O plano de mobilidade urbana e o futuro das cidades
No século XIX, o transporte de cargas e o transporte público
e privado de pessoas tinham um importante elemento comum: eram todos, em sua
maioria, realizados por animais. De fato, o animal era tão utilizado nas
cidades que, em Nova York, por exemplo, a frota beirava 200 mil cavalos.
Por volta dos anos 1800, a população de equinos crescia
vertiginosamente nas grandes cidades e, com ela, os problemas sociais e
sanitários trazidos pela grande quantidade de animais. Para que se tenha uma
ideia, por volta de 1890, cada um dos cavalos que compunha a já mencionada
frota de Nova York produzia, em média, dez quilos de fezes por dia, totalizando
duas mil toneladas de dejetos espalhados pela cidade a cada 24 horas.
Essa situação desesperadora não era exclusiva da cidade
norte-americana. O jornal Times
de Londres estimou, em 1894, que se não houvesse nenhuma mudança, em meados de
1950 todas as ruas da cidade estariam soterradas sob 2,5 metros de dejetos de
cavalo.
Somando-se ao mau cheiro, os excrementos atraíam um enxame
enorme de moscas – grandes vetores de doenças – e ratos. Estima-se que,
comparativamente, o número de acidentes fatais per capita causados por veículos puxados por cavalos em Nova
York em 1900 era 75% maior que o de acidentes de trânsito atuais (Morris,
2007). Paralelo a isso, o congestionamento provocado pelo uso do cavalo como
meio de transporte mais que dobrou entre 1885 e 1905.
Numa das várias tentativas de se minimizar essas questões,
Nova York sediou a 1º Conferência Internacional de Planejamento Urbano, em
1898. Na pauta principal do evento estava a busca de uma solução para os
problemas causados nas grandes cidades do mundo pelo uso exacerbado do cavalo
como meio de transporte.
A Conferência, que tinha duração prevista de sete dias, terminou
antes do esperado, sem, no entanto, trazer ao problema qualquer solução
definitiva. A situação só viria a ser contornada no começo do século XX, com a
disseminação do uso do carro.
A expansão do carro trouxe inúmeros benefícios ao
desenvolvimento tecnológico e econômico das cidades, introduzindo mudanças
significativas na linha de produção e no mercado de trabalho (fordismo), cujas
consequências – positivas e negativas – são sentidas até hoje. Esses fatores
fizeram que os investimentos no setor se tornassem constantes, como forma de
garantir sua crescente expansão.
No Brasil, em especial, a preferência ao transporte
rodoviário começou a ser dada a partir da Constituição de 1934, com o
direcionamento dos esforços para construção de rodovias no país. Em 1956,
passamos pela introdução da indústria automobilística, acompanhada, desde
então, por políticas públicas de apoio aos veículos automotores, em especial ao
carro e à motocicleta.
Essas políticas de incentivo, que persistem até hoje, no
entanto, fizeram que, cem anos após a crise vivida pelo uso de cavalos no
transporte, o uso do automóvel (outrora uma solução) se tornasse um problema
sério nos grandes centros urbanos. Voltamos a enfrentar e discutir os impactos
sociais, ambientais e de saúde gerados pelo uso exagerado de um modal no
transporte de pessoas: hoje, o carro se tornou o cavalo do século XXI.
A solução do passado, o problema de hoje
Atualmente, mais de 50% dos domicílios do Brasil já têm um
automóvel ou uma moto em suas garagens. De fato, a frota brasileira de veículos
está em franco crescimento, graças à política de incentivos adotada pelo
governo desde a década de 1930. Nos últimos dez anos, o número de automóveis no
país cresceu 138,6%, enquanto a população brasileira teve expansão de apenas 12,2%
no mesmo período.
Possuir um carro, no entanto, é apenas a ponta do problema
da mobilidade nas grandes cidades, agravado pela utilização cotidiana e
excessiva do veículo. Prova disso é que, apesar de Nova York ter uma das
maiores taxas de motorização do mundo, é em São Paulo que as pessoas gastam
mais tempo no deslocamento casa-trabalho.
Em um rol de 31 cidades, a capital paulista perde apenas
para Xangai, maior cidade da China. No ranking
das dez cidades com maior tempo de deslocamento, cinco são brasileiras e todas
aparecem em situação mais crítica que a de Nova York (Ipea, 2013).
O tempo não é a única coisa que as pessoas, e notadamente os
brasileiros, perdem nos congestionamentos. Perde-se também saúde, dinheiro e,
em alguns casos, até a vida.
O Brasil possui taxas altíssimas de acidentes de trânsito,
chegando a ter 22,5 mortes a cada 100 mil pessoas, mais do que a Índia (18,9),
a China (20,5) e o dobro dos Estados Unidos (11,4). Estima-se que o sistema de
saúde brasileiro gaste em média R$ 50 bilhões ao ano com tratamentos e outros
custos decorrentes de acidentes de trânsito.
De acordo com estudo feito a cada dois anos pela Fundação
Getulio Vargas (FGV), o trânsito de São Paulo acarretou à cidade perdas da
ordem de R$ 40 bilhões em 2012. Isso representa 1% do PIB do país, com cada
cidadão deixando de ganhar ou de gastar cerca de R$ 3,6 mil enquanto estava
preso, de forma totalmente improdutiva, nos congestionamentos.
Quando se analisa a saúde, os números não são menos
preocupantes. Em 2011, quase 27 mil internações realizadas na Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP) foram decorrentes da poluição do ar. Na
cidade de São Paulo, os gastos com essas internações chegaram a R$ 31 milhões
(Vormitag, 2013).
Há, ainda, a questão do aquecimento global. Se no século XIX
o assunto não era presente no cotidiano das pessoas, hoje com certeza cresce em
importância ante os efeitos desse fenômeno e a expansão constante das emissões
de gases de efeito estufa no país.1
Nesse contexto, o setor de transporte é um dos atores
principais e ocupa o posto de segundo maior emissor de gases de efeito estufa
no país (7% a 9% das emissões, ficando atrás somente das queimadas e mudanças
no uso do solo – cerca de 70%). Quando se trata das emissões do setor de
energia, no qual o transporte está inserido, ele ainda responde pela maior
parte das emissões do setor (48,23%).
No tocante às emissões oriundas do transporte de
passageiros, 68% delas são provenientes do transporte individual e 32%, do
transporte coletivo (Ministé-rio do Transporte, 2013).
Voltando à estaca zero
Os números apresentados deixam claro que a solução para o
transporte com carros envelheceu e que suas externalidades negativas já são
tantas que chegam a superar seus benefícios.
Do ponto de vista de políticas públicas, talvez uma das mais
graves consequências trazidas pelo carro tenha sido a apontada por Jared
Diamond em seu livro Colapso,
no qual sinaliza que o uso do automóvel inviabilizou a projeção de sistemas de
transportes públicos que satisfizessem as necessidades da maioria dos moradores
das cidades. Citando o caso de Los Angeles, Diamond (2012, p.599) explica que nossa antiga rede de bondes faliu nos anos de
1920 e 1930, e seus direitos de exploração foram comprados por fabricantes de
automóveis e subdivididos de modo que fosse impossível reconstruir a rede (que
competia com os automóveis). A preferência dos habitantes de Los Angeles por
viver em casas ao invés de prédios e apartamentos, e as longas distâncias e
diversas rotas cruzadas pelos trabalhadores tornou impossível projetar sistemas
de transporte público que satisfizessem as necessidades da maioria dos
residentes.
Isso ocorreu em razão da priorização histórica dada por
diversos governos, inclusive o brasileiro, à indústria automobilística, o que
levou à marginalização e ao sucateamento de outros modais que não o individual
motorizado. Essa priorização cria um ciclo interminável de deterioração das
cidades e utilização injusta e antidemocrática do espaço urbano – que precisa
ser corrigida com urgência.
Um século após a crise vivida pelas grandes cidades com seu
sistema de transporte, voltamos a sonhar e a discutir uma solução de mobilidade
que nos redima, desejando que desta vez o remédio de hoje não represente a
doença do futuro.
Um passo rumo à mudança
Em janeiro de 2012, e após quase 17 anos de tramitação no
Congresso Nacional, o Brasil passou a ter uma Política Nacional de Mobilidade
Urbana (PNMU). Instituída pela Lei n.12.587/2012, a Política define as
diretrizes que devem orientar a regulamentação e o planejamento da mobilidade
urbana nas cidades brasileiras.
As diretrizes são claras e podem ser bem resumidas em uma
frase: é preciso incentivar os deslocamentos por meios de transporte não
motorizados e os coletivos e desestimular os individuais motorizados –
responsáveis por 27,4% dos deslocamentos realizados nas cidades brasileiras com
mais de 60 mil habitantes (Associação…, 2012).
Nisso reside o maior mérito da Política: ao obrigar que os
gestores das cidades priorizem e incentivem outros modais, ela claramente tenta
corrigir a distorção na cultura do planejamento dos deslocamentos que ocorrem
no país.
Além de estabelecer diretrizes, a Política traz, ainda, uma
determinação clara para os municípios com mais de 20 mil habitantes (30% das
cidades brasileiras): de que elaborem, até abril de 2015, um Plano de
Mobilidade Urbana (PMU), capaz de abarcar não só as diretrizes da Lei, mas
também de traçar, juntamente à sociedade civil, um planejamento de curto, médio
e longo prazo para a forma como se darão os deslocamentos de bens e pessoas na
cidade.
Apesar de as determinações da PNMU serem importantes, a
ideia de fazer que os municípios brasileiros realizem um planejamento ordenado
do setor não é nova. Em 2001, o Estatuto das Cidades (Lei n.10.257/01) – que
instituiu a obrigatoriedade do Plano Diretor – determinou que todas as cidades
com mais de 500 mil habitantes elaborassem seu Plano de Transportes.
Mudanças no termo (de transporte para mobilidade) à parte, o
cerne das duas determinações é o mesmo: o vislumbre, pelo legislador, da
necessidade de se regular o setor de transporte de pessoas e cargas.
Não obstante isso, doze anos após o advento do Estatuto das
Cidades, a determinação feita por ele ainda continua obscura para boa parte dos
gestores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), somente 55,3% dos municípios com mais de 500 mil habitantes possuem o
Plano de Transporte. Dentre os 44,7% restantes que também deveriam ter um Plano
há mais de uma década, somente 28,9% o estão elaborando. Se o recorte for
ampliado para todos os 5.564 municípios do país, o percentual cai
consideravelmente: somente 3,8% possuem o mencionado instrumento de
planejamento (IBGE, 2013).
Esse preocupante cenário demonstra que o retorno da
determinação, de forma mais detalhada e aprimorada, veio em boa época, devido a
dois fatores principais – um relativo à norma em si e outro externo a ela.
O primeiro é o fato de que além da diferença de denominação
já apontada acima, à obrigatoriedade de elaboração do PMU somam-se a ampliação
de seu universo de abrangência, a determinação de claras diretrizes que deverão
orientar sua elaboração e conteúdo e o estabelecimento de que aqueles que
descumprirem a norma federal ficarão privados de receber recursos orçamentários
federais destinados à mobilidade até que cumpram o disposto na PNMU.2
Apesar de a efetividade dessa sanção ser questionável, ela
já demonstra um avanço em relação à disposição anterior, cuja ineficácia
parcial pode ser atribuída à inexistência, à época, de qualquer sanção para
aqueles que a descumprissem.
O segundo fator que faz que a existência de diretrizes
federais para a mobilidade seja importante diz respeito ao ciclo de
investimentos em mobilidade urbana vivido no país.
Historicamente, a alocação de recursos federais em
mobilidade não é constante, grandiosa ou mesmo bem distribuída – entre 2006 e
2010, somente 4% dos municípios brasileiros receberam verbas federais para o
setor, de acordo com levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e divulgado em janeiro/2012.
Dentre os recursos distribuídos, grande parte foi repassada,
em geral, para as cidades com mais de um milhão de habitantes (no período
citado acima, esse valor correspondeu a 94% do total), com o repasse de
quantias quase sempre irrisórias às cidades que possuem menos de 500 mil
habitantes.
Essa realidade, no entanto, tem se alterado pouco a pouco
nos últimos anos. Desde meados de 2009, o volume de recursos – sejam do
orçamento federal, estadual/ municipal ou via financiamento – que têm sido
disponibilizados para a mobilidade cresceu consideravelmente, chegando a mais
de R$ 90 bilhões. Mais da metade desses recursos é proveniente do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) da Copa (R$ 12 bilhões), do PAC Mobilidade
Grandes Cidades (R$ 32,6 bilhões) e do PAC Mobilidade Médias Cidades (R$ 8
bilhões).
Aos R$ 90 bilhões somam-se, ainda, os R$ 50 bilhões
anunciados recentemente pela presidenta da República, em junho de 2013.
O Brasil passa, assim, por um dos maiores ciclos de
investimento de mobilidade da história, sendo essencial que a alocação desses
recursos seja orientada por diretrizes rígidas que priorizem outras formas de
deslocamento que não o carro, refletidas, localmente, em um planejamento que
trace um inovador perfil de mobilidade para a cidade. Caso contrário, veremos
os recursos serem investidos na manutenção de um status quo que privilegia o carro e acaba por sujeitar mais de
60% da população dos centros urbanos a um sistema de transporte coletivo
colapsado.
Superadas essas questões, não se pode negar, no entanto, que
a PNMU tem fragilidades estruturais capazes de comprometer a sua efetividade e
que merecem atenção.
Uma delas é a falta de previsão sobre qual a forma jurídica
que o Plano de Mobilidade Urbana deve ter uma vez elaborado. Na prática, ele
pode adotar desde a forma de lei ordinária (na melhor das hipóteses), até mesmo
a de uma simples apresentação de slides ou de rápida visualização,3 que não guarda nenhuma
força vinculante capaz de garantir aos cidadãos que o plano será observado pelo
poder público. Essa situação é especialmente preocupante se considerarmos o
hábito dos governantes brasileiros de abandonar os planos feitos ou iniciados
na gestão anterior.
Outra fragilidade é a ausência de explicitação sobre como se
dará o processo de avaliação dos Planos que serão apresentados em 2015,
processo sobre o qual, inclusive, muito pouco tem se falado até o momento. Essa
avaliação é imprescindível para garantir que as disposições da PNMU resultem em
um instrumento de planejamento com metas de curto, médio e longo prazos para a
mobilidade. Essas metas devem atendar às especificidades de cada cidade,
apontadas não só pelos estudos que deverão embasá-lo, mas também pela ampla
participação e consulta popular.
Ou seja, sem um rigoroso processo de avaliação, veremos a
história se repetir e, tal qual ocorreu com os Planos Diretores, teremos
documentos pré-formatados, que podem até ser implantados, mas que não
necessariamente trazem em si determinações capazes de transformar a mobilidade
e a qualidade de vida dos cidadãos.
Por fim, faltou à Lei em análise uma maior rigidez no
momento de estabelecer o papel do governo federal em todo esse processo. Apesar
de ser inegável que o regulamento da mobilidade é de competência de cada
município, a ausência de uma cultura de planejamento no país levou à crítica
situação de escassez de mão de obra. Cabe ao governo federal, nesse ponto,
promover essa capacitação e destinar uma fatia do enorme bolo de recursos que
hoje estão disponibilizados à mobilidade para a elaboração e capacitação dos
profissionais que realizarão a complexa tarefa de reunir, em um documento, os
anseios da população para a mobilidade da cidade. Sem essa capacitação,
corremos o risco de não conseguirmos entregar nem o PMU, nem os projetos das
obras a serem realizadas, essenciais para que o montante hoje disponibilizado
para a mobilidade não seja alocado em outro setor pela simples falta de propostas
para sua destinação.4
Percebe-se, assim, que, apesar de importante, o sucesso da
Política Nacional dependerá de outras iniciativas do governo federal e do
próprio Ministério das Cidades, que perpassam a necessária regulamentação da
Lei n.12.587/12.
Num país em que se tem, nas palavras de Ermínia Maricato,
“obra sem plano e plano sem obra”, seria ingenuidade acreditar que a elaboração
de um plano per se seja capaz
de mudar a realidade catastrófica da mobilidade brasileira. De fato, não o é.
Mas o cenário composto pela disponibilização de recursos e a existência de
diretrizes rígidas voltadas à melhoria da mobilidade gera uma perspectiva
promissora que não pode ser desperdiçada: a de que, pela primeira vez, os
municípios e gestores têm a obrigação de discutir com a população qual cidade
querem ter no futuro.
É preciso reverter a lógica das cidades
A construção de uma cidade diferente da que temos hoje, mais
inclusiva e socialmente justa, perpassa necessariamente a adoção de duas
medidas complementares: a melhoria do transporte público coletivo e a revisão
dos benefícios concedidos, de forma direta e indireta, ao usuário do transporte
individual motorizado, seja durante a produção, comercialização ou uso do
carro.
A relação entre os subsídios e incentivos dados ao
transporte individual e ao coletivo é da ordem de oito para um, ou seja, para
cada R$ 8,00 concedidos ao transporte individual, R$ 1,00 é direcionado ao
transporte coletivo (Vasconcellos, 2012b). Essa tendência do governo parece
ignorar que, nos grandes centros urbanos, somente 35% das viagens urbanas
motorizadas são realizadas por esse meio, contra 64% realizadas por ônibus e metrô
(Ipea, 2011, p.17).
Apesar disso, estima-se que 80% do leito carroçável seja
ocupado pelos carros. Não é difícil concluir, assim, que os congestionamentos
existem porque nossas ruas têm uma capacidade limitada de acomodar veículos e,
infelizmente, o sistema atual permite que uma menor parte da população ocupe a
maior parte da estrutura viária existente.5
No tocante aos subsídios provenientes de incentivos
tributários, eles somam, anualmente, montante que varia entre R$ 8,5 e R$ 14
bilhões. Esse valor corresponde à renúncia fiscal operada pelo governo federal
quando decidiu reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para
aquisição de veículos de baixa cilindrada e a Contribuição de Intervenção no
Domínio Econômico (Cide-Combustíveis) – reduzida a partir de 2008 até ter sua
alíquota zerada em junho de 2012.
No caso da Cide, tributo que incide sobre álcool, petróleo,
gás natural e seus derivados e que tinha parte de sua verba destinada a
investimentos em infraestrutura de transporte, a renúncia é ainda mais grave.
Isso porque representa não só um incentivo ao uso do carro – vez que a redução
da alíquota foi usada como manobra para evitar a alta do preço da gasolina, o
que oneraria mais os usuários frequentes do transporte individual -, mas também
o fim de uma fonte constante de recursos ao setor de transportes.
Além dos incentivos fiscais, os usuários do transporte
individual recebem um benefício ainda mais importante ao lhes ser
disponibilizado, a um custo extremamente baixo (o do Imposto sobre a
propriedade de veículos automotores (IPVA)), o uso de um dos bens mais
essenciais da cidade: as ruas.
Se considerarmos que o valor médio do IPVA no Brasil é de R$
850,00 (ou R$ 2,3 por dia), cada motorista paga somente R$ 1,15 para circular e
utilizar livremente as ruas da cidade, pois apenas metade da arrecadação é
destinada ao município. Percebe-se, facilmente, que esse valor é muito inferior
ao gasto por aqueles que dependem do transporte coletivo para realizar seus
deslocamentos (Vasconcellos, 2012b).
As vias possuem a função essencial de abrigar grande parte
dos deslocamentos, permitindo às pessoas o acesso aos serviços indispensáveis
que a cidade guarda.
O espaço que hoje se destina ao estacionamento, gratuito ou
não (zona azul), de carros em áreas públicas poderia ser mais bem utilizado se
convertido para a instalação de espaços de convivência (mais conhecidos como parklets), ciclovias, ciclofaixas ou
mesmo para o alargamento das insuficientes calçadas brasileiras.6
Mesmo que pudéssemos imaginar que a cobrança feita para
estacionamento em via pública fosse majorada (no caso da zona azul) ou
instituída (nas regiões em que nem cobrança há), ainda assim ela não
compensaria os prejuízos que a ocupação do espaço público pelo carro gera para
a sociedade em geral.
Se, por exemplo, a cidade de São Paulo instituísse cobrança
de R$ 8,00/dia nas vias onde atualmente não existe cobrança alguma – menos de
um quarto dos R$ 35,00 que, em média, são cobrados pelas redes privadas de
estacionamento na capital -, teríamos uma verba anual de mais de R$ 2 bilhões,7 apenas 5% do valor perdido,
em produção e consumo, pela cidade nos congestionamentos (R$ 40 bilhões), sem
se considerar, ainda, todos os outros custos já elencados acima.
Sob esse viés, não faz sentido permitir que os usuários do
carro estacionem livremente nas vias da cidade, tornando estático um espaço que
poderia ser usado para a melhoria da qualidade de vida da população.
E, caso se pergunte para onde iriam os carros, devemos nos
valer do que disse o ex-prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, quando colocado
diante da mesma questão: “o primeiro artigo de todas as constituições
democráticas, inclusive a brasileira, diz que todos são iguais perante a lei.
Se isso é verdade, um ônibus com 100 passageiros tem direito a 100 vezes mais
espaço nas ruas que um carro com uma pessoa”.8
A eliminação dos estacionamentos, sobretudo na área central,
é só uma das possíveis mudanças que podem ser realizadas pelos gestores. Outras
perpassam a retomada da cobrança da Cide, a instituição da taxa de
congestionamento e o estabelecimento de áreas livres da circulação de carros.
Essas medidas, em conjunto ou separadamente, são essenciais para se
internalizar os custos e as externalidades negativas (abordadas no início deste
artigo) geradas pelo uso excessivo do automóvel e retardar sua expansão
ilimitada sobre o tecido urbano.
Assim, está claro que é preciso coragem para alterar o atual
estado das coisas nas grandes e médias cidades do mundo. Como foi dito no livro
infanto-juvenil Harry Potter,
“chegou a hora de escolhermos entre o que é certo e o que é fácil” (Rowling,
2003). Só isso dará conta da dimensão de ruptura que precisa ser feita com a
sociedade industrial e o mundo do automóvel que nos governa desde o começo do
século XX.
Uma cidade para todos
Como em toda mudança profunda de paradigma, a implantação de
medidas que restrinjam ou desestimulem, direta ou indiretamente, o uso do carro
terá que vencer certa resistência por parte de alguns cidadãos. Sobretudo
porque a melhoria geral do transporte coletivo – que facilitará a restrição ao
carro – não virá por completo no curto prazo.
Essas medidas, no entanto, são tão necessárias quanto a
realização de uma verdadeira revolução no modo como as políticas públicas são
pensadas e implementadas no Brasil.
Não faz sentido que a elaboração de políticas para melhorar
a mobilidades nas cidades seja pensada apenas no âmbito do Ministério das
Cidades, enquanto os Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio,
Transportes e Minas e Energia desenvolvem linhas de ação que, na maioria das
vezes, contribuem para agravar o problema. Isso vale para as mencionadas
políticas de desoneração tributária que, ao reduzirem o preço do carro, como
afirma Ricardo Abramovay (2011), esvaziam o pátio das montadoras, mas
contribuem para aumentar os índices dos congestionamentos.
Sem que se mude a forma como se dão os planejamentos e
planos, feitos de portas fechadas e de forma isolada, sem considerar as outras
áreas que influenciam a questão (como é o caso do uso do solo para a
mobilidade), continuaremos a gastar tempo e dinheiro com iniciativas que já
nascem fadadas ao fracasso ou à irrelevância.
Não existem soluções mágicas para problemas complexos. Mas
hoje, diferente do vivido há cem anos com o problema decorrente do uso do
cavalo como meio de transporte, não dependemos mais de uma invenção tecnológica
para sair dos congestionamentos. As soluções são conhecidas e variadas, algumas
mais simples que outras, e envolvem a realização de um planejamento que englobe
e considere todos os atores da mobilidade e priorize os transportes não
motorizados e coletivos, feito de forma participativa e capaz de transformar
efetivamente a forma como as pessoas se deslocam pela cidade.
Se não nos falta tecnologia, certo é que falta aos gestores
brasileiros força política para entender que, de fato, devolver à cidade o seu
direito de circulação e aos cidadãos o seu direito à cidade, sequestrado que
foi pelo uso do automóvel, pode sim trazer conflitos e desgastes políticos. No
entanto, o impacto da construção de uma cidade mais justa será, inegavelmente,
positivo para todos. É essa percepção que precisa ser construída e trabalhada
por todos nós.
Notas
1 As emissões dos gases de efeito
estufa aumentaram 21,5% entre 2005 e 2010 no setor de energia no Brasil: a
fatia passou de 16% das emissões totais do país para 32%. Foi o setor que mais
cresceu no período e o que tende a continuar aumentando, dados os imensos
aportes do governo federal direcionados para viabilizar a exploração de
petróleo, em especial do pré-sal, que totalizarão aproximadamente R$ 740
bilhões até 2020. O crescimento das emissões é agravado, ainda, pelo aumento do
consumo da gasolina em detrimento ao consumo do álcool. Apenas para que se
tenha uma ideia, nos anos 2010 e 2011 houve uma queda de 35%, ou quase seis
bilhões de litros, nas vendas de etanol. De acordo com o estado de S. Paulo, “a expansão dos biocombustíveis seria
responsável por uma redução de 79 a 89 milhões de toneladas de gás carbônico
lançadas na atmosfera até 2020, numa contribuição de 9 a 8% da meta total de
corte das emissões a que o Governo se comprometeu em 2009. [...] Além disso,
documento publicado pelo Ministério do Meio Ambiente, no ano passado, estima
que a emissão de gás carbônico por veículos cresceria, até 2020, a uma média de
4,7% ao ano, por conta do aumento da frota de veículos no País” (o estado de S. Paulo, p.A12,
5.3.2012, Marta Salomon e Iuri Dantas).
2 Existe alguma controvérsia entre
os especialistas com relação a esse ponto. Há quem diga que, não entregue o
plano em abril/2015, não há possibilidade de o município vir a elaborá-lo,
voltando a se tornar elegível para recebimento das verbas federais. Com
respeito, discordamos dessa interpretação, uma vez que o §4º do artigo 24 da
Lei n.12.587/12 expressamente diz que: “Os Municípios que não tenham elaborado
o Plano de Mobilidade Urbana na data de promulgação desta Lei terão o prazo
máximo de 3 (três) anos de sua vigência para elaborá-lo. Findo o prazo, ficam
impedidos de receber recursos orçamentários federais destinados à mobilidade
urbana até que atendam à exigência
desta Lei” (grifo nosso).
3 Aqui se destaca o caso da cidade
de Belo Horizonte, cujo Plano de Mobilidade (PlanMob BH) somente em
setembro/2013 ganhou força de lei (Decreto n.15.317/13), não obstante existir
desde 2010. A promulgação do Decreto é positiva, mas inegável que, por ser um
ato do Executivo e que não perpassa a Câmara dos Vereadores, não há de ser a
melhor forma jurídica a ser adotada para um instrumento que tem como seu pilar
a participação popular e o controle social.
4 Nesse sentido, de toda a verba
que se pretende investir em mobilidade (R$ 140 bilhões, conforme mostrado
anteriormente), somente 10% dos recursos já foram alocados em empreendimentos.
O percentual significativamente baixo se dá exatamente pela falta de projetos
apresentados, conforme ressalta matéria do jornal Valor econômico, publicada no dia 18.10.2013, caderno A6, de
autoria de Daniel Rittner e Lucas Marchesini.
5 Essa questão fica ainda mais
clara quando se tem em mente que, considerando-se as médias de ocupação diária,
o espaço ocupado pelo passageiro do carro (40 m²) é 11 vezes superior ao
ocupado pelo passageiro do ônibus (3,6 m²). Se for considerada a lotação máxima
do ônibus (75 passageiros), a relação vai de 11 para 40 vezes maior. Esse
cálculo é feito tendo-se por base que um carro médio possui cinco metros de
comprimento e, se trafegar a 40 km/h, terá uma sombra de 15 metros.
Considerando-se que a largura da faixa é de 3 m, o carro ocupa cerca de 60 m²
da via.
6 Sobre esse ponto, a edição de
2012 da pesquisa “DNA Paulistano”, realizada pelo Datafolha, surpreendeu ao
trazer como resultado que a menção a passeios e asfalto esburacados superou
tópicos tradicionais, como segurança, saúde e trânsito. Mais especificamente, a
má conservação de ruas e calçadas, que vem ganhando cada vez mais atenção na
cena da mobilidade, foi o problema mais citado pelos paulistanos (Editorial
Prioridade Pedestre – Folha de S.Paulo,
2.12.2012, p.A2).
7 Cálculo feito tendo por base
estimativa de que na Região Metropolitana de São Paulo, 40% dos motoristas
precisam estacionar o carro fora de casa, dos quais 15% (1,2 milhão de
veículos) conseguem fazê-lo em via pública, sem pagar (Vasconcellos, 2012a,
p.119). (ecodebate)
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