Crise hídrica de São Paulo passa pelo agronegócio, desperdício e privatização de água
Para muitos, o racionamento de água em São Paulo já é uma realidade
líquida e certa. Resta saber até quando políticos ganharão tempo para
escondê-la ou se a população agirá, a ponto de, quem sabe, se repetirem as
chamadas ‘guerras da água’, já vistas em locais onde os serviços hídricos e
sanitários foram privatizados. De toda forma, o assunto não é passageiro e exige
toda uma reflexão a respeito dos atuais modelos de vida e economia.
“Em primeiro lugar, é preciso reeducar a população a reduzir o consumo.
As empresas também, pois quando se fala em redução de consumo parece que só a
população consome. Mas, no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura,
22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E quando se fala em redução de
consumo, só se fala dos 8%, mas não dos 92%”, afirmou Marzeni Pereira,
tecnólogo em saneamento da Sabesp, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Na conversa, Marzeni elenca uma série de razões históricas, desde as
locais até as mais abrangentes, que levaram São Paulo à atual crise hídrica,
cujas consequências ainda não foram quantificadas. Trata-se de mais um fracasso
do modelo de gestão privatista, de mãos dadas com um projeto desenvolvimentista
que tem gerado mudanças ambientais em todos os grandes biomas do país.
“A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil para gerir o sistema de
saneamento. Tem o melhor corpo técnico, a melhor estrutura etc. O problema
principal é justamente a administração voltada ao mercado e ao lucro. Além
disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo sucateamento. Em 2004, tinha 18 mil
trabalhadores e sua base de atuação era menor. Hoje, a empresa tem menos de 14
mil. A terceirização é um dos principais problemas, por exemplo, na perda de
água”, explicou, em relação ao contexto paulista.
Por outro lado, Marzeni não deixou de fora toda a relação com um modelo
já há décadas hegemônico. “No ano passado, em torno somente de soja, carne,
milho e café, o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de m³ de água. Significa
abastecer São Paulo por quase 100 anos. A umidade atmosférica, mantida através
dos chamados ‘rios voadores’, que vêm do Norte do Brasil e precisam da
continuidade da vegetação, foi reduzida. A atuação do agronegócio, quem mais
desmata, teve influência em SP. E teve também o desmatamento de todo o
centro-oeste do estado”, resumiu.
A entrevista completa com Marzeni Pereira, realizada nos estúdios da
webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Qual o resumo que você faz, num breve histórico,
das origens e razões da crise da água no estado de São Paulo?
Marzeni Pereira: Podemos dizer que o histórico da crise de água em São
Paulo tem bastante tempo. Em 2003, por exemplo, o sistema Cantareira chegou
próximo de zero, com menos de 5% de sua capacidade de armazenamento e todo o
sistema de saneamento quase entrou em colapso. Houve um princípio de
racionamento, com a Operação Pajé (na qual se bombardeavam nuvens e se
pulverizava sua água).
Nesse período, foi elaborado um plano para que o saneamento de São Paulo
dependesse menos do Cantareira, ao ser assinada uma outorga com vistas a
reduzir a dependência do reservatório – o que mais abastece a capital e a região
metropolitana. De lá pra cá, a ideia era reduzir perdas, aumentar o reuso e
encontrar novas formas de abastecimento, por outros mananciais. Isso não
aconteceu.
Em 2004 e 2005, houve uma recuperação da reservação de água; em 2009,
houve um pico, com quase 100% das represas cheias. Em 2009, houve um período de
enchentes, como a do Jardim Pantanal (zona leste); e em 2011, teve a enchente
de Franco da Rocha, por conta da abertura da represa Paiva Castro. Mas, de toda
forma, não houve redução da participação do sistema Cantareira. As perdas
caíram, mas não o suficiente para suprir a demanda, que cresceu. Não houve,
portanto, contrapartida suficiente na disponibilidade de água. Esse é o
principal problema.
Outro ponto é que tivemos, recentemente, em 2013 e 2014, uma estiagem
bastante forte, apesar de curta, comparando com outras regiões do Brasil, com 5
ou 10 anos de estiagem. Aqui são menos de dois anos, de modo que não era pra
estarmos na atual situação.
Neste ano, também teve outro problema: com eleições e Copa do Mundo,
havia a necessidade de o governo manter sua imagem em alta. Por isso, não se
tomaram medidas para reduzir o consumo de água a partir de janeiro e fevereiro
de 2014.
Correio da Cidadania: Qual o papel da Sabesp, com seu modelo de gestão,
nesse processo?
Marzeni Pereira: A Sabesp é a empresa mais preparada do Brasil para
gerir o sistema de saneamento. Tem o melhor corpo técnico, a melhor estrutura
etc. O problema principal é justamente a administração voltada ao mercado e ao
lucro. Outra coisa é a dependência das influências diretas do governador e dos
acionistas privados.
Além disso, a empresa, sem dúvida, vem sofrendo sucateamento e redução
da sua capacidade de trabalho. Em 2004, a Sabesp tinha 18 mil trabalhadores e
sua base de atuação era menor. Hoje, a empresa tem menos de 14 mil, uma redução
de cerca de 20% do quadro. Isso influencia, certamente.
Outra coisa é que, a partir do momento em que se reduz o número de
trabalhadores diretos, há a necessidade de terceirizar serviços. A terceirização
é um dos principais problemas, por exemplo, na perda de água. Porque o serviço
é mal feito, o cara faz num dia e no outro dia já vaza de novo… Significa que o
serviço tem de ser feito várias vezes, e aí temos mais perdas.
É uma lógica adotada nos últimos 20 anos: a empresa depender de outras
empresas privadas. Hoje, as empresas privadas têm muita influência no dia a dia
da Sabesp. Portanto, é claro que o modelo de gestão tem tudo a ver com a crise.
Correio da Cidadania: Como dimensiona a crise da água no país como um
todo, em si e relativamente a São Paulo? Em que medida a destruição dos biomas
do Cerrado e amazônico explicam a grave situação que vivemos?
Marzeni Pereira: A estiagem em São Paulo, com certeza, tem relação com o
desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Obviamente, sempre que há desmatamento
se reduz a evaporação de água pela evapotranspiração das árvores. O Cerrado
brasileiro sofreu muito com a devastação promovida pelo agronegócio.
Para se ter ideia, no ano passado, em torno somente de quatro produtos
(soja, carne, milho e café), o Brasil exportou cerca de 200 bilhões de metros
cúbicos de água. Não produziu, apenas exportou, ‘água virtual’, como se diz.
Tal número significa abastecer São Paulo por quase 100 anos, apenas com a
quantidade de água gasta por esses quatro produtos.
Outro problema é que houve redução da quantidade de água superficial. À
medida que há uma degradação, tanto pela remoção da vegetação como pela
irrigação intensiva de larga escala, reduzem-se os afluentes dos grandes rios,
como os amazônicos e o São Francisco, que já está sofrendo muito com a redução
da água.
A umidade atmosférica, mantida através dos chamados “rios voadores”, que
vêm do Norte do Brasil e precisam da continuidade da vegetação, foi reduzida. A
atuação do agronegócio, quem mais desmata no Brasil, teve influência em São
Paulo.
Mas não é só isso. Teve também o desmatamento de todo o centro-oeste do
estado de São Paulo. Praticamente toda a vegetação de tal região foi removida,
para plantios de cana, eucalipto, laranja etc. A redução dessa vegetação também
tem influência. A redução das matas ciliares dos rios que abastecem as represas
é outro fator, pois provoca o assoreamento e um secamento mais rápido.
Correio da Cidadania: O que pensa dos primeiros protestos que começam a
ser organizados, ou que ocorrem até espontaneamente, em torno à água, a exemplo
do que tem ocorrido em cidades como Itu? Acredita que possam crescer a ponto de
se tornarem massivos, e até mesmo reproduzirem as chamadas “guerras da água”
que ocorreram em vários países?
Marzeni Pereira: Itu é um caso bastante emblemático. Lá, a gestão da
água é de uma empresa privada, que vendeu água até acabar. E há o risco de a
empresa abandonar a cidade quando a água acabar de vez e começar o prejuízo.
Afinal, ela está lá atrás de lucro, não para fazer serviço filantrópico. Esse é
o grande risco de o setor privado atuar no saneamento. Temos de combatê-lo.
Quanto aos protestos, são iniciativas interessantes da população. Ela
tem de fazer parte da vida política do país, não pode ficar omissa em casa. É
importante ter pauta de reivindicações, um programa a ser apresentado no
momento. As manifestações ainda estão tímidas, mas acredito que a tendência é
de ganharem força.
Mesmo porque a previsão para 2015 é de faltar mais água. Se não chover
muito nesse verão, a coisa será pior. Portanto, há tendência de aumento de
protestos no ano que vem. Como cidadão, já estou participando, como nos dias 1
e 5. São manifestações importantes e precisam continuar.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, como acredita que será o ano de
2015 em São Paulo, especialmente no que toca a vida do cidadão médio? O
racionamento, que de fato já ocorre, vai ser intensificado?
Marzeni Pereira: Na realidade, ainda não existe racionamento. O que é
racionamento? É a definição de quanto cada pessoa, ou família, pode usar.
Seria, por exemplo, definir uma cota de 150 litros por dia. Isso é
racionamento. Existe outro modelo, o rodízio, que é quando se joga água de uma
região para outra. Num dia, um local fica sem água e outro a recebe. Portanto,
há diferença entre um e outro tipo de política.
Inclusive, penso que o racionamento tem de ser adotado, especialmente
quando a situação se acirrar. Se não, alguns terão água e outros não, como
acontece no rodízio. Quem tem caixa d’água ou um reservatório grande em casa
não fica sem água. Quem não tem, fica sem. Imagine uma pessoa que sai de casa
às 8 da manhã e volta às 10 da noite. Se não tiver caixa d’água, não toma
banho. O rodízio é injusto pra quem não tem condição de comprar caixa d´água
grande.
Em relação ao ano que vem, observamos que a recuperação do reservatório
do Cantareira, nos últimos 10 anos, tem sido, em média, de 23%. Se, por
exemplo, está em 10% em outubro, quando chegar a março deverá estar com 30% ou
40%. E essa marca não tem sido ultrapassada, com exceção de 2004 e 2008.
O problema é que neste ano estamos com 17% negativos. O volume
operacional acabou em 15 maio; de lá pra cá, está sendo usado o volume morto.
Se o reservatório recuperar 20% do volume, no final do período de chuvas não
teremos mais de 5% de volume operacional. Se não tiver chuva em abril, quando
normalmente ela é escassa, esses 5% durariam uns 30 dias, o que nos faria
voltar a usar o volume morto em maio. Há um risco de usarmos o volume morto do
Cantareira bem antes do período em que começamos a usar em 2014.
Correio da Cidadania: Finalmente, o que pensa que poderiam ser soluções
tanto a curto, dada a gravidade da situação, como a médio e longo prazos?
Marzeni Pereira: A principal solução é chover. Se chover, tudo se
resolve. Torcemos pra isso; de fato, caso contrário, a população vai sofrer. Se
não chover, temos de tomar algumas medidas (na verdade, mesmo que chova,
teremos que tomá-las).
Em primeiro lugar, é preciso reeducar a população a reduzir o consumo.
As empresas também, pois quando se fala em redução de consumo parece que só a
população consome. Mas, no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura,
22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E quando se fala em redução de consumo,
só se fala dos 8%, mas não dos 92%.
A região metropolitana de São Paulo não tem muito peso da agricultura,
mas tem da indústria. Precisa reduzir o consumo residencial e industrial.
Precisa também de uma forte redução de perdas. Precisa de uma orientação sem
meio termo para a população. Não pode ser como hoje, o governo e a Sabesp têm
de falar mais claramente à população de como a situação é grave, além de
esclarecer se precisamos fazer rodízio, racionamento ou as duas coisas juntas.
Há a necessidade de definir as atividades humanas básicas que terão
suprimento de água garantido, como hospitais, escolas, creches. Quanto à
população de baixa renda, com menos condição de comprar caixa d’água, seria
necessário o governo distribuir tais caixas, distribuir filtros de hipoclorito,
porque muita gente vai usar água de mina se precisar, o que traz risco de
contaminação. Em caso de falta de água generalizada e uso de carros-pipa, tem
que se saber como aqueles que não têm caixa poderão armazená-la.
Outro ponto é em relação ao emprego. Se de fato se concretizar a
previsão, ou seja, se ocorrer falta de água generalizada em 2015, muitas
empresas vão fechar, ao menos temporariamente, ou se mudar. Se não tiver
política de estabilidade no emprego, pode ser uma catástrofe.
Também se deve incentivar uso de água de chuva e reuso. Pouco se fala em
coletar água de chuva. Se a população fizesse isso, e reduzisse ao menos 10% do
consumo, teríamos cerca de 5 metros cúbicos por segundo de economia de água.
Isso equivale ao novo sistema que a Sabesp constrói agora, o São Lourenço, que
custará 2 bilhões de reais.
Finalmente, é necessário estatizar o saneamento – não a Sabesp, mas o
próprio saneamento. Não tem sentido um serviço tão importante quanto esse na
mão de quem quer lucro. Mas a estatização não pode ficar na mão do governo, com
empresários controlando por dentro. É preciso controle dos trabalhadores. Além
de uma comissão e investigação populares, que apurem responsabilidades. É
preciso coletar e tratar mais esgoto, usando tal água em atividades,
principalmente, industriais, pois há uma série de usos possíveis com a água de
esgoto.
Recuperar mananciais é outro ponto importante. Se isso não for feito, as
consequências futuras podem ser mais graves. O Rodoanel passou pelos mananciais,
o que mostra como não se deu importância a eles. Pessoas que moram em áreas de
mananciais precisam sair de lá, através de negociações sérias, com plano
habitacional. Com casa garantida, claro, ao invés de serem retiradas como lixo.
Há uma série de ações possíveis no médio e curto prazo. Mas têm de ser
feitas em diálogos com a população, se não os interesses pelo lucro vão falar
mais alto. (ecodebate)
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