Diante da cegueira,
inércia, omissão e conivência coletivas e deliberadas em relação a todo o
absurdo processo de revisão do Código Florestal, que recebeu até a denominação
de “novo” (embora de novo não tenha nada, já que é tecnicamente e legalmente
retrógrado…) e chegou a ser aprovado como lei (Lei 12.651/2012), alguém agiu
com profissionalismo que se espera pelo posto que ocupa: a Procuradora-Geral da
República em exercício, Sra. Sandra Cureau.
“O processo
legislativo foi dominado por propostas que tinham como pano de fundo um único
objetivo: desonerar os proprietários rurais dos deveres referentes à proteção
das florestas e, ainda, ‘anistiar’ ilegalidades antes cometidas”, avaliou
a Procuradora, questionando a constitucionalidade do texto sancionado.
Tudo que
afrontosamente tivemos o desprazer de acompanhar neste vergonhoso drama
kafkaniano e freyriniano, sob pressão direta e indireta de apenas um setor da
sociedade, o setor do agronegócio, o mais interessado economicamente em sua
aprovação… foi uma clara afronta à nossa Leia Magna, que deveria ser seguida à
risca por todos, em especial os do poder público, mas contou com chancela
presidencial.
Afronta ao Artigo
Constitucional 225, a tudo que se possa imaginar em termos de embasamento
técnico, às políticas públicas nacionais e internacionais e à Política Nacional
de Meio Ambiente e de Recursos Hídricos e legislação vigentes, sem falar nos
aspectos éticos e morais. O Código Florestal original não era perfeito, mas, ao
menos, tinha bom senso e era técnico.
Uma afronta também
aos cientistas de instituições de renome como USP/ESALQ, UNESP, UNICAMP, UFRJ,
INPA, INPE, UFMT, UnB, UNIFESP, entre várias outras, além da SBPC e ABC. Até
mesmo a Embrapa, considerada como referência pelo próprio setor ruralista,
embora tenha se omitido deliberadamente do debate público e censurado funcionários,
tem -como era de se esperar dada à qualidade de seu corpo técnico- inúmeras
publicações de qualidade sobre o tema.
Uma afronta à
Ciência, com “C” maiúsculo, com rigor técnico e comprometimento com o bem
público. Desrespeitados foram também os brasileiros que se manifestaram
contrariamente nas ruas e nas redes sociais através de cerca de 3 milhões de
assinaturas entregues oficialmente à Presidente nas diferentes campanhas do
“VETA DILMA!”
Tudo absurdamente
ignorado: leis, políticas públicas, ciência, bom senso e opinião pública.
Entretanto, cede-se vergonhosamente às pressões políticas de um setor que tem
sido historicamente um dos mais privilegiados deste país e com grande
participação e responsabilidade no nível de degradação ambiental e social na
área rural, obviamente, com conivência e omissão de órgãos públicos.
Quem respeita a lei
é, mais uma vez, desrespeitado neste país. Quem avilta a lei continua sendo
favorecido. Inversão total de valores mantida por governos que se afirmavam
popular, republicano e democrático. Acontece no caso dos transgênicos, no uso
indiscriminado de agrotóxicos e se repete no caso do Código Florestal. Cria-se
o fato ilegal, argumenta-se com base em pseudociência e muda-se a legislação.
Simples assim.
Desde a Cúpula Mundial
sobre Desenvolvimento Sustentável (também conhecido como Estocolmo+30 e
Rio+10), realizada em 2002 em Joanesburgo, a ONU e a OMS têm enfatizado a
importância de se considerar o uso de água doce como uma questão ética,
salientando a necessidade de se incluir o aspecto de gênero relacionado ao
papel da mulher na ética do uso da água. Como a água é a fonte da vida e porque
a água potável é um componente crucial da saúde, a questão ética é uma questão
de sobrevivência para a humanidade (!).
As mulheres, também
como fontes de vida, têm um papel de liderança na promoção da ética ambiental.
Mulheres, especialmente as de comunidades e povos tradicionais, segundo a ONU,
têm conhecimento sobre as relações ecológicas e a gestão de ecossistemas
frágeis, conhecimento fundamental para a sobrevivência da humanidade (!). De
acordo com a mesma ONU, ações para o desenvolvimento sustentável que não
envolvam as mulheres não terão sucesso.
Como mulher e
cientista da área de recursos hídricos, ecologia de rios e gestão de bacias
hidrográficas, me espanta tamanha desmoralização da ciência e das políticas
públicas, realizada por pessoas que deveriam responsavelmente embasar suas
decisões em informação de qualidade. Ignorar ciência na era da informação é
praticar um desserviço ao país; é praticar improbidade administrativa no caso
de funcionários públicos; é agir inconstitucionalmente.
Pergunta-se: Como
imaginam que se possa fazer gestão ambiental e de recursos hídricos na escala
de uma bacia hidrográfica, levando em conta regras diferenciadas para cada
propriedade em separado, sem considerar o sistema como um todo? Não só a
Constituição foi desrespeitada, mas a Lei de Administração Pública, a Lei de
Recursos Hídricos, as políticas da ONU, a Convenção Ramsar, a Convenção do
Clima e a de Diversidade Biológica, a ética…
Que bom, então, que a
Sra. Sandra, uma mulher, fez o seu papel profissional de funcionária pública e
agiu. Ou teria ela, por ventura, se sensibilizado e bebido da mesma fonte das
avós do projeto “A Voz das Avós – no Fluir das Águas”?
Outras mulheres com
poder político, como as sras. Dilma, Izabella, Gisela e Kátia, frente a tudo
que já sabemos nesses finais da Década da Água6, precisam urgentemente beber
muito dessa fonte que as tornariam mais femininas no amplo sentido da relação
maternal de cuidado com a vida, com a água, com a mãe Terra.
PS- Sugestão técnica:
Recomeçar todo o processo novamente para se discutir e elaborar uma nova
legislação, respeitando a Política Nacional de Recursos Hídricos, regida pela
Lei Nacional de Recursos Hídricos, ou seja, garantindo a pariticpação de toda a
sociedade, necessária para a efetiva gestão de recursos hídricos como previsto
nas referidas Política e Lei. A legislação determina que a gestão seja
participativa e tripartite, garantindo que representantes de todos os setores
da sociedade (usuários, sociedade civil e governos) de forma paritária, exerçam
sua cidadania, mas com o devido embasamento técnico da SBPC, ABC, Embrapa,
Universidades e outras instituições de pesquisa. Para tanto, poder-se-ia
utilizar o método das Conferências Nacionais, muito bem realizadas durante o
governo Lula, com o apoio dos comitês de bacia e universidades locais, mas
tendo como produto final a efetiva produção de um Projeto de Lei. Tal proposta
coletiva seria posteriormente analisada pelos Conselhos Nacional de Recursos
Hídricos e de Meio Ambiente, e posteriormente referendada por meio de
Plebiscito Nacional. Água é assunto coletivo. Proponho então esta inovação.
Fala-se tanto em invação tecnológica atualmente, mas na área de gestão de
recursos hídricos uma inovação (apesar de não tecnológica) simples de ser
implantada seria o respeito às leis vigentes e às Convenções cujo país já é
signatário, todas bem embasadas em Ciência. (EcoDebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário