“O problema da fome tem a ver com a falta de democracia.
Temos alimentos suficientes no mundo, mas não há acesso a eles para todas as
pessoas”, pondera a ativista.
“O problema, hoje, quando falamos
de alimentação, não tem a ver somente com a fome, mas também com a má nutrição.
Porque vivemos num mundo de famintos, mas também de obesos. O sistema alimentar
atual não satisfaz corretamente as necessidades de comer das pessoas. É um
sistema que produz simultaneamente pessoas que passam fome e pessoas que são
obesas, fruto também de uma má alimentação. E este paradoxo de viver num mundo
de famintos e de obesos mostra como o sistema alimentar atual não satisfaz as
necessidades alimentares das pessoas. Fundamentalmente, o que o move é a lógica
do capital, do dinheiro, do benefício econômico”, afirma a ativista Esther
Vivas.
Nesta entrevista, concedida por
telefone à IHU on-Line, Esther Vivas enfatiza que o problema da fome é,
fundamentalmente, político. Segundo ela, apesar de produzirmos uma quantidade
de alimentos suficiente para alimentar uma população adicional de mais 5
bilhões de pessoas no mundo, temos hoje um bilhão de pessoas passando fome
entre os 7 bilhões de habitantes do planeta — ou seja, um a cada sete habitantes
passa fome. “Há um problema de democracia no sistema agrícola e alimentar. A
resposta à pergunta de por que há hoje fome num mundo de abundância de
alimentos, a encontramos quando analisamos quem determina as políticas
agrícolas alimentares, quem sai ganhando com este modelo. O atual sistema
agroalimentar está pensado basicamente para que umas poucas empresas ganhem
dinheiro, mesmo que para isso muitas pessoas tenham que passar fome”, frisa.
A ativista lembra que a chamada
revolução verde resultou na privatização da agricultura, já que os insumos
agrícolas (todos aqueles elementos, entre bens e serviços, necessários para a
produção de alimentos) são controlados por poucas empresas. Em consequência, a
capacidade de decidir sobre o que e de que forma plantar, que antes era
exercida pelo agricultor, agora é retida pela indústria alimentar. “Atualmente,
não sabemos o que comemos, não sabemos o que está por trás do que consumimos.
Alimentamo-nos com produtos quilométricos, que vêm do outro lado do mundo.
Perdemos a capacidade de decidir sobre aquilo que levamos à boca”, adverte,
ressaltando que essas políticas resultaram na perda da diversidade agrícola e
alimentar e em uma sociedade que contrai doenças a partir daquilo que ingere.
Esther Vivas é ativista política
e social, posicionando-se a favor da soberania alimentar e do consumo crítico.
É jornalista e mestre em Sociologia. Participou dos movimentos
altermundialistas, em várias edições do Fórum Social Mundial e nas campanhas
contra as mudanças climáticas. É autora de diversos livros, entre os quais
Resistencias globales. De Seattle a la crisis de Wall Street (Madrid: Editorial
Popular, 2009, com JM Antentas), Del campo al plato (Barcelona: Icaria
Editorial, 2009, com X. Montagut), Em pie contra la deuda externa (Barcelona:
El Viejo Topo, 2008) e Supermercados, no gracias (Barcelona: Icaria Editorial, 2007, com X.
Montagut).
IHU
On-Line – Quando falamos de fome, a que estamos nos referindo exatamente? Por
que ainda há fome no mundo?
Esther Vivas – Atualmente, vemos
que o problema da fome é um problema político. Dados do ex-relator especial das
Nações Unidas sobre temas da fome, Jean Ziegler, indicam que, no mundo,
produzem-se alimentos que poderiam dar de comer a 12 bilhões de pessoas. Somos
atualmente 7 bilhões de pessoas no mundo. Apesar desta abundância em que
vivemos, uma de cada sete pessoas passa fome. O problema é, em consequência, a
existência de fome num mundo de abundância. O problema da fome tem a ver com a
falta de democracia. Temos alimentos suficientes no mundo, mas não há acesso a
eles para todas as pessoas. Há um problema de democracia no sistema agrícola e
alimentar. A resposta à pergunta de por que há hoje fome num mundo de
abundância de alimentos a encontramos quando analisamos quem determina as
políticas agrícolas alimentares, quem sai ganhando com este modelo. O atual
sistema agroalimentar está pensado basicamente para que umas poucas empresas
ganhem dinheiro, mesmo que para isso muitas pessoas tenham que passar fome.
IHU
On-Line – A fome afeta todo o planeta ou regiões específicas?
Esther Vivas – A fome afeta hoje
todo o planeta. Ainda que, evidentemente, as situações mais severas da fome
ocorram principalmente em países do Sul e em territórios como o chifre da
África [nordeste africano] ou a América Latina — temos visto fomes periódicas
no Haiti. Mas, além de ocorrer nos países do Sul, a fome está presente também
em países ocidentais. Atualmente, no Estado espanhol, calcula-se que mais de um
milhão de pessoas passem fome. Entretanto, o problema, hoje, quando falamos de
alimentação, não tem a ver somente com a fome, mas também com a má nutrição.
Porque vivemos num mundo de famintos, mas também de obesos. O sistema alimentar
atual não satisfaz corretamente as necessidades de comer das pessoas. É um
sistema que produz simultaneamente pessoas que passam fome e pessoas que são
obesas, fruto também de uma má alimentação. E este paradoxo de viver num mundo
de famintos e de obesos mostra como o sistema alimentar atual não satisfaz as
necessidades alimentares das pessoas. Fundamentalmente, o que o move é a lógica
do capital, do dinheiro, do benefício econômico.
IHU
On-Line – O sistema capitalista gera riqueza a partir da desigualdade nas
sociedades humanas e do desequilíbrio na relação entre o homem e a natureza. A
fome é inerente ao funcionamento do capitalismo?
Esther Vivas – Fizeram-nos crer
que as pessoas compartilham os valores inerentes ao sistema capitalista. Quando
nos falam da natureza, nos dizem que na natureza o que impera é a lei da selva,
a lei da competição. Na realidade, quando olhamos a natureza, vemos que o que
impera é a lei da cooperação. Querem nos fazer crer que a pessoa e a natureza
por si mesmas têm os valores do capitalismo, os valores da competição, do
individualismo. Mas, na realidade, não é assim. Hoje, entre as diferentes
crises múltiplas que afetam o sistema atual, uma crise importante é a crise dos
valores. Entendemos que é preciso apelar para outras relações entre as pessoas,
para outras relações com a natureza, para fazer frente às relações antagônicas
impostas pelo sistema capitalista, relações antagônicas ao individualismo, à
competição, à busca do benefício acima de tudo. Temos que romper com esta
lógica do capitalismo que nos impõem e apelar para outra lógica, a lógica da
cooperação, da solidariedade, dos bens comuns. Este é um desafio que temos pela
frente.
IHU
On-Line – Entender a alimentação como um produto comercial resulta em que
consequências?
Esther Vivas – As consequências
são claramente a fome num mundo em que diariamente, nos supermercados, oferecem
toneladas de alimentos. Mas a lógica que impera é o modelo agrícola e alimentar
atual. A lógica de fazer negócio com os alimentos é a mesma que vemos em outros
âmbitos da vida cotidiana. Atualmente, vemos como se faz negócio com o direito
à saúde, o direito à educação, o direito à moradia digna. Aqueles que ostentam
as políticas atuais e aqueles que se beneficiam destes âmbitos ganham dinheiro
com a privatização da saúde, com a privatização da educação e também com a fome
no mundo. É urgente, pois, mudar este modelo de agricultura e alimentação e
colocar no centro a necessidade das pessoas, o campesinato e o respeito à
natureza.
IHU
On-Line – A partir da chamada revolução verde, a decisão sobre o que e como
cultivar foi retirada do camponês e transferida para as grandes companhias de
alimentação. Os agricultores passaram a depender destas empresas para plantar
as sementes e comercializar os alimentos. Que consequências este modelo, que
opta pelas prioridades e necessidades da indústria, e não das pessoas, traz
para os consumidores?
Esther Vivas – A revolução verde
significou a privatização da agricultura, que foi entregue — os insumos
agrícolas, as sementes — nas mãos de poucas empresas. Além disso, tirou dos
camponeses a capacidade de decidir sobre aquilo que produzem. Em relação aos
consumidores, estas políticas agroindustriais reservaram para si também o
direito de decidir sobre o que comemos. Atualmente, não sabemos o que comemos,
não sabemos o que está por trás do que consumimos. Alimentamo-nos com produtos
quilométricos, que vêm do outro lado do mundo. Perdemos a capacidade de decidir
sobre aquilo que levamos à boca. E as consequências para a população em geral
foram muito negativas. Essas políticas significaram o desaparecimento do
campesinato, a perda da diversidade agrícola e alimentar. Além do mais, é um
modelo que nos deixa doentes, deixa doentes os camponeses que trabalham a
terra, muitas vezes em decorrência do impacto do uso intensivo de agrotóxicos.
Há cada vez mais doenças vinculadas àquilo que comemos. Neste modelo de agricultura
e de alimentação, o grande beneficiário é a indústria, e não as pessoas.
IHU
On-Line – Em nossa sociedade, há basicamente duas maneiras de ter acesso aos
alimentos: pela compra ou pelo cultivo da terra. Neste sentido, como a fome e a
desnutrição estão relacionadas com a ausência da reforma agrária e da
demarcação das terras indígenas?
Esther Vivas – O acesso aos
direitos naturais — à terra, à água, às sementes — é essencial para poder
decidir o que comemos; que o campesinato tenha direito aos bens comuns é
fundamental para recuperar esta capacidade de decisão sobre aquilo que se
cultiva e aquilo que comemos. Deste ponto de vista, a reivindicação da reforma
agrária e a reivindicação das terras dos povos indígenas para que estejam nas
mãos das suas comunidades é essencial. Hoje, ao contrário, notamos como a atual
crise econômica provocou um aumento da privatização dos bens comuns, gerou uma
nova onda de monopólio e privatização de terras. Vemos como no contexto atual
de crise econômica o capitalismo se veste de verde, e a economia verde busca
fazer negócio com bens que são essenciais para a humanidade, para a vida e para
a nossa alimentação. Deste ponto de vista, a reivindicação do direito à terra é
essencial para que se alcance uma mudança de modelo.
IHU
On-Line – O aumento do sobrepeso e da obesidade na população mundial se deve à
alimentação uniforme imposta pelo modelo econômico atual?
Esther Vivas – A obesidade e o
sobrepeso, a má nutrição, é o resultado, por um lado, da pobreza. Vemos como o
sobrepeso e a obesidade afetam em geral, nas sociedades, aqueles que têm menos
recursos econômicos. Há uma construção de classe social ligada ao que comemos e
a uma má alimentação. Aqui, no Estado espanhol, por exemplo, do total de
famílias que são expulsas de suas casas no atual contexto de crise, calcula-se
que 45% (destas famílias) têm dificuldades para comprar alimentos. E há
relatórios que assinalam — aqui no Estado espanhol — que aquelas comunidades
autônomas com os índices mais elevados de desemprego são também aquelas nas
quais os índices de sobrepeso e obesidade são maiores.
Ao mesmo tempo, não é apenas um
problema de pobreza vinculado ao sobrepeso e à má nutrição. Muitas vezes há
também um problema de desinformação. Vivemos em sociedades em que não há uma
educação para aquilo que comemos, como devemos comer, como devemos nos
alimentar. Deixamos a nossa alimentação nas mãos de grandes agroindústrias, de
grandes empresas da distribuição de alimentos que, basicamente, buscam fazer
negócio com os alimentos. Aqui se difundiu um modelo de alimentação fast food
homogeneizada, que está submetido ao lucro e ao dinheiro, mas que, ao
contrário, não leva em consideração a saúde das pessoas. A desinformação sobre
o que comemos faz com que muitas pessoas comam mal, acabem comendo alimentos
que podem ter um impacto negativo sobre a sua saúde, mas que os comem porque é
o modelo alimentar que se impôs por parte destas grandes empresas.
IHU
On-Line – Neste sentido, sendo os alimentos ricos em calorias e em açúcar
oferecidos a preços mais baixos que os alimentos saudáveis, até que ponto, para
a população em geral, manter uma dieta saudável é mais uma questão econômica do
que educativa?
Esther Vivas – Em relação àquilo
que comemos, há uma questão econômica — em países da União Europeia afetados
pela crise, há pessoas que não têm dinheiro para comprar alimentos.
Evidentemente, os ingressos econômicos determinam em parte o que podemos
consumir, mas há também o elemento vinculado à informação. Felizmente, há cada
vez mais pessoas que questionam o que está por trás dos alimentos que
consumimos, o que está por trás do que comemos. E estão nascendo alternativas
ao modelo dominante de produção, distribuição e consumo. Estão emergindo
alternativas baseadas na agroecologia, na produção e consumo de alimentos
locais, num modelo de agricultura ecológica. Há também iniciativas que buscam
combater a pobreza estrutural que as pessoas sofrem.
Surge uma série de iniciativas
que buscam que as pessoas que mais sofrem a situação de crise econômica possam
alimentar-se bem, alimentar-se dignamente. Nos Estados Unidos, há territórios
chamados de desertos alimentares, porque as pessoas não têm onde comprar
alimentos frescos, locais estes em que se está começando a fazer hortas
urbanas. Presenciamos também aqui no Estado espanhol casas ocupadas por pessoas
que foram expulsas das suas residências e que estão fazendo suas hortas
urbanas. Vincular as lutas por uma vida digna, por um trabalho digno e pela boa
alimentação, creio, é um passo adiante muito importante. Alimentar-se bem não é
um privilégio de alguns poucos que economicamente se podem permitir isso. Deve
ser um direito para todos.
IHU
On-Line – Por que a alimentação saudável enfrenta tanta resistência para ser
prioritária na agenda de um projeto político coletivo?
Esther Vivas – Porque os vínculos
entre aqueles que se beneficiam deste modelo agroindustrial e aqueles que ditam
as políticas atuais são muito estreitos. Há uma dinâmica clara de portas
giratórias: aqueles que hoje estão no governo, amanhã, quando saem do governo,
passam a ocupar cargos em conselhos de assessores das principais empresas do
país, e vice-versa. Na Europa, por exemplo, em Bruxelas, existem milhares de
lobbies que pressionam a União Europeia para que aprove leis que os beneficiem.
No Estado espanhol, por exemplo,
temos um exemplo clássico do que estamos falando. A Agência Espanhola de
Segurança Alimentar, que, como diz seu nome, tem que cuidar da nossa segurança
alimentar, tem como sua atual diretora a Sra. Angela López de Sá, que, antes de
ocupar o cargo nesta agência pública, era uma das principais diretoras da
Coca-Cola. Trabalhou durante 20 anos nessa empresa. Deste ponto de vista, há um
conflito de interesses claro. Este caso não é anedótico; poderíamos encontrar
vários exemplos de como executivos de empresas privadas ocupam hoje cargos
públicos. Isso acontece no Estado espanhol, mas acontece também em muitos
outros países. Este fato explica a orientação das atuais políticas agrícolas e
alimentares a serviço das principais empresas do setor.
IHU
On-Line – O que as pessoas podem fazer para apoiar ações alternativas de
alimentação?
Esther Vivas – Podem fazer muitas
coisas. O importante é assinalar que há alternativas e que elas estão se
desenvolvendo. Em muitos países emerge o que poderíamos chamar de novo
campesinato, pessoas que voltam ao campo e que começam a trabalhá-lo de outra maneira,
apostando em uma agricultura local, uma agricultura ecológica, uma agricultura
estacional, uma agricultura camponesa; em síntese, numa lógica contrária à da
agroindústria. Cada vez mais há cidadãos que questionam aquilo que comem, que
optam por consumir de outra maneira, comprando diretamente do produtor, em
mercados de camponeses, através de grupos de cooperativas de consumo. Também as
hortas urbanas vão se multiplicando, assim como as campanhas ou iniciativas que
buscam reciclar alimentos descartados pelos supermercados e reutilizá-los, além
da organização de “comedores populares”, etc.
Tudo isso demonstra que há
alternativas. Mas, para além destas alternativas a título pessoal ou coletivo,
são imprescindíveis as mudanças políticas. Necessitamos de uma reforma agrária,
que a terra seja para quem nela trabalha e que tenha uma finalidade social e
não especulativa. Necessitamos também que se proíbam os transgênicos, que têm
um impacto muito negativo sobre o meio ambiente e sobre o consumo. O fundamental
hoje é introduzir democracia neste modelo de agricultura e alimentação,
construindo-se um sistema que esteja a serviço das pessoas e da satisfação das
suas necessidades alimentares. (ecodebate)
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