O uso do volume morto do Cantareira completou um
ano, mas SP está preparada para a estiagem?
Águas da Billings, em São Paulo; secretaria
estadual promete mais fiscalização de captações irregulares de água na cidade.
A cidade de São Paulo entrou no período de
estiagem, no mês passado, com cerca de metade da água que havia no reservatório
da Cantareira (principal fonte de abastecimento para a capital) no início da
estação seca de 2014.
Além disso, o sistema recebeu, em abril, a metade
da chuva esperada para o período, e só nos primeiros cinco dias de maio viu seu
nível de água cair por duas vezes.
Em meio à maior seca dos últimos 80 anos, manter a
metrópole de 20 milhões de habitantes abastecida nos próximos meses é um dos
maiores desafios já enfrentados por autoridades paulistas na história da
cidade. Além de ter de vencer um período de inverno majoritariamente seco, os
paulistanos têm de torcer para que as chuvas retornem na primavera ─ o que não
ocorreu em 2014.
O governo paulista, no entanto, se diz preparado
para a missão, embora especialistas ouvidos pela BBC Brasil se mostrem mais
céticos.
Desde janeiro, um respeitado especialista em
recursos hídricos - Benedito Braga, professor da USP e ex-presidente do
Conselho Mundial da Água - assumiu a Secretaria de Saneamento e Recursos
Hídricos (SSRH) do Estado.
Sob o comando de Braga, o tom da SSRH é confiante,
mas cauteloso: tudo depende de quão severa será a estação seca, disse o
secretário em entrevistas. Em nota à BBC Brasil, a SSRH disse que rodízio de
água é um cenário "distante" mas que não foi completamente descartado
e enumerou as principais medidas que vêm sendo adotadas para a segurança
hídrica da cidade.
A vazão do Cantareira deve cair ainda mais.
Programas de incentivo à economia de água - como o bônus para quem economiza,
já em prática - serão mantidos. Além disso, a secretaria promete maior
fiscalização de captações irregulares para uso industrial e irrigação e contra
roubos de água na rede.
A estratégia do governo tem, como um de seus
pilares, obras que visam diminuir a demanda sobre o sistema Cantareira. Assim,
áreas antes abastecidas por ele passam a receber água de outras represas. No
início do ano passado, o Cantareira atendia quase 9 milhões de pessoas; hoje
são 5,4 milhões, informou a Sabesp. Ao mesmo tempo, obras emergenciais foram
antecipadas para 2015 para reforçar a capacidade de abastecimento das represas
Billings, Guarapiranga e sistema Alto Tietê.
Em entrevista à BBC Brasil, a especialista em
recursos hídricos Stela Goldenstein, ex-secretária estadual de Meio Ambiente na
gestão Mário Covas e municipal na gestão Marta Suplicy, explicou a lógica por
trás dos planos do governo.
"A estratégia do governo é 'não tenho água no
Cantareira, mas tenho em outras represas'. Então, você encolhe a mancha urbana
que era abastecida pelo Cantareira e expande a mancha abastecida por outros
mananciais."
O problema, apontam especialistas, é que o plano
depende de obras emergenciais que terão de ser feitas muito depressa.
E mesmo prometendo obras a toque de caixa, os
primeiros atrasos começam a surgir. Na última segunda-feira, o governador de
São Paulo, Geraldo Alckmin, anunciou que uma das obras prometidas para evitar o
rodízio, a ligação do sistema Rio Grande com o Alto Tietê, anteriormente
prevista para ser finalizada em maio, só deve ficar pronta em setembro.
O cenário deixa especialistas apreensivos.
"Se na estiagem de 2015 for mantido o mesmo
ritmo de uso de 2014, há chances reais de esgotarmos o Cantareira até o final
de outubro próximo", disse à BBC Brasil Décio Semensatto Júnior, professor
de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A SSRH disse à BBC Brasil que a vazão do
Cantareira será ainda menor em 2015, o que alteraria o resultado desse cálculo.
Mas como a vazão já era baixa em 2014 – um terço da vazão normal – há pouco
espaço para manobra. Ou seja, a Sabesp (Empresa de Saneamento Básico do Estado
de São Paulo), a cargo das obras, corre contra o tempo.
"Vai dar tempo? Eles contam que sim",
disse Goldenstein. "Mas para sabermos se dá tempo ou não, teríamos de ver
contratos e cronogramas de obras. Ninguém fora da Sabesp faz a menor
ideia."
Aqui, a ex-secretária de Meio Ambiente, hoje
diretora-executiva da ONG Águas Claras do Rio Pinheiros – que trabalha pela
limpeza do rio que corta a cidade e que poderia, um dia, ser parte da solução
para o problema da água –, esbarra em uma questão que incomoda vários
especialistas consultados pela BBC Brasil: eles apontam o que veem como uma
falta de transparência do governo na gestão da crise hídrica, a ausência de uma
estratégia mais ampla de comunicação com a população e uma suposta falta de um
plano de contingência caso a estratégia atual dê errado.
"A população não foi informada sobre a crise,
não sabe as dimensões econômicas, de saúde pública, da crise. Precisa ser
informada brutalmente, como fez Churchill na Segunda Guerra, com aquela frase:
'Não tenho nada a oferecer senão sangue, suor e lágrimas'", disse à BBC
Brasil o especialista em recursos hídricos e ex-presidente do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) José Galízia Tundisi.
Tundisi estava se referindo ao primeiro-ministro
britânico Winston Churchill, que liderou a Grã-Bretanha na luta contra os
nazistas. Tinha o apoio de todos os partidos políticos e da população.
"Fui demandado por bancos para fazer (um
estudo com) alguns cenários para a crise hídrica. Vai continuar? Quanto tempo
vai durar? Vai ter repercussões no abastecimento? As indústrias podem ficar
inadimplentes? E eu vou emprestar dinheiro para essas indústrias? É isso que
eles queriam saber", disse Tundisi.
"A população não sabe disso e precisa ser
informada. Discordo dessa ideia de que você não pode informar porque a
população entra em pânico. Você abre o problema para poder mobilizar a
população", argumentou.
Represa de Atibainha, parte do Sistema Cantareira, em fevereiro; "Se na estiagem de 2015 for mantido o mesmo ritmo de uso de 2014, há chances reais de esgotarmos o Cantareira até o final de outubro próximo", diz especialista
Represa de Atibainha, parte do Sistema Cantareira, em fevereiro; "Se na estiagem de 2015 for mantido o mesmo ritmo de uso de 2014, há chances reais de esgotarmos o Cantareira até o final de outubro próximo", diz especialista
Para Tundisi, o plano do governo só dará certo com
a adesão completa dos paulistanos.
"Se o governo for bem-sucedido em reduzir
drasticamente a demanda, é possível que não seja preciso um rodízio. Mas teria
de haver êxito completo na redução da demanda, com premiações, informações e
educação."
Liderança
A SSRH disse em nota que, desde 2014, vem fazendo
campanhas de esclarecimento da população. Mas, na opinião de especialistas
ouvidos pela BBC Brasil, as campanhas não chegam nem perto do que precisaria
ser feito para que se alcance uma mudança profunda na cultura de uso da água.
Também falta orientação prática, na visão de Semensatto Júnior.
"Estamos vivendo uma situação sem precedentes
e a sociedade não está preparada para isso. A desorientação e desorganização
ocorrem porque as autoridades não informam de forma explícita o que devemos
fazer. Tampouco informam se há, de fato, um plano geral de contingência e qual
o nível de segurança dos reservatórios."
Ele exemplificou: "Eles poderiam determinar
que a partir de um dado volume armazenado no reservatório, a vazão vai ser
reduzida em x% e os usuários terão que tomar um conjunto de atitudes
pré-estabelecidas para que essa redução não os prejudique mais".
A frustração do professor não tem apenas razões
profissionais. Ele disse à BBC Brasil que, no início de abril, sem qualquer
aviso, o prédio onde mora, em Diadema, na grande São Paulo, ficou quase três
dias sem abastecimento de água. "Fiquei 60 horas sem água. Foi o maior
tempo até agora na minha casa."
Casos como o de Semensatto são comuns. A BBC
Brasil ouviu relatos de duas escolas na periferia de São Paulo afetadas pela
queda na pressão da água. Em ambos os casos, as torneiras secaram.
Administradores tiveram de recorrer à compra de água para o consumo e a higiene
de bebês e crianças. Um diretor falou em "fezes se acumulando no
vaso" e professores jogando baldes com água no sanitário periodicamente.
Também em ambos os casos, as escolas disseram não
ter sido avisadas previamente pela Sabesp. Após informarem a companhia sobre a
falta de água, a resposta teria sido lenta. A Sabesp teria, inicialmente,
negado a existência do problema. "A Sabesp alegava que a pressão na nossa
região era normal, não havia sido diminuída", disse o diretor, que não
quis ser identificado.
Em nota à BBC Brasil, a Sabesp informou: "Com
a redução de pressão, áreas mais altas e distantes dos centros de distribuição
podem registrar pontualmente problemas de abastecimento".
Goldenstein lembrou que os avisos antes do corte
estão previstos no regulamento da Sabesp.
"Em situações como essas, o governo deveria
informar previamente e orientar quanto aos procedimentos. E do ponto de vista
de regulação do serviço, é previsto que tenha aviso."
Mas com ou sem aviso, a população parece estar
recebendo a mensagem, ela ponderou. "A Sabesp diz que 82% dos usuários
reduziram o consumo. Ela não diz qual foi a redução, então não sabemos se é
suficiente. Mas se o número é real - e não tenho domínio desse número -,
significa uma mobilização excepcional. É curioso, a informação se dá por outros
meios. Talvez a imprensa e as ONGs tenham tido um papel importante."
E o plano de contingência caso a estratégia do
governo não dê certo e as autoridades se vejam obrigadas a implantar um rodízio
severo? Em nota, a SSRH informou que o plano está sendo elaborado. Um assessor
disse à BBC Brasil que não há data para a sua divulgação. (bbc)
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