Rogério Jordão comenta as lições que a
falta d'água de 2014 deixa para um ano novo que promete ser tão ou mais difícil
quanto.
Você enfrentou falta d’água?
Memória 2014: um aprendizado com a falta d’água
“Ficamos vinte e dois dias sem receber
água e sentimos o quanto somos dependentes dessa danada. Quando, finalmente, a
água voltou à nossa caixa d’água, minha primeira surpresa foi o enorme regozijo
que senti ao lavar o rosto usando as duas mãos”. É o que conta, em
entrevista ao blog por e-mail, o escritor e palhaço Nando Bolognesi. Nando, que
nos palcos se transforma no palhaço Comendador Nelson, mora com a mulher e o
filho em Itu, a uma hora de São Paulo, um dos lugares mais afetados pela
estiagem no ano que passou. Foram meses de rodízio que mudaram o cotidiano da
cidade de 150 mil habitantes – e pode ser um prelúdio do que virá por aí nas
nossas metrópoles.
Há mais de vinte anos diagnosticado
com Esclerose Múltipla, uma doença neurológica e inflamatória autoimune, para a
qual não existe (ainda) cura, Nando sabe como poucos transformar as
dificuldades da vida em aprendizado, a tragédia em comédia e vice-versa. Leva
isso aos palcos no monólogo Se Fosse Fácil Não Teria Graça,
que vem lotando salas de espetáculo em São Paulo e será retomado em janeiro no
teatro Eva Herz (Conjunto Nacional), e também na prosa: é o autor do ótimo Um
Palhaço na Boca do Vulcão, da Editora Grua. Vale a pena ver e ler o
Nando Bolognesi.
Rogério - Da última vez que
nos falamos, há mais de um mês, você me descreveu um cenário desolador em Itu.
Carros-pipa protegidos por escolta da guarda municipal, roubo de água em bicas
públicas e até suspeita de suborno em condomínios para ter prioridade no
abastecimento. Isso para não falar, é claro, da falta de água em si, já que Itu
foi uma das cidades mais atingidas pela seca. E agora, as coisas melhoraram? Vi
na TV que andou chovendo por aí, é verdade? Está tudo solucionado?
Nando Bolognesi — Em novembro
choveu, e isso foi novidade por aqui. A estiagem havia sido longa. Logo depois
das águas de novembro o serviço de abastecimento de água foi restabelecido,
contudo isso aconteceu de forma precária. Tanto é que o racionamento já voltou
em alguns lugares da cidade. Desconfio que a população, apesar do que sofreu
nesse período prolongado de desabastecimento ainda não tem consciência da
gravidade da crise. E isso se deve muito à cobertura política que a imprensa
faz do tema, ainda mais em ano eleitoral, e à falta de interlocução entre o
poder público e a sociedade.
Rogério - Como foi isso?
Nando Bolognesi — Durante a crise
não sabíamos nada sobre as perspectivas, as medidas que estavam sendo tomadas
ou o tamanho do déficit hídrico. A desinformação abundava enquanto a água
desaparecia das torneiras. Ainda cultivamos uma fantasia da abundância segundo
a qual essa crise será superada logo adiante com algumas medidas emergenciais
que já deveriam ter sido tomadas, mas que agora, diante desse cenário
devastador, serão inadiáveis. Se as causas da crise são essencialmente
gerenciais, sua solução não o são. A falta de planejamento e a
irresponsabilidade de anos de governo omisso são a matriz contingencial da
crise e geram a falsa impressão que basta recuperarmos esse tempo perdido e a
crise será resolvida.
Rogério - A falta de água é
passageira, na sua opinião?
Nando Bolognesi — As conversas aqui
e ali, nos meios mobilizados, pensantes e atuantes, dão conta que o que está
por vir é uma catástrofe. Estaríamos diante de uma crise de nossa civilização,
de nossa cultura competitiva, de nossas organizações sociais excludentes, de
nossa intolerância com a diversidade e de nosso ímpeto desmedido pelo poder em
suas diversas manifestações. Esse modo de estar no mundo e de se relacionar
teria chegado a seu esgotamento, e a crise hídrica seria apenas uma faceta
dessa derrocada. Um verão pouco mais chuvoso e algumas obras realizadas pelo
poder público seria como uma gota d’água num oceano.
Rogério - Quanto tempo você
e sua família passaram sem água na torneira? Como é o cotidiano sem água?
Nando Bolognesi — Moramos numa
praça que fica abaixo do nível da rua, por isso estávamos numa espécie de ilha
da fantasia, pois só depois de meses a crise bateu à nossa porta. Sabíamos de
amigos que estavam sem água havia meses e nós continuávamos com nossa caixa
d’água cheia. Finalmente, fomos afetados. Ficamos vinte e dois dias sem receber
água e sentimos o quanto somos dependentes dessa danada. Quando, finalmente, a
água voltou à nossa caixa d’água, minha primeira surpresa foi o enorme regozijo
que senti ao lavar o rosto usando as duas mãos. Afinal, quando se usa canecas
para tomar banho, escovar os dentes e lavar o rosto ao acordar, com uma mão
seguramos a caneca e só nos resta uma outra mão para esfregarmos o rosto.
Durante essas três semanas nossos banheiros pareciam banheiro de rodoviária,
pois o cheiro de urina imperava. Descarga, quero dizer balde usado como
descarga, somente no final do dia ou quando defecávamos. O banho era com
canecas, e usávamos uma enorme bacia para recolher a água que derramávamos
sobre o corpo para a utilizarmos como descarga. A água para lavar roupa era
reutilizada três vezes: primeiro uso para as roupas claras; reaproveitada para
a lavagem das roupas escuras; utilizada uma terceira vez para lavagem de
tapetes e toalhas e uma quarta vez para lavar o quintal e a garagem. Quando
chovia, era uma correria com baldes para todo lado. Nós e todos os nossos
vizinhos compramos tinas para armazenar 40, 50 e 70 mililitros de água e a
colocávamos em pontos estratégicos para recolher a água que escorria das
calhas. Dia de chuva forte, foram poucos e comemorados como a chegada do papai
noel no natal, nosso filho apanhava o shampoo no banheiro e se banhava sob a
“ducha” que se formava por causa da calha entupida. Aproveitava-se a chuva para
esfregar o chão da garagem encardido pela falta d’água e para tentar recuperar
a vida das plantas no jardim ressecado, quase inteiro morto. Via-se na cidade
caixas d’agua passando daqui práli, em caçambas de caminhonete, em porta malas
abertos, puxadas por bicicletas ou carregadas por grupos de três ou quatro
rapazes. Caminhão pipa era olhado como sonho de consumo, apenas acessível a
poucos capazes de pagar trezentos ou quatrocentos reais por três mil litros de
água. Meu maior prazer durante esse período era quando, encerrado o banho,
entornada a última caneca para retirada do sabão pelo corpo, olhava para o
balde e notava que havia ainda um palmo de água lá dentro. Sorria feliz, erguia
o balde sobre a cabeça e entornava aquele três ou quatro litros de água sobre
mim em puro êxtase.
Rogério - O que você aprendeu
com essa experiência?
Nando Bolognesi — A experiência das
torneiras secas me confrontou com hábitos de desperdício que se tornaram
impensáveis. Fazer a barba durante o banho, escovar os dentes com a torneira
aberta, ligar a mangueira para aguar o jardim durante meia hora ou se deixar
entorpecido sob a água quente por dez minutos após terminar o banho tornaram-se
hábitos estranhos e descabidos. Porém, após uma ou duas semanas de fornecimento
de água restabelecido bastaram para que essa consciência cedesse novamente
espaço para a cultura da abundância e do desperdício.
Rogério - Você acha que o
problema da água é uma questão de consciência individual, ou seja, caberia a
cada um de nós aprender a usar a água com mais economia ou é uma questão mais
complexa?
Nando Bolognesi — Como disse, a
crise hídrica me parece apenas uma faceta do esgotamento de um modo de estar no
mundo. Não se trata de uma questão de consciência individual apenas. É uma
oportunidade, talvez uma exigência, para resgatarmos valores deixados pelo
caminho. Precisamos nos reconhecer como espécie e nos importarmos com o outro,
com a criança que morre de fome, com o miserável que não tem acesso ao médico,
com o trabalhador que é explorado, com os cerca de um bilhão de pessoas que
sobrevivem com menos de dois dólares por dia e, sobretudo, com os bilhões de
seres humanos como nós que ainda estão por chegar ao planeta. Nossos filhos,
sobrinhos, netos, irmãos, bisnetos e primos de primeiro, segundo e décimo graus
que tem tanto direito de viver quanto nós. Por que temos consciência, mas temos
sido incapazes de transformar essa consciência em atitude? Talvez estejamos
sendo conclamados a enxergar o óbvio: somos todos irmãos, dividimos o mesmo
planeta e somos responsáveis uns pelos outros.
Rogério — No caso de Itu,
TVs, jornais, a mídia, enfim, ajudou ou atrapalhou a população a enfrentar a
situação, na sua opinião?
Nando Bolognesi — Como disse nem a
mídia, nem o poder público cumpriram sua obrigação de informar minimamente.
Ficamos totalmente à deriva, sem informações, sem satisfações e sem nenhuma
atenção. Aliás, a regulação dos meios de comunicação é um imperativo
prioritário, urgente e incontornável.
Rogério — Itu é uma cidade
relativamente pequena. Você pode imaginar como seria uma escassez absoluta em
São Paulo, capital? Será que isso pode acontecer?
Nando Bolognesi — Acredito não só
que possa acontecer como que irá acontecer. Participei da Assembleia da água
realizada aqui em Itu em dezembro e o cenário descrito e previsto pelos
estudiosos que participaram do evento foi tenebroso. Estaríamos à beira de um
colapso de abastecimento que seria inevitável e deixaria São Paulo sem água até
maio ou junho de 2015. Quinze milhões de pessoas sem fornecimento de água é um
cenário inimaginável e imprevisível. Falou-se na inevitabilidade da criação de
um plano para deslocamento de enormes contingentes populacionais a fim de se
evitar um holocausto hídrico. Segundo esses estudiosos o cenário é escabroso e
inescapável. Questão de meses. Se como dizia Nelson Rodrigues, parafraseando
Otto Lara Resende, o mineiro só é solidário no câncer, teremos em breve uma
oportunidade de descobrir quais alternativas essa solidariedade de última hora
será capaz de nos oferecer, por que precisaremos dela quando multiplicarmos por
cem as proporções daquilo que vivenciamos aqui em Itu, cidade com 150 mil
habitantes, e projetarmos o mesmo cenário para São Paulo, com 15 milhões de
habitantes. (yahoo)
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