Crise da água em São Paulo: Quanto falta para o desastre?
O que acontecerá com as torneiras em São Paulo e o que
ensina a pior crise de água da maior metrópole do país.
Cadê a abundância?
Reservatório do
Sistema Cantareira em Bragança Paulista. A crise mostra como o país precisa
mudar a forma como lida com a água.
Verão de 2015. As
filas para pegar água se espalham por vários bairros. Famílias carregam baldes
e aguardam a chegada dos caminhões-pipa. Nos canos e nas torneiras, nem uma
gota. O rodízio no abastecimento força lugares com grandes aglomerações, como
shopping centers e faculdades, a fechar. As chuvas abundantes da estação não
vieram, as obras em andamento tardarão a ter efeito e o desperdício continuou
alto. Por isso, São Paulo e várias cidades vizinhas, que formam a maior região
metropolitana do país, entram na mais grave crise de falta d’água da história.
A cena não é um
pesadelo distante. Trata-se de um cenário pessimista, mas possível, para o que
ocorrerá a partir de novembro. Moradores de São Paulo sentem, hoje, o que já
sofreram em anos anteriores cidadãos castigados pela seca em Estados tão
distantes quanto Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco. A mistura de
falta de planejamento, administração ruim, eventos climáticos extremos e
consumo excessivo ameaça o fornecimento de água em cidades pelo Brasil todo. O
episódio ensina lições aos governos. E exige respostas para perguntas que todo
cidadão deve fazer a si mesmo e aos candidatos nas próximas eleições.
Como a crise
surgiu?
A crise em São
Paulo é, em parte, consequência da falta de água nas cabeceiras de rios que
abastecem o Sistema Cantareira. Trata-se de um conjunto de represas responsável
por abastecer 9 milhões de habitantes na Grande São Paulo. Todo esse sistema
depende das chuvas do verão. Em anos normais, nos meses secos e frios, de junho
a agosto, a precipitação é de menos de 150 milímetros. Isso é, normalmente,
compensado no primeiro trimestre, que soma cerca de 600 milímetros. Desde o ano
passado, as chuvas não vêm no volume esperado. “A maioria dos meses de 2013 já
havia registrado níveis de pluviosidade abaixo da média dos últimos 30 anos”,
diz o meteorologista Marcelo Shneider, do Instituto Nacional de Meteorologia
(Inmet). “A situação ficou pior a partir de outubro e novembro. Foi um clima
anômalo em todo o Sudeste, não apenas na Cantareira.” Nos três primeiros meses
de 2014, em vez dos esperados 600 milímetros, caíram menos de 300 milímetros.
O governo estadual
põe a culpa na falta de chuva, mas ela não explica a história sozinha. A
estiagem deste ano apenas tornou evidente quanto o sistema é frágil e quão
escassa a água é, mesmo num país tropical. O Sistema Cantareira existe desde a
década de 1970. Ele retira água das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e
Jundiaí. Em 2004, a Sabesp (empresa de abastecimento da capital e de outras
cidades) fez obras, aumentou o volume do Sistema Cantareira e renovou sua
autorização para administrá-lo. O governo estadual permitiu a retirada de
36.000 litros de água por segundo, a maior parte destinada à Grande São Paulo.
Esse volume de extração, segundo Antonio Carlos Zuffo, hidrólogo da Unicamp,
supera o recomendável para a capacidade das represas. “Quando a outorga foi
renovada, o governo subiu o volume de litros que poderia ser retirado com a
condição de que fossem feitas mais obras para aumentar a capacidade de
armazenamento das represas. E elas não ocorreram no ritmo previsto”, afirma.
A renovação da
outorga previa a revisão de estudos hidrológicos, a criação de um plano de
contingência para situações emergenciais e ações para reduzir a dependência que
São Paulo tem do Sistema Cantareira. Nem todas as ações planejadas foram
colocadas em prática. O problema chamou a atenção do Ministério Público. A
promotora Alexandra Martins acredita que o poder público não deu a devida
atenção ao caso. “Detectamos uma série de problemas no cálculo da destinação de
água a cada área. A população cresceu muito e o volume não foi ampliado nos últimos
30 anos”, diz. Questionada por ÉPOCA, a Sabesp respondeu que fez as obras
necessárias.
Lição
Não permitir que as
obras parem. Para financiá-las, muitos países definem multas para quem polui ou
consome em excesso. A Sabesp defende a isenção de impostos para empresas que
invistam na manutenção e expansão do sistema de abastecimento. Parcerias
público-privadas podem ser usadas para obras de esgoto e fornecimento de água.
Como a crise
poderia ser evitada?
São Paulo já passou
por momentos climáticos extremos antes. Em 2004, o nível do reservatório do
Sistema Cantareira ficou abaixo dos 30%. A Sabesp iniciou então um racionamento
de água por rodízio de bairros. Fez obras para acessar o que era, até aquele
momento, uma reserva de emergência. Trata-se da água que fica abaixo do ponto
de captação nos reservatórios, conhecido pelo termo “volume morto”. Nos anos
seguintes, por sorte, os reservatórios voltaram a encher.
Em 2011,
experimentamos o extremo oposto. Fortes chuvas atingiram a região. As comportas
dos reservatórios precisaram ser abertas para liberar o excesso de água. “Havia
um nível superior a 100% no sistema, algo nunca antes registrado”, diz
Francisco Lahóz, secretário executivo do consórcio PCJ (Consórcio
Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí).
Lição
Não podemos mais
desperdiçar chuvas como em 2011. As represas devem ser capazes de armazenar
mais água nos anos de abundância. Os sistemas devem prever alternâncias mais
extremas de chuvas e secas. Construtoras, fábricas e grandes edifícios têm de
adotar coleta da água da chuva.
Como enfrentamos a
escassez?
O consórcio de
águas PCJ escreveu os “25 mandamentos da estiagem”, em fevereiro. O documento
vem inspirando medidas de reação à seca. Duas cidades, Valinhos e Vinhedos, decretaram
racionamento. As regiões de Campinas e Americana adotaram multas para os
gastadores. Prefeituras têm cadastrado os caminhões-pipa. “São Paulo
ainda tem outras opções de reservatórios, caso o volume morto do Cantareira
seque. A região do PCJ não tem”, diz Lahóz.
Em São Paulo, a
Sabesp tomou quatro medidas emergenciais para evitar o racionamento: redução de
tarifa para quem reduzir em 20% o consumo; obras que trazem águas de outras
represas (do Sistema Alto Tietê e de Guarapiranga); a instalação de 17 bombas
flutuantes, que extraem água do volume morto; e uma campanha nas rádios e TVs,
para convencer a população a economizar água. A quantidade de água retirada dos
reservatórios do Sistema Cantareira caiu de 31.000 litros de água por segundo,
antes da crise, para 23.000 litros por segundo, em maio. De acordo com Ivanildo
Hespanhol, diretor do Centro Internacional de Referência em Reúso da Água, as
medidas emergenciais são boas, mas insuficientes para lidar com o problema
no longo prazo.
Lição
Crises de
abastecimento de água envolvem várias cidades. Elas ocorrerão. Os comitês de
gestão de bacias têm de funcionar de verdade. O “empréstimo” de água entre
Estados, como o solicitado por São Paulo ao Rio em abril, tem de ser
regulamentado. O Estado doador deve ser compensado.
Marcas da seca pelo
Brasil
O que acontecerá?
Os modelos de
meteorologia não conseguem mostrar, com precisão, como será o próximo verão nas
nascentes do Sistema Cantareira. O mais provável, pelos dados atuais, é que
chova algo abaixo da média. Nesse cenário, o volume de água das represas se
recupera um pouco, mas não passa dos 40%. Isso evitará a situação de emergência
no próximo verão, mas não afastará o problema para os anos seguintes. A Sabesp
precisará, portanto, manter os bônus para quem economizar água e talvez aplicar
multas a quem desperdiçar. Há também cenários otimistas. A formação de um El
Niño – um aquecimento cíclico das águas do Oceano Pacífico com efeitos no mundo
todo – poderia trazer mais chuvas para a região. Isso já aconteceu no El Niño
de 1982-1983. Mas é pequena a chance de isso se repetir. Segundo Zuffo, da
Unicamp, o Sistema Cantareira tem condições de se recuperar da seca prolongada
se o regime de chuvas normalizar nos próximos cinco a dez anos. “Se chover, e
se o consumo não for maior do que o sistema aguenta, os reservatórios conseguem
se recuperar a uma taxa de 10% a 20% ao ano”, diz. “Se não chover, o
abastecimento será comprometido. Enfrentamos um risco grande.” E mais: no ritmo
atual, em 30 anos São Paulo precisará de mais 25.000 litros de água por segundo
– praticamente um novo Sistema Cantareira.
Lição
As autoridades
podem tornar o consumo mais racional por meio de campanhas. É recomendável dar
bônus e descontos que compensem a compra de equipamentos que economizem água. A
conta d’água pode também mostrar aos perdulários que eles gastam mais que a
média das famílias da mesma área ou do mesmo tamanho. (globo)
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