Se algum leitor do
EcoDebate teve a oportunidade ou a paciência de ler alguns dos artigos escritos
por mim e aqui publicados, deve se lembrar da minha insistência em mostrar que
quantidade e qualidade de água produzida depende do comportamento das
superfícies das bacias hidrográficas. Já tentei mostrar, por várias vezes, que
de nada adianta a gerência apenas das águas que já correm pelos córregos e rios
e que apresentam diferenças de vazões cada vez maiores entre períodos chuvosos
e de estiagens. Já discuti muito o verdadeiro papel das APPs, insistindo no
fato de elas ocuparem apenas partes das unidades de produção de água. Já falei
muito da Lei Federal 9.433, a Lei das Águas, que traz visão mais realista da
gestão de recursos hídricos. Já tentei deixar claro que o sucesso da produção
de água é inteiramente dependente da gestão científica e técnica do ciclo
hidrológico aplicado às pequenas bacias que se juntam para formar as grandes.
Mas depois de 45 anos
de dedicação aos conhecimentos relacionados à hidrologia e ao manejo de
pequenas bacias hidrográficas, e quando o horizonte de vida, em função da
idade, começa a ficar cada vez mais próximo, chego a irritar-me quando vejo que
muitas autoridades, administradores e especialistas de plantão, ainda acreditam
em um “Papai Noel Hidrológico”. As ações estão concentradas no manejo da água,
ou seja, estão fixadas nos corpos d’água existentes, na esperança de que eles
sobrevivam sob a guarda das APPs. Projetos ou programas que tentam sair dessas
rotinas ainda são raros e mesmo os existentes estão presos aos conceitos
puramente ambientalistas e a produção de água tem suas especificidades. Não
entendo quando instituições, autoridades e até cientistas de outras áreas ou de
áreas simplesmente correlatas insistem em adotar procedimentos iguais para todo
o território nacional. Assim agindo, não passam de burocratas da água.
Algumas questões são
intrigantes como o paradoxo do domínio público versus guardiões das nascentes e
córregos. Explicando: as fontes de água, superficiais ou subterrâneas, são de
domínio público (Lei Federal 9.433). Portanto, a propriedade particular que
tiver uma fonte de água em seus domínios não tem livre direito de usá-la,
dependendo da concessão de órgão competente. Ao mesmo tempo, espera-se que o
proprietário tome todas as medidas necessárias para garantir o bom
funcionamento do ciclo hidrológico em seus domínios. A Agência Nacional de
Águas (ANA), braço executivo do sistema de gerenciamento, previsto na 9.433, e
cuja criação data de julho de 2000 (Lei Federal 9.984) tem, por exemplo, um
programa chamado Produtor de Água, que, sob ótimos propósitos, visa apoiar
práticas de conservação de bacias hidrográficas. A definição do programa,
entretanto, tem algo de estranho, pois o objetivo, conforme descrito na sua
apresentação, diz que ele visa “a redução da erosão e do assoreamento dos
mananciais nas áreas rurais”. Mas a hidrologia de pequenas bacias
hidrográficas, que eu prefiro chamar de “hidrologia hewlettiana”, mostra que
não basta combater a erosão do solo para que o aquífero subterrâneo seja
abastecido. Se a água infiltra, mas não desce até o lençol, a erosão fica controlada,
é verdade, mas a nascente e o córrego poderão secar nos meses sem chuvas, pois
a água infiltrada poderá não descer ao lençol em função de perdas por
evapotranspiração e/ou por escoamento subsuperficial, por exemplo.
Outra obsessão minha
é o uso da pequena bacia hidrográfica como unidade básica de trabalhos visando
produção de água. Nela os comportamentos hidrológicos podem ser mais bem
observados, analisados, corrigidos e monitorados. Na grande bacia há um
achatamento dos eventos e fica muito difícil indicar medidas conservacionistas
que atendam as especificidades das suas sub-bacias. Também tenho divergências
sérias com a classificação de bacias por suas áreas em quilômetros quadrados ou
hectares. Prefiro o conceito hidrológico de ordem, estabelecendo como pequena
bacia aquela de ordem 1, ordem 2 ou, no máximo, ordem 3.
Mas voltando ao
paradoxo do domínio público versus guardiões de nascentes, conheço projeto
aprovado pela ANA, no programa Produtor de Água, onde algumas atividades
previstas para recuperação da capacidade de infiltração de encostas com
pastagens foram cortadas com o argumento de que estariam investindo dinheiro
público em áreas privadas. Ora, se a encosta está na pequena bacia
hidrográfica, provoca muita enxurrada, não tem obstáculo no perfil do solo para
que a água possa percolar até o lençol e a forrageira a ser implantada, para
melhoria da infiltração, tem raiz pouco profunda, com tendência a ter pequena
perda por evapotranspiração, não há muito sentido na proibição. Afinal, a água
não é de domínio público? A unidade que produz água não é a bacia, conforme
dito na própria Lei 9.433? O investimento na encosta não estaria apenas fazendo
com que a ANA cumprisse suas obrigações de guardiã da água? É lógico cobrar
isso do proprietário, quando o bem não lhe pertence e ele pode até ter de pagar
pelo seu uso? Outra proposta do Produtor de Água é dar incentivos ao
proprietário que tiver cuidado bem da produção de água. Olha que eu disse
“tiver”, indicando que ele tem que investir primeiro para depois tentar a
compensação. Num país em que leis, normas e intenções mudam como cor de nuvens,
quem vai acreditar nisso?
A ANA, na verdade,
não tem culpa explícita, pois fica presa a um emaranhado de normas e de
exigências burocráticas que dificultam o seu trabalho. Mas se isso não for
mudado, a produção de água vai ficar prejudicada. A minha esperança é que os
Comitês de Bacias, previstos na Lei 9.433, consigam vencer as barreiras
burocráticas e passem a olhar as bacias como um todo, como unidades básicas de
produção de água, e não apenas como detentoras de APPs. Mas reclamo da demora,
pois a 9.433 já tem 15 ano e meio e os Comitês ainda estão muito presos no assembleísmo,
ou concentrados em saneamento.
Se quisermos um
futuro com água, vamos ter de mudar muitos focos atuais. Primeiro vamos ter de
privilegiar produção de água, ou seja, transformar água de chuva em água
disponível e bem distribuída no espaço e no tempo. Vamos precisar lembrar,
sempre, que manejo ou gerenciamento da água depende, em primeiro lugar, da sua
existência. E a existência, no tempo e no espaço, está dependente de manejo
adequado do ciclo hidrológico em cada especificidade de bacias hidrográficas. O
contrário disso será um futuro sem água, cada vez mais preocupante. (EcoDebate)
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