domingo, 27 de abril de 2014

Dos ultraprocessados aos alimentos

Dos ultraprocessados aos alimentos: resgatando a boa nutrição?
“Há hoje uma pandemia, em que metade da população brasileira adulta tem excesso de peso e quase 15% é obesa”, alerta a nutricionista.
“Devemos fazer do alimento a base da nossa alimentação”. Esta será a principal recomendação do novo Guia Alimentar para a População Brasileira, ainda em consulta pública, a ser lançado no próximo mês de agosto, informa Signorá Konrad  à IHU On-Line. Segundo a nutricionista, apesar de a frase parecer “redundante”, ela propõe justamente uma distinção entre o que são alimentos e o que são produtos ultraprocessados, tais como biscoitos, barras de cerais, sorvete, enlatados e os demais produtos industrializados, já que “durante muito tempo se tratou os produtos ultraprocessados como alimentos”.
De acordo com a pesquisadora, há mais de duas décadas a FAO e a ONU recomendam o consumo de alimentos, dando destaque para os in natura. Nesse processo, salienta, “temos de considerar o alimento e não somente valorizar os nutrientes, porque isso leva ao entendimento do consumidor de que se ele consumir qualquer produto que tenha uma quantidade ‘x’ de carboidratos, lipídios, minerais, fibras, ele estará bem alimentado. E isso não é verdade, porque a natureza coloca nos alimentos in natura e nos minimamente processados um equilíbrio de nutrientes necessário para o organismo metabolizar”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Signorá Konrad esclarece que o Guia Alimentar para a Popular Brasileira está sendo reformulado radicalmente, pois “é calcado nos nutrientes, e não nos alimentos. Então, este novo Guia Alimentar vem com uma conotação qualitativa, e não quantitativa. Essa é a grande tônica dele, no sentido de mostrar que saúde é mais do que a ausência de doenças — todos sabemos disso —, mas que a alimentação é mais do que a ingestão de nutriente”. E acrescenta: “Tiramos o enfoque de que temos de consumir proteínas, carboidratos, lipídios, vitaminas, minerais e fibras, ou seja, o enfoque químico que data de 1800. Hoje, nós temos um olhar do alimento como uma matéria que é composta de substâncias químicas que estão nos nutrientes, mas que tem muito mais do que carboidratos, proteínas, lipídios, protídios, carboidratos não digeríveis, fibras alimentares, vitaminas, minerais, fitoquímicos, mas outras substâncias que ainda são isoladas pela química analítica”.
Signorá Konrad esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU abordando o tema Dos Ultraprocessados aos Alimentos: resgatando a boa nutrição? Ainda sobre o tema da alimentação, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu o XV Simpósio Internacional IHU “Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”, de 05 a 08/05/14.
Signorá Konrad é graduada em Nutrição pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Nutrição em Saúde Pública pela Unisinos, mestre e doutora em Ciências Biológicas (Fisiologia) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente leciona na Unisinos.
IHU On-Line – O que são alimentos e produtos ultraprocessados? Em que consiste a distinção entre ambos?
Signorá Konrad - Essa distinção está amparada pelo novo Guia Alimentar Brasileiro, que será lançado pelo Ministério da Saúde em agosto de 2014, e que está em consulta pública até 07 de maio. Nele se aborda a diferenciação entre o que é um alimento e o que é um produto, em virtude da grande pandemia de obesidade, hipertensão e doenças crônicas não transmissíveis.
Assim, os alimentos são divididos em alimentos in natura, aqueles de origem animal ou vegetal, e que não sofreram nenhuma alteração quando retirados da natureza. Está nesse grupo a carne, o leite, as frutas. Existem também os alimentos minimamente processados, os quais passam por um processo de limpeza ou remoções de partes indesejadas que não são consumidas, ou passam ainda por algum processo de moagem, pasteurização, refrigeração.
Os produtos, por sua vez, são aqueles processados, ou seja, prontos para o consumo, produzidos pela indústria e nos quais são adicionados açúcar, para que tenham uma durabilidade maior na prateleira e para que sejam mais palatáveis e atraentes ao consumidor. Normalmente são os alimentos em conserva ou frutas que recebam adição de açúcar, em forma de compotas, carnes defumadas, carnes secas, etc. Existem também os produtos ultraprocessados, que somente conseguem ser produzidos pela indústria e são derivados de alimentos, sim, mas contêm somente resquícios dos alimentos originais. Entre eles, estão a salsicha, o biscoito, as geleias, os sorvetes, os molhos prontos, os temperos, os cereais matinais, o macarrão instantâneo, os salgadinhos, os refrigerantes, os néctares, os nuggets, as barras de cereais.
Dentro desse contexto, a primeira recomendação é que devemos fazer do alimento a base da nossa alimentação. Parece uma coisa redundante, que todo mundo sabe, porque durante muito tempo se considerou os produtos ultraprocessados como alimentos. Mas na verdade, dentro do novo contexto — que não é tão novo, porque existe um documento da FAO e da ONU de 1998, que chama a atenção para voltarmos a consumir alimentos — temos de considerar o alimento e não somente valorizar os nutrientes, porque isso leva ao entendimento do consumidor de que se ele consumir qualquer produto que tenha uma quantidade “x” de carboidratos, lipídios, minerais, fibras, ele estará bem alimentado. E isso não é verdade, porque a natureza coloca nos alimentos in natura e nos minimamente processados um equilíbrio de nutrientes necessário para o organismo metabolizar. Quando a indústria mexe nesse alimento, ela altera o próprio aproveitamento pelo organismo. Em vista disso, há hoje essa verdadeira pandemia, em que metade da população brasileira adulta tem excesso de peso e quase 15% está obesa.
IHU On-Line – Há uma pandemia global de obesidade? Que relações estabelece entre o consumo de produtos ultraprocessados e a obesidade?
Signorá Konrad - Sim, porque nos alimentos ultraprocessados há uma quantidade energética muito grande. Desse modo, se consome, em menor quantidade, um montante de quilocalorias muito maior, destituído dos minerais, das vitaminas, das fibras, que estão presentes naturalmente nos alimentos. Então, quando ingerimos o leite condensado, que tem cerca de 51% de adição de açúcar, estamos ingerindo um alimento de altíssima densidade orgânica, que leva a um desequilíbrio orgânico, em que faltam vitaminas e minerais para atuarem na metabolização até dos excessos. Além de não ingerirmos vitaminas e minerais em quantidades adequadas, ainda desequilibramos todo o metabolismo, porque com uma alimentação de alta densidade energética, necessitamos de mais vitaminas e minerais.
A Organização Mundial da Saúde já fala que há uma pandemia, porque estamos diante de um quadro de uma transição epidemiológica, em que saímos de quadros maiores de deficiências nutricionais, doenças carenciais e infecciosas, e estamos diante de um quadro de doenças crônicas não transmissíveis, sendo as principais responsáveis pela morbidade e mortalidade no mundo.
IHU On-Line – Qual é o impacto do consumo de produtos ultraprocessados sobre a saúde? Nesse sentido, quais são as doenças causadas por conta do consumo de produtos ultraprocessados? Ainda sobre esse assunto, podes comentar em que consistiu sua pesquisa referente às alterações metabólicas na obesidade visceral de ratos?
Signorá Konrad - O impacto consiste na transferência das taxas de morbidade e mortalidade de doenças infecciosas para as doenças crônicas e não transmissíveis, tais como a obesidade, o câncer, a hipertensão, o diabetes. Essas são as principais enfermidades decorrentes dos hábitos alimentares da sociedade moderna. Ao lado disso, há outros fatores como a sedentarização, o tabagismo, o estresse excessivo, mas a alimentação está sendo considerada o fator ambiental determinante da causa dessas doenças. Evidentemente, ainda existem os fatores biológicos e genéticos.
Quanto à minha pesquisa, trabalhei com animais de laboratórios, verificando suas alterações metabólicas. Praticamente, nós caracterizamos a síndrome metabólica, que agrega todas essas alterações: eles se tornaram obesos, com obesidade visceral e abdominal, tiveram alterações nos níveis de insulina, glicose, no perfil lipídico, como triglicerídeos elevados, bom colesterol baixo, mau colesterol elevado. Além disso, medimos quais foram as alterações termodinâmicas, ou seja, o aumento da modulação do sistema simpático sobre o funcionamento cardíaco, as alterações na variabilidade da frequência cardíaca, pois os animais tiveram variações nas respostas da frequência cardíaca — as quais são esperadas dentro da sua normalidade e que, no caso deles, foi alterada, ou seja, não respondiam adequadamente às necessidades desses animais —, e medimos também a modulação parassimpática, ou seja, em termos de regulação da pressão. Todas essas variáveis, associadas ao excesso de peso, conduziram a esse quadro de síndrome metabólica, que também acontece em humanos.
IHU On-Line – Alguns nutricionistas sugerem dietas à base de alimentos funcionais. O que são esses alimentos e que função eles desempenham no organismo humano no sentido de promover a saúde?
Signorá Konrad - Os alimentos funcionais — esse conceito ainda está em discussão — são alimentos que têm um ou mais elementos e substâncias que desempenham um papel importante no organismo. A indústria, mais uma vez, está se apoderando de alimentos termogênicos, funcionais, nutracêuticos e levando o consumidor a entender que alimentos funcionais são somente aqueles produzidos pela indústria. Na verdade, os nutricionistas querem desmistificar essa ideia. Muitos dos alimentos produzidos pela indústria são relevantes, mas queremos deixar claro que praticamente todos os alimentos in natura ou minimamente processados podem ter um papel no nosso organismo. Esses alimentos têm em si uma função relevante dentro da sua funcionalidade. Então, não há a necessidade de se adquirir um produto que tenha uma marca para que ele realmente seja funcional. Por exemplo, a cebolinha verde — juntamente com o alho e o brócolis — tem um papel antioxidante importante e é um dos alimentos mais importantes de proteção orgânica contra a ação dos radicais livres.
IHU On-Line – Como a senhora analisa o slow food, em contrapartida ao fast-food? Percebe, em alguma medida, posições extremas, quando se trata de alimentação e saúde, entre aqueles que ignoram completamente a alimentação saudável e os que organizam sua vida em torno de uma alimentação saudável? Isso tem a ver com esse marketing da industrial e do consumo?
Signorá Konrad - A indústria tem o seu papel, mas ela precisa se ajustar às necessidades e à própria ciência, ou seja, às evidências que temos de que o excesso de açúcar faz mal, que o excesso de sódio faz mal, que o excesso de ácidos graxos trans faz mal. Esse tipo de substância não deveria estar contido nos produtos que são oferecidos à população, principalmente às crianças. A publicidade leva a criança a acreditar que tomar um néctar é melhor do que comer uma fruta, quando, na verdade, não é. Dentro disso, a indústria pode se adaptar e os engenheiros de alimentos entendem e querem isso. Só que ainda existe uma grande parcela da população que adere à praticidade ou que, por não conhecer os alimentos de verdade, não os busca. Claro que existem os que radicalizaram e que não compram produtos industriais. Mas existem pessoas em todos os níveis, desde os que não conseguem preparar seus alimentos, mas que gostariam.
Então, vejo que há um amplo espaço, inclusive nesse Simpósio que vai acontecer, para se debater exatamente essa questão: aproximar a indústria, o consumidor e todos os profissionais técnicos de uma equipe multidisciplinar ou transdisciplinar para que possamos realmente tornar a população mais saudável.
IHU On-Line – Como reverter essa lógica de consumir produtos ultraprocessados para voltar a consumir alimentos?
Signorá Konrad - Temos que conhecer os alimentos regionais — dentro do movimento slow food encontramos os elementos para isso —, conhecer as preparações, resgatar e trocar receitas. Tudo isso é proposto pelo Guia Alimentar, que traz justamente uma conotação “de volta” àquilo que é saudável, não dentro de um espírito radical de não comer mais nada industrializado.
Há uma abertura para um diálogo entre indústria, consumidores e profissionais. É um momento muito rico e temos de aproveitar esses espaços, essas instâncias, para justamente chegar a um denominador comum, em que todos tenhamos êxito naquilo que buscamos. Nós todos buscamos a saúde e, portanto, não podemos colocar o lucro acima de tudo. O que faz uma empresa produzir e vender um produto que é prejudicial à saúde das pessoas? A busca pelo lucro. A partir do momento em que tivermos essa conotação de que a saúde está em primeiro lugar, talvez mais pessoas passem a se dedicar à produção de alimentos in natura. Quem sabe vamos voltar a cultivar uma horta, um pomar. Há 40, 50 anos, as famílias compravam somente sal. Eu mesma vivi essa realidade. Nós tínhamos toda a nossa necessidade diária de alimento, tanto vegetal quanto animal, disponíveis na propriedade, e nem eram propriedades grandes. Então, esses espaços, mesmo pequenos, eram espaços onde se praticava a cultura de alimento, a criação de pequenos animais.
Aqueles que ainda são privilegiados devem retomar esses espaços para que se produzam mais alimentos, porque ainda existem mais de 800 milhões de pessoas no mundo passando fome. Então, nós não podemos olhar só para o quadro da obesidade. A má alimentação ainda peca por carência e por excessos. Eu vejo muito nesse resgate da produção do alimento, no preparo do alimento, no convívio familiar, uma das chamadas do Guia Alimentar: “coma em companhia”, ou seja, não faça refeições sozinho, porque em companhia você vai se alimentar melhor.
IHU On-Line – Em que consiste o Guia Alimentar para a População Brasileira proposto pelo Ministério da Saúde? Como está o processo de constituição do Guia, com consulta pública?
Signorá Konrad - Essas discussões foram inicialmente realizadas a partir de um núcleo de saúde pública da USP, com a coordenação do Prof. Dr. Carlos Augusto Monteiro, em que um grupo multidisciplinar, juntamente com o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde, realizaram todas as preliminares para promover uma nova versão do Guia Alimentar — aliás, não estamos chamando de nova versão, porque não é uma atualização e sim uma mudança completa, quase radical, de tudo aquilo que se viu e se vê no guia alimentar ainda vigente, que é calcado nos nutrientes, e não nos alimentos.
Este novo Guia Alimentar vem com uma conotação qualitativa, e não quantitativa. Essa é a grande tônica dele, no sentido de mostrar que saúde é mais do que a ausência de doenças — todos sabemos disso —, mas que a alimentação é mais do que a ingestão de nutriente.
Então, nós tiramos o enfoque de que temos de consumir proteínas, carboidratos, lipídios, vitaminas, minerais e fibras, ou seja, o enfoque químico que data de 1800. Hoje, nós temos um olhar do alimento como uma matéria que é composta de substâncias químicas que estão nos nutrientes, mas que tem muito mais do que carboidratos, proteínas, lipídios, protídeos, carboidratos não digeríveis, fibras alimentares, vitaminas, minerais, fitoquímicos, mas outras substâncias que ainda são isoladas pela química analítica.
É esse equilíbrio que se busca. Até hoje, com toda a evolução tecnológica, ainda não se conseguiu substituir o leite materno, e não se fará isso, porque nós não vamos conseguir imitar a natureza, e nem devemos ter essa pretensão. Então, o Guia Alimentar deriva de um sistema alimentar sustentável acima de tudo, ou seja, de padrões saudáveis de alimentação. E esses são possíveis a partir do momento em que tenhamos o desenvolvimento de sistemas alimentares que protegem e que respeitam o ambiente natural quando os alimentos são obtidos. Ou seja, o Brasil é campeão mundial no uso de agrotóxicos desde 2008, e isso é inconcebível, porque agrotóxico não faz parte do alimento.
Então, há uma campanha inclusive do nosso Conselho Federal de Nutricionistas e várias entidades do país para repensar esse modelo do agronegócio, que prioriza a produção em grande escala independente da qualidade do alimento. (ecodebate)

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