdício de alimentos atinge proporções alarmantes globalmente, considerado do campo à mesa. Atualmente, a pessoa média desperdiça cerca de 132 kg de comida por ano, e esse número está em ascensão. Embora historicamente os países mais ricos fossem os principais responsáveis por esse problema, um novo artigo de economistas agrícolas publicado na revista Cell Reports Sustainability alerta que a urbanização e a expansão econômica estão impulsionando o aumento do desperdício em países de baixa e média renda, estreitando perigosamente essa lacuna.
O risco da convergência e as implicações para o Brasil
O desperdício global de
alimentos – definido como o descarte feito por consumidores ou estabelecimentos
de varejo e serviços de alimentação – cresceu cerca de 24% entre 2004 e 2014.
Embora os países de alta renda ainda desperdicem mais por pessoa, as taxas
estão se tornando surpreendentemente similares em todo o mundo. De acordo com
um relatório de 2024, a variação anual do desperdício é de apenas cerca de 7 kg
por pessoa entre países de alta, média-alta e média-baixa renda.
Essa convergência é
impulsionada pelo aumento do desperdício em nações de renda média, como China,
Índia e Brasil, que estão passando por rápido crescimento econômico e,
principalmente, urbanização.
Os economistas agrícolas
Emiliano Lopez Barrera e Dominic Vieira, da Texas A&M University, destacam
que a urbanização transforma os hábitos de consumo e compra das pessoas,
resultando em maior desperdício. Domicílios urbanos, por exemplo, tendem a
gerar mais lixo alimentar do que as comunidades rurais, que frequentemente
reaproveitam o que é descartado.
A expansão do acesso a
supermercados e à refrigeração em áreas urbanas incentiva os consumidores a
comprar mais alimentos perecíveis do que conseguem utilizar. Curiosamente, a
própria refrigeração durante o transporte deslocou o momento e o local do
desperdício, resultando em uma maior quantidade de comida sendo descartada nas
residências dos consumidores.
O setor varejista também contribui significativamente. Os autores citam dados alarmantes para o Brasil, onde as redes de supermercado reportaram perdas de R$ 6,7 bilhões (equivalentes a US$ 1,2 bilhão) devido ao desperdício de alimentos apenas em 2018.
Desperdício alimentar: Um bilhão de refeições são desperdiçadas todos os dias, aponta ONU.
O paradoxo da aparência:
Supermercados vs. Consumidores
O setor supermercadista
brasileiro enfrenta um paradoxo revelador no descarte de alimentos vegetais que
evidencia uma falha sistêmica na cadeia de distribuição. Enquanto os
supermercados justificam o descarte massivo de legumes, verduras e frutas com
base em padrões estéticos rigorosos, alegando que consumidores rejeitam
produtos com manchas, formatos irregulares ou sinais naturais de
amadurecimento, os próprios consumidores contestam essa narrativa.
A realidade é que muitos
compradores sequer têm a oportunidade de fazer essa escolha, uma vez que esses
alimentos “imperfeitos” são removidos das prateleiras antes mesmo de chegarem
ao ponto de venda, criando uma percepção distorcida de que existe uma demanda
real por produtos exclusivamente “perfeitos”.
Essa prática resulta em
toneladas de alimentos nutritivos sendo descartados diariamente, contribuindo
significativamente para os R$ 6,7 bilhões em perdas reportadas pelo setor.
A comparação com as feiras
livres expõe ainda mais essa contradição estrutural. Nesses espaços comerciais
tradicionais, frutas e verduras com aparência variada – desde tomates
ligeiramente amassados até bananas com manchas escuras – encontram compradores
dispostos a adquiri-los, muitas vezes por preços mais acessíveis.
A diferença fundamental
reside na filosofia de comercialização: enquanto feiras livres oferecem
diversidade de opções e permitem que o consumidor faça escolhas conscientes
baseadas em preço, qualidade nutricional e sustentabilidade, os supermercados
impõem padrões estéticos uniformes que não refletem necessariamente as
preferências reais do consumidor.
Essa discrepância revela que o problema não está na demanda do mercado, mas sim numa política comercial que prioriza a apresentação visual em detrimento do aproveitamento integral dos alimentos, perpetuando um ciclo vicioso de desperdício que poderia ser facilmente quebrado através da oferta de produtos com diferentes padrões estéticos e campanhas educativas sobre consumo consciente.
Os custos de não agir
Os impactos desse aumento, se
não forem combatidos, são severos. Segundo os autores, o aumento do desperdício
nos países de baixa e média renda “arrisca fixar padrões de consumo
insustentáveis”, com sérias implicações para a segurança alimentar, a saúde
pública e a estabilidade ambiental.
A inação nesse momento
crucial pode magnificar os custos de longo prazo e aumentar a dificuldade de
intervenções futuras.
Estratégias urgentes para
frear o desperdício
Para combater essa tendência crescente, os especialistas argumentam que são necessárias iniciativas políticas e estruturais. Eles enfatizam que “investimentos proativos”, como a melhoria da infraestrutura da cadeia de frio (refrigeração), a implementação de leis de doação de alimentos e campanhas de conscientização pública, podem moldar as normas sociais antes que o desperdício se torne enraizado.
Mais de 1 bilhão de refeições vão parar no lixo diariamente em todo o mundo; número é maior que o de pessoas que passam fome.
Segundo relatório da ONU, não
é por falta de comida que tanta gente passa fome no mundo. A produção de
alimentos seria suficiente para abastecer toda a humanidade.
As ações propostas
complementam-se em diferentes níveis:
1. Incentivos Estruturais: É
fundamental incentivar supermercados e restaurantes a aproveitar integralmente
legumes, verduras e frutas e a doar alimentos. Também é necessário promover a
compostagem e outros usos alternativos para resíduos.
2. Educação do Consumidor:
Devem ser implementadas campanhas de conscientização que promovam a compra mais
inteligente, melhores práticas de armazenamento de alimentos, o controle de
porções e o reaproveitamento de sobras. Os autores ressaltam a necessidade de
complementar a expansão da cadeia de frio com educação e planejamento, para evitar que o
ônus do desperdício recaia sobre as famílias de baixa e média renda.
Os economistas concluem que
uma estratégia mais “abrangente, coordenada globalmente” – e que esteja
ancorada em intervenções políticas específicas para cada país e região – é
necessária para mitigar os impactos e promover o progresso em direção a
sistemas alimentares mais sustentáveis. Incorporar estratégias de redução de
desperdício nos esforços mais amplos de sustentabilidade e equidade também é de
suma importância. (ecodebate)






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