“Precisamos ter uma ideia exata do desperdício, porque
existe certo pânico quando se trata dessa questão”, adverte o engenheiro
agrônomo.
Qual é o tamanho do desperdício
de alimentos no Brasil? Não há resposta para essa pergunta, alerta Walter Belik
em entrevista concedida à IHU On-Line, pessoalmente, em ocasião da sua
participação no XV Simpósio Internacional IHU. Alimento e Nutrição no contexto
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que ocorreu na Unisinos entre os
dias 05 e 08/05/14. Belik explica que as pesquisas realizadas para identificar
qual a porcentagem dos alimentos desperdiçados no país não seguem metodologias
“compatíveis com a realidade brasileira”. “O que é o desperdício, afinal de
contas”?
Muitas pessoas que fazem pesquisa
de desperdício vão ao varejo ou à feira e perguntam para o feirante quanto ele
perdeu. Então, como ele calcula isso? Se ele vende a banana por R$ 3,00 à dúzia
e no fim da feira vende por R$ 1,50, ele calcula que perdeu 50%. Nesse caso,
ele fez uma conta em valor, ou seja, desperdício para ele é isso. No caso do
peso, é complicado também fazer uma avaliação, porque, afinal, como você pesa
as coisas? A melancia, por exemplo, tem bastante peso por causa da casca, e
consumimos muito pouco dela, embora os nutricionistas insistam para utilizarmos
a casca da melancia para diversas coisas. Nesse sentido, se você pesa o que
está jogando fora, o peso é a maior parte do componente alimentar daquele
alimento. “Então, essas estatísticas são muito enviesadas por conta disso”, assinala.
Segundo ele, é possível ter uma
evidência maior do desperdício de alimentos na fase de produção e de
transporte. Contudo, “o desperdício no consumo é baixo, porque a população
brasileira é pobre e pobre não joga fora a comida; come tudo, tenta aproveitar
tudo, até resto de alimentos para uma nova refeição”. Nesse cenário de
desperdício, acentua, o modelo físico adotado pelas CEASAs “não funciona mais”.
“As centrais de abastecimento não se atualizaram. Então, ainda se tem um
sistema de centrais de abastecimento que perderam a sua identidade e a sua
função. No passado, elas foram criadas para aproximar o produtor do consumidor,
então tinham justamente a função de atacado. À medida que as cidades foram
crescendo e os supermercados se desenvolvendo, as centrais perderam essa
função.”
Belik também chama atenção para a
discussão acerca do padrão de consumo adotado em relação aos alimentos, no qual
o “consumidor valoriza o aspecto cosmético da fruta, da verdura. (…) Se ela
está com uma manchinha, ou feia, enrugada, ou se a cenoura não tem aquele
tamanho ou formato exato, ela já não serve para o consumo. Então, como o
consumidor rejeita, o varejo acaba rejeitando, e o produtor nem colhe”. Isso
está mudando na Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos, mas, principalmente na Europa, existem
campanhas públicas para consumir alimentos que não são perfeitos, bonitos,
mostrando que a qualidade nutricional está nessa diversidade. As pessoas são
diferentes, por que os vegetais têm de ser iguais, todos exatamente iguais?” E
dispara: “O consumo é ditado pelo mercado, sim, porém o mercado se move em
função da consciência das pessoas. Por isso, tem de conscientizar as pessoas
para o consumo diferenciado”.
Walter Belik é graduado e mestre
em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da
Fundação Getúlio Vargas. Possui ainda pós-doutorado na University of London, na
Inglaterra, e no Department of Agricultural & Resource Economics da
Universidade da Califórnia, Berkeley, nos Estados Unidos. Em 2000, recebeu o
título de professor livre-docente pelo Instituto de Economia da Unicamp,
universidade onde está vinculado desde 1985. De uma trajetória de pesquisas
relacionadas à avaliação da política agrícola e agroindustrial, concentrou as
atenções nos aspectos do processamento e da distribuição de alimentos. Atua
principalmente na discussão das alternativas de políticas de segurança
alimentar, analisando o papel do abastecimento alimentar e a logística da
distribuição.
IHU
On-line- Em que medida o desperdício de alimentos, seja na produção, no
transporte ou no consumo é um dos implicadores da fome?
Walter Belik - Em primeiro lugar,
precisamos ter uma medida exata do desperdício, porque existe um certo pânico
quando se trata dessa questão, uma vez que se utilizam muitas medidas para
avaliá-la, as quais não são compatíveis com a realidade brasileira. Então, é
preciso, primeiro, definir qual base de dados está se usando para calcular o
que vem a ser o desperdício: se considera o desperdício em termos de valor, se
considera o peso, se consideram as calorias. O que é o desperdício, afinal de
contas? Muitas pessoas que fazem pesquisa de desperdício vão ao varejo ou à
feira e perguntam para o feirante quanto ele perdeu. Então, como ele calcula
isso? Se ele vende a banana por R$ 3,00 à dúzia e no fim da feira vende por R$
1,50, ele calcula que perdeu 50%. Nesse caso, ele fez uma conta em valor, ou
seja, desperdício para ele é isso. No caso do peso, é complicado também fazer
uma avaliação, porque, afinal, como você pesa as coisas? A melancia, por
exemplo, tem bastante peso por causa da casca, e consumimos muito pouco dela,
embora os nutricionistas insistam para utilizarmos a casca da melancia para
diversas coisas. Nesse sentido, se você pesa o que está jogando fora, o peso é
a maior parte do componente alimentar daquele alimento. Então, essas
estatísticas são muito enviesadas por conta disso.
A identificação do desperdício
por caloria também é complicada. Ou seja, têm alimentos que são muito mais
calóricos, porém não quer dizer que sejam bons. Então, eu estou jogando fora
bolacha recheada, mas isso não serve para nada, é uma caloria absolutamente
vazia.
Então há um alarmismo
generalizado com relação ao tamanho do desperdício. Por isso, a primeira coisa
que devemos fazer antes de responder à pergunta é avaliar qual o tamanho do
desperdício no Brasil, e nós não temos essa informação. Nós sabemos que o
desperdício, na fase de produção e transporte, é grande, mas o desperdício no
consumo é baixo, porque a população brasileira é pobre, e pobre não joga fora a
comida; come tudo, tenta aproveitar tudo, até resto de alimentos para uma nova
refeição.
Então, voltando à produção: o que
é uma perda normal e uma anormal? Por exemplo, uma mudança climática - o caso
de seca - é perda, ou seja, um evento climático que causa uma perda de
alimentos. Esse evento poderia ter sido evitado? Sim, poderia, se houvesse
irrigação, por exemplo. Então, as técnicas de produção não são adequadas ao que
se imagina. Também há muita perda em função dos preços. Se o preço caiu muito,
o agricultor não colhe determinado produto. Isso poderia ser evitado através de
uma política pública na qual o agricultor poderia ser remunerado de alguma
forma, ou o Estado poderia comprar esses alimentos e montar estoques reguladores,
etc.
Voltando, portanto, à pergunta
inicial: nós sabemos que temos uma perda, porém não sabemos de quanto é nem
onde ela está, como se fosse uma “entidade fantasma”, e também sabemos que
precisa haver políticas públicas para fazer isso aí. Essa perda, que seria
aproveitada de fato, poderia alimentar muita gente, porém, às vezes, isso não
interessa muito para o mercado.
IHU
On-line- Essa perda é muito determinada pelo mercado, pelo consumo, porque
alguns agricultores já selecionam o produto durante a colheita?
Walter Belik - Essa é uma
discussão enorme que está acontecendo, mas que ainda não chegou ao Brasil; nós
ainda vivemos certa imitação do padrão de consumo, que não tem nada a ver com a
realidade. Então, o consumidor valoriza o aspecto cosmético do produto, da
fruta, da verdura, se ela está bonita, etc. Se ela está com uma manchinha, ou
feia, enrugada, ou se a cenoura não tem aquele tamanho ou formato exato, ela já
não serve para o consumo. Então, como o consumidor rejeita, o varejo acaba rejeitando,
e o produtor nem colhe. Isso está mudando na Europa e em alguns lugares dos
Estados Unidos, mas, principalmente na Europa, existem campanhas públicas para
consumir alimentos que não são perfeitos, bonitos, mostrando que a qualidade
nutricional está nessa diversidade. As pessoas são diferentes, por que os
vegetais têm de ser iguais, todos exatamente iguais? Então, o consumo é ditado
pelo mercado, sim, porém o mercado se move em função da consciência das
pessoas. Por isso, tem de conscientizar as pessoas para o consumo diferenciado.
A questão do preço também tem
muito a ver; muitas vezes, se o preço está ruim, o produtor não colhe, mas
algumas empresas podem imaginar que se o produto for colhido e for colocado no
mercado, o preço pode cair ainda mais, porque aí vai se atender uma demanda em
situação de preço elevado. Então, tem de ter política para isso também. O
Estado está aí para manter estoques reguladores de forma que não se faça essa
oscilação tão grande dos preços. Por exemplo, veja o que aconteceu com o
tomate: no começo do ano, o preço dele disparou, ficou em torno de R$ 12,00 ao
quilo. Um mês depois já havia baixado de preço, pois o Brasil é grande,
diversificado, tem uma quebra num lugar, mas em outro já está produzindo. Mas o
que acontece? Esse preço de R$ 12,00 acabou sendo incorporado no índice de
preço dos alimentos, gerou pânico e especulação de que a inflação iria
disparar. Todos começaram a reajustar os preços em função disso, sendo que, no
momento seguinte, o tomate e outros gêneros alimentícios baixaram de preço.
Se tivesse uma política de
regulamentação dos estoques para o bem e para o mal, a situação seria outra, ou
seja, se o preço cai muito, então o governo compra, se o preço está alto, o
governo vende. Mas o Brasil não tem isso.
IHU On-line
– Como avalia as centrais de abastecimento do país? Esses são locais de grande
desperdício de alimento?
Walter Belik - As centrais de
abastecimento não se atualizaram. Ainda se tem um sistema de centrais de
abastecimento que perderam a sua identidade e a sua função. No passado, elas
foram criadas para aproximar o produtor do consumidor, então tinham justamente
a função de atacado: vinha o produtor e vendia diretamente para alguém que iria
depois colocar os alimentos no varejo ou ia consumi-los diretamente. À medida
que as cidades foram crescendo e os supermercados se desenvolvendo, as centrais
perderam essa função.
Hoje, os supermercados fazem
muito melhor essa função: eles compram muito melhor, colocam o preço muito mais
barato e concorrem diretamente e com vantagens com a feira livre e com outras
estruturas. São Paulo, por exemplo, é uma cidade de feira livre, mas, mesmo
assim, é mais caro comprar na feira do que no supermercado. Então, elas
perderam o sentido. As CEASAs teriam de repensar a sua forma de trabalhar, por
um lado, trabalhando com produtos comoditizados de uma forma virtual. Hoje é
possível ter um sistema de classificação de produtos em que as negociações e a
logística são feitas virtualmente. Isso evitaria o passeio da mercadoria.
O papel das CEASAs é cada vez
mais de organizador de mercado. Não funciona mais essa atividade num espaço
físico de compra e venda, com pessoas circulando com dinheiro para lá e para
cá, com alimento caindo no chão. Os alimentos viajam dois dias para chegar ao
lugar, aí ficam expostos fora de uma câmara frigorífica. Imagina o custo disso?
No mundo todo não está mais assim, mas no Brasil nós temos estruturas
obsoletas. Por outro lado, é preciso desenvolver a produção. Então, normalmente
as CEASAs têm interpostos regionais, que poderiam se transformar em centros de
organização da produção familiar para a venda regional. Não tem sentido a
produção de batata de uma região ter que viajar até Porto Alegre, por exemplo,
para ser vendida. A CEASA também perdeu, por exemplo, os compradores de pequeno
varejo, porque eles não vão comprar em Porto Alegre, vão acabar comprando dos
pequenos produtores da sua cidade.
IHU
On-line – Ainda há muitas pessoas passando fome no Brasil? O problema da fome
no mundo não está ligado à produção de alimento e sim ao desperdício?
Walter Belik - As estatísticas
mostram que tem aproximadamente 8% da população brasileira em situação de
subnutrição. O Brasil tem 200 milhões de pessoas, então, são 16 milhões de
pessoas passando fome. É um número grande, mas ele já foi muito maior, e caiu
bastante, porque reduzimos para mais da metade, ou seja, em 60-70%, o número de
famintos. Esse é um problema sério, mas que começa a clarear no sentido de
perceber exatamente qual a dificuldade dessas famílias em ter acesso à
alimentação. Temos alguns casos que são bastante claros, por exemplo, os
indígenas e os quilombolas são comunidades específicas que estão muito
isoladas, são pobres e não foram “encontradas” pela política pública.
Hoje, o Bolsa Família tem um
cadastro de 20 milhões de famílias, mas o Ministério estima que existem 24
milhões de famílias em situação de vulnerabilidade. O Ministério não consegue
encontrar essas pessoas; as estatísticas mostram que elas estão lá, mas você
não sabe onde. Quer dizer, o sujeito está tão desassistido, tão fora do mundo,
tão pobre, tão ignorante, que não consegue procurar uma assistente social; está
absolutamente à margem da sociedade. Então, tem muita família rural perdida aí
no Nordeste.
O problema da obesidade também é
sério. Então se estima que há mais obesos hoje no Brasil do que desnutridos.
Muitos usam isso para dizer que o problema da fome não é tão importante e que o
problema maior é a obesidade. Porém, a obesidade é uma forma também de
vulnerabilidade, muitas vezes de desnutrição
de alguns micronutrientes que a pessoa não tem. Ela é gorda, tem uma
alimentação supercalórica, mas o sujeito não foi instruído de como se
alimentar, ele come porcarias, etc.
IHU
On-line – Quais são as políticas públicas realizadas no Brasil para resolver
esse problema do desperdício?
Walter Belik - A política que
existe no Brasil - que não é bem uma política - são os bancos de alimentos.
Essa política está no topo da agenda e não é política porque ela tem pouco a
ver com o Estado, pois quem
desenvolve a política do banco de alimentos normalmente é a sociedade civil.
Então, o SESC tem uma rede excelente, o Mesa Brasil; diversas organizações, as
igrejas, conseguem recuperar uma parte dos alimentos que são desperdiçados. Mas
está faltando uma legislação, uma regulamentação do Estado para que essas
iniciativas pudessem aumentar em mil vezes.
Eu gosto de falar, pois sou
militante de banco de alimentos, e faço coleta de banco de alimentos no final
de semana no mercado municipal de São Paulo. As pessoas vão lá para comer,
beber. É lá que têm as melhores frutas, as melhores verduras. Os chefes de
cozinha vão lá se abastecer. Então, nós passamos no mercado municipal e os
donos dos boxes doam toneladas de alimentos que se perdem, alimentos que você
come em um restaurante chique de São Paulo porque o sujeito não vendeu, porque
ficou mais frio e ele vendeu menos abacaxi, por exemplo, então vai ter que se
livrar daquilo porque não tem onde colocar. Nós também coletamos junto aos
agricultores. Tem um cinturão verde em São Paulo, em Cotia, que doa alimentos
para nós. Se houvesse uma legislação, isso seria potencializado, mas as pessoas
têm medo de doar.
IHU
On-Line – Em restaurantes, inclusive, é proibido.
Walter Belik - Exato. Já que a
segurança sanitária não tem competência para fiscalizar, então é melhor
proibir. De fato, tudo bem, restos de comida, alimentos preparados, é
complicado de doar; você não vai doar sobras dos pratos das pessoas. O buffet
por quilo é visto como um bom exemplo de redução de desperdício, porque a
pessoa põe no prato apenas aquilo que ela irá comer. Mas e o buffet? A comida
que não tem saída acaba sendo descartada. Poderia perfeitamente ter um sistema
de coleta, mas no Brasil é proibido. Em outros lugares do mundo, por exemplo,
nos Estados Unidos, o pessoal é mais consciente: numa festa de casamento, com
um buffet enorme, as pessoas que têm consciência já colocam no convite da festa
que “as sobras serão doadas ao banco de alimentos ‘x’”. Eu sou filho de
imigrante e em casa não podia sobrar comida. É comum minha mãe ir a uma festa e
perguntar: “O que farão com a comida que sobrar?”. (ecodebate)
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